Desculpe, Aylan: a festa não era para você. A festa é sempre dos poderosos

Edmar Oliveira

Desde quarta-feira passada falou-se à exaustão do menino sírio Aylan Kurdi, cujo corpo foi encontrado em uma praia da cidade turca de Bodrum. Número de imigrantes, motivação, de onde partem e para onde vão também já foi maciçamente noticiado. Mas não foi dito tudo. E nunca será.

Aylan, símbolo da maior tragédia humanitária desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), será sempre lembrado e dele falaremos. A foto de seu cadáver é um tapa na cara dos líderes da Europa, Estados Unidos e Canadá, país que negou asilo a ele e à família.

A foto de Aylan deve ser esfregada várias vezes no rostinho cor-de-rosa do primeiro-ministro do Canadá, um dos países mais endinheirados do mundo, Stephen Harper. Os europeus, que subjugaram e roubaram países africanos e asiáticos durante colonizações, como a Síria, de onde Aylan e a família partiram rumo a ilha de Kos, não vão se livrar da imagem daquele corpinho de bruços na areia. O Clube dos Ricos, que faz a festa com dinheiro alheio e não convida suas vítimas, vai ter que engolir os imigrantes que partem sonhando com as sobras que caem das mesas fartas.

[Aylan e seu irmão mais velho, Galip: os dois meninos morreram afogados]

Angela Merkel, François Hollande, David Cameron, Matteo Renzi, Heinz Fischer, Mariano Rajoy Brey e Barack Obama, que insistiam em não ver a monstruosa tragédia dos imigrantes africanos e asiáticos, apesar dos frequentes naufrágios, mortes por fome, sede, em travessias no deserto e até em caminhão-frigorífico precisam ser aquartelados e forçados a ver, milhares de vezes, a foto de Aylan. Até a foto de Aylan, os ricos brincavam de empurra-empurra, enquanto crianças, moços, adultos, idosos e doentes enfrentavam toda sorte de flagelos em busca de um pouco do que lhes fora arrancado quando seus antepassados eram súditos dos impérios. Súbito, os poderosos passaram a se reunir e a propor saídas. A ONU se diz “horrorizada”. Comovente.

Assim como “O Diário de Anne Frank”, publicado originalmente em 1947, se tornou um dos relatos mais impressionantes das atrocidades e horrores cometidos contra os judeus na Segunda Guerra Mundial, a foto de Aylan Kurdi tem força incomensurável. É a esperança de milhares de coirmãos que insistem em sobreviver à mercê de incontáveis pragas. A foto de Aylan é um divisor de águas. Permanecerá viva em todo o mundo. Se o ingênuo e alegre Aylan soubesse a capacidade que tinha… A imagem do pai inconsolável, Abdullah Kurdi, um dos dois sobreviventes dos seis ocupantes do bote em que estavam, deve ser emoldurada e dedicada aos líderes dos países que exploraram a riqueza e escravidão de africanos e asiáticos, mas que hoje fingem que o problema não é deles. O quadro deve conter o seguinte no rodapé: “O pânico aumentava à medida que a água subia. Alguns ficaram de pé, e o bote virou. Eu segurava minha mulher com a mão. As mãos dos meus filhos se soltaram das minhas. Tentamos ficar no bote, mas quase não tínhamos ar. Todo mundo gritava na escuridão. Eu não conseguia que minha esposa e meus filhos ouvissem minha voz”. Os poderosos da Europa e América do Norte devem ouvir o grito desesperado de Abdullah, que, além de Aylan, perdeu o filho de 5 anos, Galip, e a esposa, Rehan.

Aylan não merece e não pode ser esquecido. O Clube da Fartura tem que lembrar dele. Nós todos temos de nos lembrar. Ver a foto de Aylan nos faz mais humanos. Ele sobreviveu às bombas e à guerra, ao loucos do Estado Islâmico e à escassez de comida e água, mas não conseguiu vencer o mar e as hipócritas e criminosas barreiras geográficas e legais que separam o Oriente Médio em chamas da Europa. A tragédia dos imigrantes não é problema de um só país. É problema do mundo. É problema nosso. Mas, repita-se, é problema principalmente dos que vivem em algazarra com a riqueza dos outros. A Europa sugou até às tripas a África e parte da Ásia. Agora, tem que devolver ao menos o suficiente para dar mínima dignidade aos que fogem da morte. A humanidade deve repetir aos donos do mundo, incansavelmente, a história de Aylan. François Hollande, a foto de Aylan é sua. David Cameron, veja de novo a foto de Aylan. Você é o responsável. Heinz Fischer, pegue a foto daquele corpo! Matteo Renzi, não esqueça da foto de Aylan. Mariano Rajoy Brey, a foto de Aylan… Barack Obama, guarde bem sua cópia da foto de Aylan. Ele tinha só três anos, senhores. Vocês o mataram.

Conhecido através do teatro, adaptações para televisão e traduções, O Diário de Anne Frank é incrível documento humano que continua a chocar e a emocionar. Revela a nobreza descomunal de um espírito amadurecido no sofrimento, da adolescente assassinada por Adolf Hitler em Auschwitz. Aylan não teve a chance de chegar à adolescência. Sofreu muito em seus três anos de Síria em explosão permanente. Porém a força da sua foto morto o levará a gerações futuras e poderá libertar sofredores como ele e até impedir novos desastres. Sua foto é um livro, um documento, uma carta à humanidade, um pedido de socorro. O Clube da Festa se assustou com a foto de Aylan. O Diário de Anne Frank é um livro que aprofunda e aumenta nossa compreensão da vida e da personalidade de um dos mais fortes símbolos da luta contra a opressão e a injustiça. Milhões perderam a vida em campos de concentração. O que vemos hoje são campos de extermínio a céu aberto. Africanos e asiáticos agonizam até à morte aos olhos do mundo. Bem abertos, por sinal. Atônitos. O espetáculo é pavoroso. A esperança está na foto de Aylan.

Edmar Oliveira, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.