As Forças Armadas devem satisfações a respeito de Mauro Cid e Mauro Cesar Lourena Cid? Certamente, devem, mas não de maneira a aderir à sanha persecutória. É preciso seguir os ritos legais. Porque denunciados são suspeitos — ainda não são culpados. Por que exigir que o comandante do Exército se apresse se a própria Justiça — a espera de provas contundentes e do fim das investigações — não está se apressando?

Dada a necessária disciplina militar, as Forças Armadas se pautam pela unidade, pela ação e discurso únicos. É assim, sempre foi assim. Mas há divergências, linhas de pensamentos diferenciadas. Tratemos apenas do Exército, desde 1964.

Há 59 anos, entre 31 de março e 1º de abril de 1964, as Forças Armadas, com o Exército na linha de frente, com apoio de civis — como Magalhães Pinto, Bilac Pinto e Carlos Lacerda —, destituíram o presidente civil, João Goulart, e assumiram o poder.

Costa Silva, da linha dura, e Castello Branco, da moderada “Sorbonne” | Foto: Reprodução

Eram duas as correntes que articularam o golpe de Estado: a corrente moderada, dita Sorbonne militar, sob a liderança do general cearense Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967), e a linha dura, sob o comando do gaúcho Arthur da Costa e Silva (1899-1969).

Os moderados assenhoraram-se do poder e Castello Branco se tornou o primeiro presidente do ciclo militar que durou de 1964 a 1985.

Havia uma esperança de que o sucessor de Castello Branco, por ele ser moderado, fosse um civil, como Bilac Pinto ou Carlos Lacerda.

Uma esperança vã. Pois, pressionado, Castello Branco cedeu e abriu as portas para um general da linha dura, Costa e Silva, assumir o poder, em 1967.

Delfim Netto e o presidente Emilio Garrastazu Médici | Foto: Reprodução

Com Costa e Silva nasceu uma dita mais dura do que a de Castello Branco. Eles não comungavam todos os ideais, mas havia algo que os unia — exatamente o regime discricionário.

Em 1969, Costa e Silva sofreu um AVC e foi substituído por uma junta militar. Em seguida, o general Emilio Garrastazu Médici assumiu o governo. Era também da linha dura. Com Delfim Netto no Ministério da Fazenda, o país cresceu mais de 10% ao ano. Ao mesmo tempo, a ditadura se tornou feroz.

Os guerrilheiros da ALN, da VPR e do PC do B — e de outras correntes menores — foram massacrados no governo de Médici. A ordem do general Miltinho Tavares, que obedecia ao ministro do Exército, Orlando Geisel, e ao presidente Médici, era para não fazer prisioneiros. Era para executá-los.

No poder, a linha dura debelou a guerrilha urbana e rural. Mas a ditadura patropi tinha uma especificidade: os generais cumpriam seus mandatos e voltavam para suas casas — não incomodando o sucessor.

Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel: os generais que “mataram” a ditadura | Foto: Reprodução

Quando chegou a hora de pensar no sucessor, Médici, que apreciava Orlando Geisel, decidiu indicar Ernesto Geisel, irmão do ministro do Exército, para a Presidência.

Médici chamou o chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), general João Figueiredo, e perguntou se procedia que Ernesto Geisel e o general Golbery do Couto e Silva estavam mesmo “rompidos”.

Mentindo, João Figueiredo disse que Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva não estavam conectados. Então, o moderado Ernesto Geisel foi indicado pelo linha dura Médici para sucedê-lo.

Ao assumir o poder, em março de 1974, Ernesto Geisel cometeu sua primeira heresia: Golbery do Couto e Silva foi o primeiro ministro a ser nomeado. Ele assumiu a chefia da Casa Civil, espécie de olhos e ouvidos do “rei”. Era o principal formulador do governo e adversário visceral da linha dura.

Ao nomear Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel rompia, em caráter definitivo, com a linha dura de Costa e Silva e Médici. Pode-se falar que houve uma ruptura e os moderados de 1964, os aliados de Castello Branco, voltaram ao poder.

No poder, contando com a figura mais iluminista do Exército, Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel decidiu “matar”, gradualmente, a ditadura. Primeiro, começou a distensão, melhorando o relacionamento com a imprensa, acabando com a censura.

Ernesto Geisel e João Figueiredo: aliados ma non troppo | Foto: Reprodução

Segundo, em 1978, Ernesto Geisel acabou com o AI-5 — o mais virulento da história da ditadura. Pode-se falar que era quase a sentença de morte do regime civil-militar.

Terceiro, o presidente segurou a linha dura. Depois das mortes do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, e do operário Manuel Fiel Filho — que foram “suicidados”, não em porões, e sim em unidades do Exército —, Ernesto Geisel afastou o comandante do Exército em São Paulo e, em 1978, exonerou o ministro do Exército, Sylvio Frota (confira link abaixo para entender a história).

Ao mandar Sylvio Frota para casa, Ernesto Geisel não estava desmoralizando tão-somente o general. Estava desmontando a linha dura, que perdia seu comandante oficial.

Ao antecipar a indicação de João Figueiredo para a Presidência — assumiu em março de 1979 —, Ernesto Geisel conteve a linha dura e pôs no poder um militar que daria continuidade à Abertura, ou seja, que reforçaria o processo de redemocratização do país. Em 1982, os brasileiros puderam eleger os governadores dos Estados. Iris Rezende derrotou Otávio Lage, o candidato apoiado pela ditadura.

João Figueiredo não tinha o preparo intelectual e político do “sacerdote” Ernesto Geisel e do “feiticeiro” Golbery do Couto e Silva (as terminologias são do jornalista e pesquisador Elio Gaspari). Mas cumpriu o que havia acordado com os dois padrinhos.

Em 1981, no atentado do Riocentro, a linha dura — a extrema-direita da ditadura — decidiu testar João Figueiredo. Colocou bombas, com o objetivo de matar e assustar pessoas, e a história ganhou as páginas da imprensa, com amplo destaque.

A linha dura convivia relativamente bem com João Figueiredo e parecia enquadrada. Mas, como o presidente percebeu, não estava. O que a extrema direita militar queria era impedir o avanço da Abertura obter um mandato para si, na substituição do discípulo de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.

Então ministro, Golbery do Couto e Silva cobrou apuração rigorosa do presidente João Figueiredo. Porque percebeu que a ação da linha dura visava, mais do que qualquer outra cousa, impedir o avanço da Abertura, ou seja, a redemocratização. O objetivo parecia ser conquistar um mandato de presidente para o general Octávio de Medeiros, chefe do SNI.

João Figueiredo não quis ouvir Golbery do Couto e Silva, que decidiu sair do governo. O presidente moitou o caso e, em termos públicos, não fez uma apuração detida do que aconteceu.

Entretanto, se era turrão, João Figueiredo nada tinha de néscio. Por isso parece ter procedido a um acordão informal com a linha dura. Não puniu ninguém. Mas parece ter enquadrado, em definitivo, a extrema direita.

Portanto, pode-se sugerir que o atentado do Riocentro — um militar morreu e outro ficou ferido — foi um tiro no pé da linha dura. Ao tentar matar inocentes, para dar recados políticos à esquerda e, sobretudo, ao governo, a extrema direita militar praticamente se suicidou.

José Sarney e Tancredo Neves: a transição possível em 1985 | Foto: Reprodução

Em 1985, com a vitória de Tancredo Neves e José Sarney, no Colégio Eleitoral, João Figueiredo deixou a Presidência da República. Cumprira, aos trancos e barrancos, o que prometera a Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva: a Abertura estava concluída, com o fim do regime militar, e o país caminhava para a redemocratização.

Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney assumiu a Presidência. Se não fez um grande governo, ao menos o político maranhense, um moderado, fez a transição democrática de maneira equilibrada — passando o poder para o presidente finalmente eleito pelo voto popular, Fernando Collor de Mello, de centro-direita, em 1989.

Dada a corrupção de seu governo, Fernando Collor caiu em 1992 e seu vice, o decente Itamar Franco, assumiu o governo e convocou Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda.

Fernando Henrique Cardoso montou um time de economistas de primeira linha — que criou o Plano Real, que estabilizou a economia, contendo a inflação e retomando o crescimento econômico.

Por causa do Plano Real, FHC foi eleito, em 1994, e reeleito presidente, em 1998. Nos governos de Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC, os militares não constituíram nenhum problema à democracia. Pelo contrário, assumiu o comando das Forças Armadas uma geração democrática.

Quando Lula da Silva assumiu a Presidência, em 2003, permanecendo no poder até 2010 — e depois o PT elegeu Dilma Rousseff por dois mandatos (2010 e 2014) —, chegou-se a pensar que, num governo de esquerda, haveria problema com as Forças Armadas.

Lula da Silva: relacionamento positivo com as Forças Armadas | Foto: Ricardo Sturcket/PR

Na verdade, não houve problema nenhum. Os militares se deram bem com a esquerda petista, compartilhando identidades nacionalistas. Porque Lula da Silva, forjado nas lutas sindicais de São Paulo e nas ações da Igreja Católica progressista, em São Paulo, nada tinha de comunista. Seu discurso e suas ações o aproximam muito mais da socialdemocracia europeia, apesar de identificar-se com a esquerda da América Latina. O petista-chefe é moderado. Dilma Rousseff, que havia participado da guerrilha, entre as décadas de 1960 e 1970, no governo comportou-se de maneira realista.

Na transição da queda de Dilma Rousseff e na ascensão de seu vice, Michel Temer, à Presidência ouviu-se ruídos militares. Mas nada que conturbasse, de maneira grave, a democracia.

O governo do presidente Jair Messias Bolsonaro — que havia sido capitão do Exército — deu uma desorganizada nas Forças Armadas. A imprensa brasileira, que, no geral, é apressada nas avaliações e extremamente conclusiva quando se trata de analisar os meios militares, quase nunca compreende a questão da unidade e da diversidade na Aeronáutica, no Exército e na Marinha.

Aqui e ali, se percebe que as avaliações das Forças Armadas de hoje estão matizadas pelas velhas interpretações a respeito dos militares das décadas de 1960 e 1970. É como se todos os militares fossem golpistas e apologistas da ditadura de 1964. Pouco se examina, de perto, qual é a mentalidade real — a média — dos atuais militares.

Silvinei Vasques e Jair Bolsonaro: conspurcando quase tudo | Foto: EBC

A minha percepção difere daquelas que são formuladas por parte de meus colegas de profissão. Tenho a impressão de que os militares de hoje — a média, portanto a posição dominante — são democratas e não querem o retorno da ditadura, de nenhum tipo de ditadura. Talvez se lembrem do que disse o general Ernesto Geisel, quando perguntado por quais motivos havia decidido acabar com a ditadura. O presidente disse pouco e tudo: “Porque era uma bagunça”. A sociedade dos puros — sem a corrupção “dos” civis — não pôde ser constituída. Não há sociedade “pura. Não há sociedade totalmente “honesta”. Há sociedades possíveis e as melhores são aquelas que acatam as leis e, assim, respeitam a democracia.

Fora da democracia, os militares entenderam, não há salvação. Este é o pensamento dominante nas Forças Armadas. Mas é evidente que há fissuras e há golpistas entre os militares, assim como há entre os civis. Há mais civis golpistas do que militares golpistas, obviamente.

Afeitos a cumprir ordens dos superiores, vários militares se encantaram com o canto da sereia do Bolsonaro presidente (bons salários e gratificações polpudas certamente encantaram muitos deles). Decidiram obedecê-lo, segui-lo e se tornaram golpistas.

Jair Bolsonaro fez o impossível para tornar generais golpistas | Fotos: Reproduções

As informações divulgadas até agora sugerem que, sim, Bolsonaro planejava um golpe para continuar no poder — inclusive com a previsão da derrubada do presidente Lula da Silva, tal como ocorrera com João “Jango” Goulart, em 1964. Há quase sessenta anos.

Porém, se havia generais golpistas, em posições chaves do governo — alguns até ministros de Estado —, as Forças Armadas, como instituição, decidiram ficar ao lado da democracia.

É preciso admitir que a sociedade civil é forte e que se opôs a um golpe civil-militar, com energia. Os ministros do Supremo Tribunal Federal e os políticos de vários partidos — inclusive líderes do mal falado Centrão, que é uma federação de partidos — defenderam a democracia como poucas vezes na história do Brasil.

Entretanto, se as Forças Armadas tivessem se postado a favor do golpe, dando suporte às aspirações continuístas de Bolsonaro, a democracia teria, possivelmente, sucumbido… e sem derramamento de sangue. Uma lição do 8 de janeiro de 2023 precisa ser observada com atenção: houve um golpe, de fundo menos anarquista do que se imagina, inclusive com a participação de militares das Forças Armadas e da Polícia Militar, mas as instituições Forças Armadas ficarem quietas, não deram apoio à ação bolsonarista.

Então, é crucial admitir: as Forças Armadas se comportaram de maneira legalista e não atenderam o chamamento golpista feito por Bolsonaro. Há muito mais almirantes, brigadeiros e generais favoráveis à democracia do que golpistas. Devemos aos legalistas — a maioria — a manutenção de democracia. Convém não esquecer a história: tivemos golpes militares em 1889 (a República é filha de um golpe militar), em 1930, em 1937, em 1945, um contragolpe (Juscelino Kubitschek só assumiu, em 31 de janeiro de 1956, graças a uma ação do general Henrique Teixeira Lott), um quase golpe em 1954 (o suicídio do presidente Getúlio Vargas impediu o golpe) e, finalmente, em 1964.

Mauro Cid e Jair Bolsonaro

A história recente do tenente-coronel Mauro Cid — um jovem de boa reputação no Exército —, que se envolveu pessoalmente em negócios pouco católicos de Bolsonaro, como comercializar joias e fazer pagamentos para parentes do ex-presidente, contamina as Forças Armadas? Não.

Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro | Foto: Reprodução

As Forças Armadas, como instituição, estão e são limpas. Com toda a pressão de Bolsonaro, que chegou a trocar comandantes do Exército, os chefes militares não cederam à sua vontade golpista. Mantiveram-se legalistas. Então, ao contrário do que se comenta, as Forças Armadas se posicionaram, sim, e pela legalidade democrática. Queriam o quê mais, que os generais saíssem gritando nas ruas? Almirantes, brigadeiros e generais não fazem isto, em respeito às leis — circunscrevem-se aos quartéis.

A história de Mauro Cid, de seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, e de outros militares ainda não está devidamente contada e suficientemente documentada (o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia eram ou não de Lula da Silva, como dizia, de maneira peremptória, a mídia?). E há uma certa histeria, em ritmo de caça às bruxas, o que dificulta uma avaliação serena do quadro. Tudo indica que Mauro Cid errou e que cumpriu ordens absurdas de um presidente que respeitava, pela questão da liturgia do poder e, também, por amizade.

Estamos no momento de denúncias e “condenações” (ainda não judiciais) — e Lula da Silva, um político de valor (sua história é maior do que um detalhe dela — as corrupções de seu governo), sentiu isto na pele. As denúncias e apurações devem continuar de maneira rigorosa e os culpados devem ser condenados por juízes, desembargadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.

Querem chegar a Bolsonaro — que, de fato, tentou conspurcar a história democrática do país e parece envolvido em questões pouco católicas — e, de quebra, há indícios de que querem tirar lasquinhas, lascas ou lasconas das Forças Armadas.

Entretanto, os que examinam os fatos com menos paixão condenatória, por não serem misturas de cruzados com inquisidores, deveriam ao menos aceitar que Bolsonaro pode até ter tentado, mas não conseguiu contaminar por inteiro as Forças Armadas. Repetindo: se Bolsonaro tivesse “derrotado” os almirantes, brigadeiros e generais sérios e democratas, o Brasil estaria, neste momento, sob uma ditadura. Lula da Silva certamente já estaria no exílio ou preso.

As Forças Armadas devem satisfações a respeito de Mauro Cid e Mauro Cesar Lourena Cid? Certamente, devem, mas não de maneira a aderir à sanha persecutória. É preciso seguir os ritos legais. Porque denunciados são suspeitos — ainda não são culpados. Por que exigir que o comandante do Exército se apresse se a própria Justiça — a espera de provas contundentes e do fim das investigações — não está se apressando?

No caso citado, o que devemos esperar do Exército é que aceite a decisão da Justiça, não operando para proteger membros que tenham se envolvido em falcatruas.

Nós, todos nós, somos democratas, em tese. Mas nos comportamos, inclusive na mídia, como se fôssemos membros da Inquisição. No fundo, queremos queimar na fogueira nossos opositores, que tratamos, não como adversários, e sim como inimigos. Não há dúvida de que Bolsonaro é um político muito ruim, de cariz golpista e anti-humanista, mas, para “pegá-lo”, não é necessário “queimar” a boa imagem das Forças Armadas.

A história do general que tentou derrubar o presidente