A história não se vive e não se faz em um dia: a Independência e as comemorações do Bicentenário
29 agosto 2022 às 12h27
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Poliene Soares dos Santos Bicalho
Especial para o Jornal Opção
A interpretação e escrita da história não se faz mediante os acontecimentos registrados pelos marcos políticos e históricos observados à altura das marés; ao contrário, busca nas profundezas das águas calmas dos oceanos os eventos não facilmente identificáveis à razão e sentidos da história (Fernand Braudel, 1972). Em tempos sóbrios como os vividos no Brasil, quando verdades e mentiras são manipuladas e difundidas a todo momento pelo meio de comunicação mais expressivo da atualidade, o WhatsApp, a máxima inerente ao cuidado metódico diante da escrita da história tem sido completamente ignorada. Vive-se, neste aspecto, um momento de emergência, afinal, mais que nunca, os atos políticos do presente precisam ser observados à luz da densidade dos fatos extraídos das fontes, responsáveis pela verossimilhança histórica. Momentos comemorativos como o Bicentenário da Independência do Brasil, tão aclamado em 2022, e às vésperas da chegada do famoso 7 de Setembro, torna esta reflexão — embrenhada de experiências e expectativas quanto ao passado, o presente e o futuro (Koselleck, 1993) do país — importante e significativa.
Afinal, por que e como comemorar o Bicentenário de Independência? A quem interessa, no presente, o desejo de lembrar (quando não manipular) esse marco histórico? O 7 de Setembro foi/é um acontecimento fundamental da nossa história, ou terá sido apenas um “ajustar” de interesses políticos envolvendo grupos que desejavam a continuidade mais que a ruptura entre a antiga metrópole e a infante nação? Comecemos pela última proposição. Certa vez, no início dos anos 1990, assistia à transmissão do desfile de 7 setembro na televisão, comentado pela historiadora e pesquisadora Emília Viotti da Costa (1928-2017), com qual estabeleci intenso diálogo mais tarde, nos anos finais do curso de História, durante a escrita da monografia de final de curso, sobre a guerra fratricida que tomou a antiga metrópole entre 1832 e 1834, envolvendo os irmãos D. Pedro I (IV e Portugal) e D. Miguel, pelo trono de D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal.
Emília Viotti da Costa, ao analisar a emancipação política do Brasil, explicava durante aquele desfile cívico, suscintamente, que o 7 de Setembro precisava ser compreendido não a partir do marco histórico celebrado naquela data, exclusivamente. Ao contrário, é preciso imergir nas profundezas dos acontecimentos inerentes ao processo histórico para efetivamente entender o seu real significado e a sua importância. Enquanto a ouvia, esta fala não parecia ter muito sentido, porém, quando a estudei, percorrendo as páginas do livro “Da Monarquia à República — Momentos decisivos”, de 1999, compreendi o que a autora queria de fato dizer. Não é o dia, a data, o marco histórico — que ganha nas mais diversas fontes, relatos e análises memoriais e historiográficas um determinado lugar de memória ou de mito fundador — que realmente importa para a compreensão de suas reverberações na história nacional, mas sim o processo que levou até ele.
O processo de emancipação política do Brasil começa muito antes do 7 de Setembro. Viotti destaca a transferência da família real portuguesa e de toda a sua corte para o Brasil, em 1808, no contexto das invasões napoleônicas, como o início desta movimentação que acabou por degringolar de vez com as bases da “aliança burguesa comercial-Coroa, que havia dado origem ao sistema colonial tradicional”; além do advento do capitalismo industrial na Europa, no final do século XVIII, que desarticulou as estruturas escravagistas no mundo todo, inclusive no Brasil, embora as elites nacionais tenham conseguido a façanha de retardar a ruptura absoluta com este regime vergonhoso até o final do século XIX, o que nos deu o título ignóbil de último país do Ocidente a pôr fim à escravidão, em 1888. Contudo, diante da necessidade de olhar o processo e não o fim em si mesmo, por aqui a escravidão já passava por crises reais desde a primeira metade do século XIX, no contexto pós-Independência, sob fortes pressões do capitalismo industrial em expansão, especialmente o inglês.
Em nível macro, não se pode deixar de destacar também as mudanças filosóficas e ideológicas que tomavam grande parte do mundo desde o raiar das revoluções burguesas do final do século XVIII, especialmente a Revolução de Independência norte-americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789 e suas ideias (muito mais ideais do que substanciais) de igualdade, fraternidade e liberdade. As ideias são como almas viajantes (para não dizer penadas), não podem ser aprisionadas, não por muito tempo; sendo assim, logo adentraram à colônia do Brasil, chegaram a Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e até Minas Gerais, onde se fizeram presentes e atuaram, em nível micro, como armas ideológicas capazes de mobilizar grupos da elite e populares contra as vicissitudes e imposições — em geral fiscais — da Coroa portuguesa. Estabelecida em terras brasileiras desde 1808, viu-se pressionada tanto pelas elites locais quanto pelas portuguesas, reunidas em torno da Revolução Liberal do Porto a partir de 1820, cujo objetivo maior era ‘devolver’ o Rei (e toda a sua família, Corte e estruturas administrativas e políticas) a Portugal; e “retornar” o Brasil à condição de simples Colônia. Esta é mais uma das “piadas” de época, similares a muitas que vivenciamos hoje no Brasil, construídas à luz de fervores políticos impossibilitados de enxergar o movimento da história de forma estrutural e diacrônico.
Não, o Brasil não mais retornaria à condição de Colônia, por que estrutural e diacronicamente ele já não era mais uma simples colônia, havia deixado de sê-lo desde 1815, quando D. João VI reconheceu-lhe a condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e abriu as suas portas comerciais às nações amigas, à inglesa, principalmente. Foi, assim, concretizada a ruptura com o sistema colonial, novas relações comerciais foram estabelecidas em solo brasileiro com as nações europeias, rompia-se com o monopólio exercido até então por Portugal. Era o meio do fim (por que o início começa muito antes) da ruptura política que aconteceria em 1822. Somadas às instabilidades políticas e econômicas locais e às pressões das Cortes portuguesas pela volta do Rei, D. João VI retorna e D. Pedro fica, para dar continuidade ao percurso, tendo que se ajustar às mesmas pressões das Cortes e às disputas entre as elites internas mais conservadoras (que desejavam manter o vínculo entre Brasil e Portugal, afinal, se a Independência aconteceria mais cedo ou mais tarde, que fosse pelas mãos de um herdeiro dos Bragança) e as mais liberais (adeptas à ruptura absoluta com a Monarquia e imbuídas de ideais republicanos).
Diferentemente do que ocorreu em todo o restante da América do Sul, aqui não se rompeu absolutamente com a velha metrópole e nem se implantou uma República, mesmo diante de muitas incompatibilidades políticas, econômicas e ideológicas que vão dominar as diferentes regiões do Brasil em torno da questão da Independência. E não foram poucos e nem pacíficos tais movimentos revoltosos (Revolução Pernambucana; Inconfidência Mineira; instabilidade política entre regiões importantes como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais; Guerra de Independência na Bahia, Confederação do Equador etc.), contudo, venceu o projeto de Monarquia Constitucional apoiada em princípios liberais, mas com substanciais ensejos absolutistas, contra os quais D. Pedro lutou em Portugal, e dos quais não se libertou completamente no Brasil.
Sim, o 7 de Setembro não é um simples mito histórico, e mesmo quando pensado por este viés, não pode ser descreditado em absoluto. O historiador Nóe Freire Sandes, saudoso professor e memorável pesquisador da Independência do Brasil, instigou-me por vezes, em sala de aula e no livro a “Invenção da Nação — Entre a Monarquia e a República”, com a seguinte questão: “Então, acreditamos em nossos mitos? Ainda seguindo o pensamento de Paul Veyne, a resposta é dupla: sim e não” (2000). Como uma data que reverbera em marco histórico, o 7 de Setembro é apenas um mito, embora repleto de significância, afinal a Independência de Portugal se consolidou — nos registros históricos e na memória nacional — neste dia. E uma vez que a data ocupa um lugar de memória na história da nação, expressa-se como mito fundador da Independência que, isoladamente, acaba por desconsiderar o longo processo histórico que levou à sua consumação. Entretanto, a história não se vive e nem se escreve em um único dia, logo, o processo de emancipação política do Brasil é muito mais que um mito e requer análises e observações históricas sob perspectivas críticas e comprometidas com o tempo, as fontes e os acontecimentos que o envolvem.
Por que e como comemorar o Bicentenário de Independência? Voltemos à nossa primeira proposição. É importante comemorar a Independência do Brasil tendo clareza quanto às suas muitas reviravoltas políticas e econômicas, de modo a evidenciar a diferença entre o marco e o processo, e as consequências de ambos na história passada e presente da nação. Trata-se, portanto, de importante ocasião para se reforçar entre estudantes, estudiosos e curiosos (a maioria nem tão curiosos assim, talvez) a relevância desta complexa e fundamental operação historiográfica (Certeau, 1982). Para o professor João Paulo Pimenta, historiador da USP, “efemérides são, muitas vezes, momentos puramente formais, nos quais a reflexão em torno das relações entre passado, presente e futuro das sociedades que as comemoram resulta quase que exclusivamente artificial, permanecendo confinada a pequenos grupos de pessoas. Não parece ser o caso atual. Vive-se, no Brasil de 2022, uma efervescência política favorável à generalização de um consenso em torno da importância da efeméride (embora não de seus sentidos). Tal efervescência engendrou uma ocasião privilegiada para a reflexão acerca de certos fenômenos em curso em nosso país que, a despeito de suas morfologias eventualmente inovadoras, se conectam com realidades históricas mais antigas, profundas e duradouras. Como efeméride, o Bicentenário da Independência nos oferece esse olhar, dentre outras possibilidades, pela potencialização da questão nacional” (2022, p. 99-100).
Ou seja, trata-se de uma oportunidade de retornar, dentro e fora das universidades, aos relevantes temas relacionados à questão nacional, como o papel do Estado, da Nação, da Identidade Nacional e do Nacionalismo (Pimenta, 2022). Especialmente por se tratar de um ano no qual também acontecerá uma eleição presidencial decisiva para a nossa jovem Democracia, que desde o final da Ditadura de 1964 não se via tão ameaçada. As comemorações do Bicentenário da Independência, no contexto atual, devem ou deveriam suscitar reflexões do tipo: que país nós queremos para os próximos dez anos, vinte anos? O que falta para que sejamos completamente independentes como nação? Como o Estado, suas instituições democráticas e a sociedade civil podem contribuir, efetivamente, e junto com o povo, para a libertação nacional de tantos espectros negativos que nos assombram há séculos: fascismo, corrupção, racismo, violência, inflação, pobreza, obscurantismo, intolerância etc.
Em suma, a quem interessa no presente o desejo de lembrar (quando não manipular) esse marco histórico?, nossa última proposição. Interessa a muitos grupos sociais, empresariais, midiáticos, políticos e partidários. Diante do advento de uma disputa eleitoral tão aguerrida e polarizada, a efeméride do bicentenário será palco de muitos atos político-partidários e até de “motociatas”, cujos interesses vazios de sentido histórico e repletos de ideologias predominarão. Semelhante à comemoração do Sesquicentenário da Independência em 1972 — quando, em plena Ditadura Militar desfiles cívicos e militares, paramentados com os restos mortais do Imperador D. Pedro I (em 2022 deverá o seu coração), transplantados de Portugal exclusivamente para aviventar a indelével data comemorativa e dar aparente legitimidade ao regime autoritário — haverá manipulação histórica do fato, é óbvio. Mas também haverá, já está havendo na verdade, muitos movimentos e eventos importantes em todo país, dentro e fora das universidades e das cátedras de História, mais comprometidos com a história do fato, o seu processo e as suas repercussões no presente e no futuro. Digo isto porque a esperança não pode morrer, jamais. E no mais, precisaremos esperar o futuro virar passado para voltarmos a esta história…
Poliene Soares dos Santos Bicalho, doutora em História pela UnB, é professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG) no curso de História e na pós-graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado.
Referências
BRAUDEL, F. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972.
CERTEAU, M. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
KOSELLECK, R. Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993.
PIMENTA, J. P. (2022). Questão nacional e Independência do Brasil: um problema de 200 anos. Revista USP, 1(133), 97-110. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.i133p97-110.
SANDES, N. F. A Invenção da Nação. Entre a Monarquia e a República. Goiânia: Ed. UFG, 2000.
VIOTTI DA COSTA, E. Da Monarquia à República. Momentos Decisivos. 7 ed. São Paulo: UNESP, 1999.