Estou elaborando uma lista de livros que, circulando em Buenos Aires, na Argentina, ainda não foram editados no Brasil. São sugestões tanto para as editoras — Companhia das Letras, Record, Todavia, Intrínseca, Autêntica, L&PM, Amarilys — quanto para os leitores.

Com os cinco livros desta semana, a lista chega a 30 obras arroladas. Devo publicar mais uma ou duas listas.

As obras mencionadas foram editadas na Argentina, na Espanha e no México. Quase todas podem ser conferidas nos sites das livrarias portenhas, como Eterna Cadencia, Guadalquivir, Libros de Passaje, Fondo de Cultura Económica (onde adquiri o livro sobre o escritor e crítico francês Ramon Fernandez), Cúspide, Waldhuter (uma distribuidora), Edipo, Hernández (onde vi vários livros de autores brasileiros — Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Ronaldo Correia de Brito, Andréia del Fuego) e Yenny.

Espero que o trabalhão que tive para traduzir os principais trechos e condensar os livros seja útil aos leitores e dirigentes de editoras. O dicionário “A Paris de Cortázar”, além de informativo sobre escritores, músicos, pintores, que conviveram ou não com o escritor argentino, é fartamente ilustrado. Os verbetes contribuem para a compreensão do homem, do intelectual, do grande leitor e do escritor de obras como “O Jogo da Amarelinha” e “Os Prêmios”.

O livro sobre o café e os cafés — ou cafeterias, como dizemos no Brasil — é excelente. Bem escrito, informativo e, por vezes, divertido. Há aquela “graça” dos bons narradores. Diria que o doutor em literatura Antoni Martí Monterde é, acima de tudo, um grande narrador; portanto, um escritor.

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El París de Cortázar — Juan Manuel Bonet

Nascido na Bélgica, mas argentino por opção — seus pais eram argentinos —, Julio Cortázar (1914-1984) acabou por adotar Paris como sua morada definitiva (inclusive está enterrado no cemitério de Montparnasse, na capital francesa, não muito longe do poeta peruano César Vallejo).

Cortázar é autor de várias histórias extraordinárias e escreveu ao menos uma obra-prima — “O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras, 592 páginas, tradução de Eric Nepomuceno). O título do livro em espanhol é “Rayuela”.

“El París de Cortázar” (RM, 206 páginas), de Juan Manuel Bonet, é um dicionário ou uma enciclopédia. Como afirma a editora, é sobre a “Paris que fascinou Cortázar e que ele recriou em sua obra”.

Bonet, além de falar de Paris, relata os encontros, pessoais e culturais — certas identidades, com algumas discordâncias —, entre Cortázar e outros criadores que moraram ou circularam por Paris (alguns deles, como Keats, Rimbaud e Rilke, o autor de “Os Prêmios” não conheceu, mas amou suas obras e, por vezes, até como viveram). São listados escritores (Robert Musil, Artaud, André Breton, Jules Supervielle, Paul Valéry, Faulkner), pintores (Rembrandt, Picasso, Francis Bacon, Salvador Dalí, Remedios Varo. A catalã-mexicanizada era respeitada pelo escritor), diretores de cinema (Buñuel, Alain Resnais), músicos e cantores (Charlie Parker, Count Basie, John Coltrane, Louis Armstrong, Billie Holiday, Ella Fitzgerald), compositores eruditos (Mozart, Alban Berg, Anton Webern, John Cage, Pierre Boulez, Schoenberg. Webern, compositor austríaco, “é um nome -chave na poética cortaziana).

Brasileiros citados: poetas concretos e Jobim

João Gilberto, Tom Jobim e Stan Getz: talento valorizado por Cortázar | Foto: Reprodução

Três brasileiros são citados en passant: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Tom Jobim. “Na bibliografia jocyiana conservada na biblioteca de Cortázar destaca-se ‘Panorama do Finnegans Wake’ (São Paulo, Perspectiva, 1971), de Augusto e Haroldo de Campos, este, o autor da dedicatória.” A informação está na página 95, no verbete sobre James Joyce.

Ao comentar sobre o saxofonista Stan Getz, Bonet, ecoando Cortázar, postula: “São memoráveis suas versões das canções de Antônio Carlos Jobim, como ‘Desafinado’ e ‘Garota de Ipanema’”.

A respeito do autor de “Ulysses”, Cortázar escreveu, no “Cuarderno de Bitácora”: “Joyce é um símbolo do século [20] — não é um poeta, e sim um filólogo genial”.

O escritor mexicano Carlos Fuentes, citado no dicionário, escreveu: “A prosa de ‘Rayuela” é em espanhol o que é a prosa de ‘Ulysses’ em inglês”. Luis Harss acrescentou: “Não será um exagero chamar” o romance de Cortázar “de o nosso ‘Ulysses’”.

Graças a Cocteau e à “Opium”, Cortázar conheceu a obra do enigmático Lautréamont, que apreciava. O livro “Os Cantos de Maldoror” (traduzidos no Brasil por Joaquim Fontes Brasil e Claudio Willer para as editoras Unicamp e Iluminuras) é citado em “O Jogo da Amarelinha”.  

Balzac, de acordo com Bonet, “é figura central na reflexão de Cortázar sobre Paris. Em ‘Rayuela’ há alusões diretas a ele”.

Stéphane Mallarmé: poeta francês admirado por Julio Cortázar| Foto: Reprodução

O compositor Béla Bartók era dos preferidos de Cortázar — assim como os músicos e cantores de jazz. O escritor era um jazzófilo. E também apreciava boxe.

Samuel Beckett se tornou “uma referência muito importante para o Cortázar dos anos parisienses”. O autor de “Valise de Cronópio” (Perspectiva, 254 páginas, tradução de Davi Arrigucci e João Alexandre Barbosa) contou que, ao entrar numa agência do correio da cidade, trombou — ele fala num “abraço involuntário” — com o autor de “Esperando Godot”. Os dois pediram desculpas. O escritor irlandês não sabia quem era o argentino. Mas o criador de “O Livro de Manuel” contou que seguiu seu “caminho com uma grande felicidade”.

O cineasta Luis Buñuel era uma das paixões de Cortázar. Em 1963, escreveu para o espanhol: “Querido Buñuel: sim, querido Buñuel, querido por tudo que você é e por tudo que tem feito e que está fazendo para arrancar deste mundo estúpido sua casca de costumes tradicionais e podres”.

A turma do nouveau roman francês não era apreciada por Cortázar. Numa carta, de 1959, para Juan Barnabé, ele escreveu que “a técnica de [Michel] Butor e de Nathalie Sarraute lhe aborreciam profundamente”.

Os cafés, como Ramón Gómez de la Serna, eram paixões de Cortázar. “Cortázar foi um grande amante do café e da sociabilidade nos cafés, tanto em Buenos Aires quanto em Paris”, diz Bonet. “Rayuela” arrola o Café de Bébert, o Bonaparte, o Capoulade, o Chien Qui Fume, em Paris (ele também frequentava Les Deux Magots e o Flore). O Richmond de Suipacha, de Buenos Aires, é citado. Em Veneza, o célebre Florian. Do “Cuaderno de Bitácora”: “Elogio do café, onde fomos imortais por um momento. O café: a liberdade, o sentimento de amizade, perfeito”.

O que dizer de Louis-Ferdinand Céline? Que a história e as pessoas não podem perdoá-lo como cidadão. Por outro lado, sua literatura é de uma excelência rara. Trata-se de um mestre e, ao mesmo tempo, um monstro. Bonet afirma que o “narrador francês” era “muito admirado por” Cortázar. “Apesar do abismo que ideologicamente os separa.” Era uma de suas “referências recorrentes”. Não custa lembrar, o que Bonet não faz, que, se o autor do excelente romance “Viagem ao Fim da Noite” (Companhia das Letras, 506 páginas, tradução de Rosa Freire D’Aguiar) apreciava Hitler, Cortázar era admirador e defensor do ditador cubano Fidel Castro.

O chileno Luis Harss conta que, “depois de ler [Jean] Cocteau”, Cortázar jogou fora “metade de sua biblioteca e se jogou de cabeça no vanguardismo. Cocteau o levou a Picasso, a Radiguet (Cortázar apreciava “O Diabo no Corpo”, Companhia das Letras, 136 páginas, tradução de Paulo Cesar de Souza), à música do Grupo dos Seis, e assim chegou ao surrealismo de Breton, Éluard e Crevel”.

Ao mencionar Joseph Conrad, polonês que escrevia em inglês, Cortázar disse: “Nada me parece mais saboroso que escrever em espanhol”.

Na página 61 há um errinho, ou melhor, dois. Primeiro, a grafia correta do “codinome” de Karen Blixen é Isak Dinesen. Não é Izak. Segundo, a escritora é dinamarquesa, não é sueca.

Gombrowicz, Mallarmé e Lezama Lima

Witold Grombrowicz: escritor polonês que morou na Argentina

“Cortázar admirava profundamente” o escritor polonês Witold Gombrowicz, que morou em Buenos Aires.

O poeta romântico John Keats era uma das obsessões de Cortázar. Estaria acima de Byron, Coleridge e Shelley.

Sobre o bardo Jules Laforgue, Cortázar escreveu: “Sempre admirei em Laforgue o sentido exato, aniquilante, da proporção universal. Único poeta francês que observa literariamente a realidade”.

O prosador e poeta cubano José Lezama Lima (autor do romance “Paradiso”, muito bem traduzido no Brasil por Josely Vianna Baptista) é apontado por Bonet como “um dos faróis de Cortázar”. O argentino sempre buscou divulgar sua literatura.

Mallarmé, um dos “faróis” de Cortázar, foi outra descoberta proporcionada por Cocteau e “Opium”. Ele tinha paixão pela poesia de Rimbaud e Mallarmé.

Um poema de Octavio Paz é citado em “O Jogo da Amarelinha”. O poeta e ensaísta mexicano era “uma referência fundamental” para Cortázar. Os dois eram amigos e “falavam muito de Mallarmé e de John Cage”. O argentino escreveu o poema “Jardín para Octavio Paz”.

A prosa de Georges Perec interessava a Cortázar (e os dois amavam gatos). Em 1980, quando dava aulas em Berkeley, o francês do Oulipo disse aos alunos que Cortázar era “um escritor extraordinariamente inteligente e experimentado”.

Embora mais jovem, Alejandra Pizarnik, a notável poeta argentina, se tornou amiga de Cortázar. Ele escreveu o poema “Aquí, Alejandra”. Compartilhavam “o interesse por estudos sobre o romantismo de Albert Béguin ou de Marcel Raymond, por Lautréamont, por Klee, por Michaux”.

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Poética del Café — Antoni Martí Monterde

Uma cidade se torna cosmopolita pelo fausto de seus habitantes — de parte deles, ao menos? Talvez. Talvez. Talvez. Mas é provável que, para se tornar moderna, uma urbe precisa mesmo são de cafés aconchegantes e que, sobretudo, sirvam café de qualidade (sem açúcar, please), com algum acompanhamento. Goiânia, uma adolescente de 90 anos, com cerca de 1,5 milhão de habitantes, conta com cafés de primeira linha (e nem se está falando da chiqueza de um London Café City, de Buenos Aires).

Candice Marques de Lima, professora da UFG, que ama café e cafeterias, lista alguns de seus prediletos na capital do Cerrado: Rensga, Cafeteria Ipê, Luiz Café Conceito, Café do Mundo, Ópera Café Bistrô, Tia Nair Café, Cafezim & Companhia, Aravo Café e Cafeteria da Livraria Palavrear (que, lembrando a portenha Eterna Cadencia, tem a vantagem de contar com ótimo acervo de livros — o melhor do burgo construído por Pedro Ludovico, em 1933). Às vezes, almoço por lá um sanduíche e, não raro, uma salada saborosos. Vasculho as prateleiras e as mesas, leio trechos de livros e… avanço para o café. É um prazer, não só o café, mas perceber tanta gente, além de tomar a bebida, falando de cultura e, claro, sobre a vida — seus prazeres e dificuldades. O professor da UnB Sérgio de Sá gostou tanto do pedaço que deixou por lá exemplares do livro do livro “Bernardo Sayão — Caminhos, Afetos, Cidades”. É uma história bem-construída sobre seu avô e que merece ser levada ao cinema, com produção americana (leia-se bufunfa) e brasileira. No Muy Café compra-se bons cafés. De quebra, toma-se uma xicara de coffe… como degustação.

A lembrança dos cafés de Goiânia tem a ver com o livro “Poética del Café — Un Espacio de la Modernidad Literaria Europea” (Hurtado y Ortega Editores, 503 páginas), de Antoni Martí Monterde, professor de literatura comparada da Universidade de Barcelona.

Antoni Monterde começa seu livro informando que Stefan Zweig, que se suicidou no Brasil, em 1942, “é um dos escritores de café mais importantes da Europa”. Peter Altenberg, “um tanto esquecido”, é “um pequeno grande homem de café vienense”.

Homem do café e de cafés, as cafeterias, Antoni Monterde diz que usa os cafés para ler e escrever. Estudante em Barcelona, ficou estupefato ao descobrir que os cafés, os cafés verdadeiros — acolhedores da diversidade humana —, haviam dado lugar às franquias famosas que há em quase todas as grandes cidades.

Chateado, Antoni Monterde saiu à procura de “alguns locais quase secretos”, onde se “refugiou”. O que o autor toma? Ora, café com leite.

Buenos Aires, a capital dos cafés

Na Argentina, convidado para dar aulas de literatura, Antoni Monterde trafegou pelas principais vias e bairros, como Centro, Recoleta, Palermo, Belgrano, Chacarita — em busca, claro, de cafés, livrarias e bibliotecas. “Todas as viagens começam e terminam numa biblioteca”, assinala. “Todo homem de letras deveria ir, alguma vez em sua vida, a uma cidade que o chama de maneira tão ensurdecedora a partir de uma biblioteca.”

Candice Marques de Lima no Café London City, em Buenos Aires, onde Julio Cortázar apreciava tomar café e escrever suas histórias | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Em Buenos Aires, cidade dos múltiplos cafés — Tabac, London City, El Gato Negro, Tortoni, La Biela —, Antoni Monterde lembrou-se de Witold Gombrowicz, polonês que morou na capital argentina, Ramón Gómez de la Serna, Ortega y Gasset, Alberto Londres (quiçá o inventor do novo jornalismo) e, entre outros, Paul Valéry. “Todos haviam ido a Buenos Aires, como imigrantes, turistas [viajantes], conferencistas, e em muitos casos acabaram como exilados. Todos se sentaram às mesas dos mesmos cafés que eu frequentava.”

Na segunda viagem a Buenos Aires, Antoni Monterde havia se comprometido a dar uma conferência “sobre o diário como forma literária”. Porém, bloqueado, não conseguiu escrever o texto para a palestra. Na cidade, passeando pelo Centro, deu com um café, entrou, sentou-se próximo de uma janela e, como num passe de mágica, começou a escrever o ensaio. Saiu quase de um jato, depois de algumas horas. “Foi um autêntico momento decisivo: havia me descoberto como um escritor de café, e também como escritor en viaje’.”

Nos cafés de Buenos Aires, Antoni Monterde prestou atenção nos frequentadores que escreviam e liam — o que pude constatar, algumas vezes, no La Biela, na Recoleta.

Ramón Gómez de la Serna: aficionado por café e cafés | Foto: Reprodução

“Sem o café [o autor escreve Café, com C maiúsculo] não é possível explicar a escritura nem a ideia de modernidade literária ocidental”, sublinha Antoni Monterde. “O café conta a história cultural europeia.”

De acordo com o quase-“biógrafo” do café, a unidade entre a literatura e o café é “indissolúvel”.

Na volta a Barcelona, Antoni Monterde colheu suas anotações — “manchas de café incluídas” — e publicou “La Erosión”, com a conferência e um relato sobre sua frequentação aos cafés e librerías de viejo’” (sebos). “Foi em Buenos Aires onde compreendi o que é um café europeu. Porque, como todo mundo sabe, Buenos Aires é a maior cidade europeia do mundo, ainda que esteja tão longe.”

Em “La Erosión”, Antoni Monterde imagina um encontro entre Ramón Gómez de la Serna e Josep Pla, “em uma mítica confeitaria da Rua Florida”. Os dois, sabe-se, adictos do café e de cafés.

Entre os apaixonados por cafés estavam Josep Pla, Ramón Gómez de la Serna (adorado tanto por Antoni Monterde quanto por Julio Cortázar), Peter Altenberg, Jean Paul-Sartre, Simone de Beauvoir, Karl Kraus, Albert Camus, Sándor Márai, Joseph Roth, Claudio Magris e Stefan Zweig. Muitos deles, como “Bovoartre”, escreviam em cafés. Quase moravam lá.

O primeiro rascunho de “Poética do Café” foi escrito no Café Carabela, na Galicia.

Stefan Zweig e Lotte, sua mulher: o escritor era aficionado por cafés | Foto: Reprodução

“O café seria um lugar fundamental, central e marginal ao mesmo tempo, onde se originaria e desenvolveria o processo da modernidade”, escreve Antoni Monterde. “Paris é um grande café”, anotou Jules Michelet. “Tudo acontecia nos cafés e o que não ocorria nos cafés não existia. O café aguça a inteligência e aviva a sociabilidade. A decadência do café implica na decadência de uma civilização inteira”, disse Josef Pla “sobre a Barcelona do último terço do século 19”. “Enquanto existir cafés, a ideia de Europa terá sentido.”

De acordo com o autor do livro, “o primeiro estabelecimento europeu específico para” o café “abriu suas portas no ano de 1650, em Oxford; foi a primeira Coffe House inglesa e legou seu nome ao resto, entre elas, The Grecian, a decana de Londres, que se fundou em 1652”.

“Na França, embaixadores do sultão de Constantinopla na corte de Luis XIV introduziram” o café “nas suas recepções, estendendo a moda por toda a Paris e seus salões. (…) As senhoras costumavam vestir-se com roupas orientais para beber” café “em suas reuniões”.

Em 1672, o florentino Francesco Procopio dei Coltelli fundou o café Le Procope, em Paris.

O mítico Café Florian abriu suas portas, em Veneza, em 29 de dezembro de 1720. Mas “a primeira bottega da Caffè teria sido fundada na cidade em 1683”.

Viena acabou por suplantar Veneza como “capital europeia do café”. Em 1683 já havia um café na cidade. Turcos que estiveram na França e na Itália também implantaram o gosto pelo café na Áustria.

Naquele ano, segundo a lenda, o polonês Kolschitzky “inaugurou o primeiro estabelecimento dedicado ao consumo” de café. Ao se retirarem, os otomanos deixaram várias sacas de café em Viena.

Bioy Casares e Jorge Luis Borges “no” La Biela: o segundo, grande poeta da Argentina, apreciava café com leite | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Criativo, Kolschitzky “começou a coar o café antes de servi-lo, além de misturá-lo, pela primeira vez, com leite, criando o que, a partir de então, se conhecerá como café vienense”. Trata-se de uma lenda. Mas bela e, sim, não necessariamente falsa.

Jorge Luis Borges declarava: “O café com leite é uma mistura insuperável”. O inventivo pintor Xul Solar, segundo o bardo argentino, “chegou a mesclar café com molho de tomate (repugnante) ou sardinhas com chocolate (atroz). (…) Nada poderá superar o café com leite (seu inventor deve ter sido um ser excepcional), que é riquíssimo [muito bom] e é a combinação por excelência”.

Josep Pla detestava café com leite, sugerindo que era uma mistura “medíocre”. O mesmo Pla disse: “Tenho sido um grande bebedor de café. Bebi mais café do que álcool. Porém, o curioso é que não sei se o café gosta de mim ou não”.

Aficionado por café, Ramón de la Serna disse que se deve escrever o local — a cafeteria — com maiúscula e a bebida em minúscula.

O café, ou a cafeteria, como se diz no Brasil, é “um lugar sem certezas, cheio de incertezas, que consegue fazer do tempo que se passa em suas mesas algo irrelevante e expectante, às vezes, como ocorre em um café vienense descrito por Joseph Roth: ‘Sair do café e ver a luz do sol era como despertar no meio de um sonho. Dentro se parava o tempo’”.

Para Sebastià Gasch, o Café Flore, de Paris, iguala-se ao próprio café. Seria, de tão interessante, uma espécie de cafeína. Praticamente viciante, no bom sentido. Volta-se sempre ao café.

Julio Camba escreveu: “Os verdadeiros homens de café… vão ao café, e isto é tudo. Vão ao café para estar no café”. Não mais do que isto. É um prazer… sensual. Do espírito.

Referindo-se ao café Central de Viena, Alfred Polgar declarou que o café é “um verdadeiro asilo para homens que buscam matar o tempo para não serem mortos por ele”.

O pesquisador frisa que “estar num café supõe interromper a continuidade da vida para, desde essa interrupção, pensá-la”.

Josep Pla sugeriu que “os espanhóis vão ao café, não precisamente para tomar café, e sim para realizar um ato de sociabilidade fundamental em nossa maneira de ser”.

Ramón Gómez de la Serna filosofa: “O café é a vida interior da cidade como cidade; é o parlamento desinteressado, a comprovação da vida em mil ângulos da urbe”.

O livro de Antoni Monterde é uma delícia, como um bom café (vende-se cafés buenos no Mui Café, em Goiânia) e sorvete de coco. Não aprecio sorvete, exceto o de coco, sempre o da sorveteria Beijo Frio, na Avenida 84, no Setor Sul.

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La Matanza Negada — Tomás Abraham

Quem assassinou 6 milhões de judeus? Os nazistas alemães, sob a liderança de Adolf Hitler e Heinrich Himmler. Mas é preciso ampliar a verdade. A extrema-direita da Hungria e da Romênia participaram ativamente da matança de milhares de judeus. Os romenos eram tão implacáveis quanto os germânicos — e às vezes tinham de ser contidos pelos parceiros do país-líder. Então, se a responsabilidade principal recai na Alemanha e na dupla Hitler e Himmler, os artífices do crime inominável, parte deve ser compartilhada com as lideranças dos dois países citados. Militares e civis se uniram para matar judeus. É o fato.

O livro “La Matanza Negada — Autobiografía de Mis Padres” (Editorial El Ateneo, 335 páginas), do filósofo Tomás Abraham, conta uma história que, quase escondida, é uma espécie de outra história. Ainda que, claro, altamente conectada à história geral da Shoah.

Os pais de Abraham, judeus da Romênia, escaparam do Holocausto e se radicaram na Argentina. Abraham nasceu na Romênia. Seus genitores nunca falaram, exceto de maneira episódica, sobre o que havia acontecido. Por isso, o filho decidiu vasculhar a história coletiva e a individual.

Os nazistas, com o apoio da direita de líderes locais, assassinaram 350 mil judeus na Romênia. Viviam mais de 700 mil no país. Liquidaram a metade. Abraham frisa que “57% dos judeus romenos se salvaram, a maior cifra de sobreviventes da Europa Central”.

O Museu do Horror da Hungria concentra sua crítica ao totalitarismo soviético — esquecendo, propositadamente, da violência da extrema-direita do país, em conluio com o nazismo. “A respeito da matança de judeus, nos anos 1940, nada”, denuncia o filósofo. O negacionismo é sinônimo de mentira, no caso.

Adolf Hitler e Heinrich Himmler: os formuladores do Holocausto | Foto: Reprodução

Há quem fale em “homens comuns” matando judeus. Abraham discorda: a matança dos judeus foi um trabalho com um grau de elaboração e sofisticação que pressupõe a ação de profissionais — inclusive intelectuais e cientistas. Gente, ressalta o filósofo, de “muito talento”.

Por trás de homens aparentemente “medíocres”, como Adolf Eichmann, havia um “sistema operacional” muito bem elaborado. “Homens de talento criaram os princípios que legitimaram a vontade de massacrar”, assinala Abraham. “Conjugaram o fascismo com o talento. A vontade de matar com arte.”

Havia um problema social na Romênia? Pois, reelaborado, ele “se converteu em um problema étnico”. Assim como na Alemanha, os judeus, que eram solução, se tornaram um “problema” a ser eliminado.

Na Romênia foi assim: primeiro os judeus foram segregados, depois penalizados, em seguida expulsos e assassinados.

“Em 24 de julho de 1934, antes das leis raciais de Nüremberg, a Romênia decretou uma lei de emprego pela qual 80% do pessoal nas empresas deveria ser romeno, e 50% nos conselhos de direção, o que fez com que os judeus donos de fábricas tivessem de designar administradores sem perícia no manejo gerencial, que, necessariamente, dependiam das diretivas dos patrões afastados”, relata Abraham.

Ion Antonescu e Hitler: cúmplices no assassinato de milhares de judeus na Romênia | Foto: Reprodução

Com a guerra, Hitler autorizou que a Hungria, sua aliada, passasse a controlar a Transilvânia, território da Romênia. O rei Carol II foi afastado e assumiu seu filho Miguel. O governo havia sido formado pelo general Ion Antonescu e, em seguida, pelo chefe da Guarda de Ferro, Horia Sima.

Abraham nota que, no século 21, a Hungria do direitista Viktor Orbán, se condena Stálin, absolve o militar Ion Antonescu, que, entre 1941 e 1944, perseguiu e mandou assassinar judeus.

Corrupção e salvação dos judeus

Por causa da corrupção das autoridades, judeus de Bucarest, do Banato e do sul da Transilvânia escaparam das garras letais do nazismo. “No Leste, o massacre contra os judeus foi infernal. Os romenos a perpetraram de um modo tão selvagem que até os alemães solicitaram um freio à desenfreada matança”, sublinha Abraham.

Apoiado por Hitler, Antonescu decidiu fuzilar legionários da extremista Guarda de Ferro. Os “milicianos”, em 1941, como retaliação, mataram centenas de judeus. “Levaram judeus para um bosque, onde foram mutilados, metralhados e enforcados. Levaram outros judeus para um matadouro. Lá foram torturados, assassinados e colocados em ganchos com um cartaz colado nos seus corpos que dizia: ‘Carne kosher’.”

Ainda em 1941, houve um pogrom em Iaci, principal cidade da Moldávia. Com o apoio de tropas romenas e alemãs, grupos de civis arrancaram judeus de suas casas, os mataram e, depois, jogaram os corpos em fossas comuns.

Sob ordens do vice-presidente do Conselho de Ministros, Mihail Antonescu, o coronel C. Lupu e o geral alemão E. von. Shobert coordenaram a matança de judeus. (Como nota o historiador francês Florent Brayard, milhares de judeus foram assassinados fora dos campos de concentração e extermínio, notadamente no Leste Europeu. São menos lembrados do que os judeus massacrados nos campos de extermínio.)

O pogrom de Odessa foi exposto pelo “Livro Negro”, de Vassili Grossman (autor do notável “Vida e Destino”, publicado no Brasil, pela Alfaguara, com ótima tradução de Irineu Franco Perpétuo) e Ilya Ehrenburg. Em 1941, os assassinatos começaram pelos médicos judeus. Muitos foram enforcados e jogados em fossas comuns.

“Em outubro de 1941, dez mil judeus foram sacados do cárcere e foram metralhadores fora da cidade. Era uma cidade de enforcados”, relata Abraham. Os romenos, conduzidos pelos alemães ou agindo por conta própria, são responsáveis pelo massacre.

A matança articulada pelos romenos, com o apoio dos alemães, era de grande proporção, mas não em escala industrial, como em Auschwitz, Treblinka e Sobibor. Ainda assim, já se matava em alta escala. Os campos de extermínio foram, por assim dizer, a profissionalização e a ampliação da matança pelo Estado alemão.

Abraham diz que seu livro é uma tentativa de entender por que os pais sobreviveram à perseguição dos nazistas. O filósofo conta que Wilhelm Filderman, representante comunitário dos judeus romenos, pediu ao marechal Antonescu a redução da violência contra seu povo.

Filderman, Nicolae Balan (chefe da Igreja Ortodoxa), Andrea Cassulo (núncio apostólico de Bucarest), Alexandre Safran (“grande rabino”) e o barão Franz von Neumann contribuíram para reduzir o número de mortes de judeus romenos. Por causa da interferência deles, muitos judeus “não foram obrigados a costurar uma estrela amarela” em suas roupas. “Os judeus do sul da Transilvânia e do Banato, uma comunidade de 40 mil judeus, não foram enviados em vagões de morte para Auschwitz.”

Na verdade, o governo de Antonescu não tinha nenhuma boa vontade com os judeus. Ele foi pago, com muito dinheiro, para deixar judeus sobreviverem. “O barão Franz von Neumann e Max Ausschnitt também repassaram 50 milhões em francos suíços à fundação patrocinada por Maria Antonescu, filantropa e esposa do ditador.”

Em 11 de novembro de 1942, o jornal “Bukarester Tageblatt” denunciou o barão Newmann “como responsável pela interrupção do envio de judeus para os campos de extermínio”.

Os pais de Abraham se salvaram pelo que se disse nos últimos três parágrafos.

Abraham escreveu que, quando visitou a Romênia, em 1995, o Prêmio Nobel de Literatura Elie Wiesel, romeno, apontou a responsabilidade do governo de Ion Antonescu no genocídio dos judeus. Por dizer a verdade nua e crua, a inconveniente verdade, o escritor foi criticado duramente por jornais do país.

Vale um breve registro: o livro de Abraham não deixa muito bem os notáveis romenos Mircea Eliade e Emil Cioran. De cosmopolitas passaram a advogar, de uma hora para outra, pelo nacionalismo étnico.

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Auschwitz — Florent Brayard

O livro “Auschwitz — Investigação Sobre un Complot Nazi” (Arpa, 575 páginas, tradução de Javier García Soberón), do historiador francês Florent Brayard, é o tipo de obra que reabre a história, possibilitando um novo debate sobre o nazismo de Adolf Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels e o Holocausto.

A obra é elogiada por Ian Kershaw (“um livro relevante que deveria ser lido por qualquer pessoa que queira aprofundar-se na compreensão do Holocausto”), Robert Paxton, Michael Marrus e Dan Michman (diretor do Yad Vashem).

Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Brayard é um dos maiores pesquisadores da Shoah.

Brayard começa sua história relatando que, em Minsk, em 1942, Adolf Eichmann presenciou o assassinato de judeus, de tão perto que sangue e fragmentos de cérebro “mancharam” sua roupa. “Por que contar essa história, que o colocava no coração do ato dos assassinatos” de judeus? “Meu motorista limpou os pequenos pedaços de cérebro de meu agasalho”, relatou o nazista.

Todas as lideranças nazistas foram informadas a contento sobre a Solução Final — a matança total dos judeus? Brayard sugere que não.

Em 29 de março de 1942, o ministro da Imprensa e da Propaganda, Joseph Goebbels, um dos nazistas mais próximos de Adolf Hitler, anotou no diário que “acabara de ser informado sobre o assassinato dos judeus no Governo Geral, o território polonês sob jugo alemão mas não integrado ao Reich”.

Joseph Goebbels e Adolf Hitler: dois chefões do nazismo | Foto: Reprodução

Entretanto, enfatiza Brayard, “até outubro de 1943, na ocasião do discurso pronunciado por Himmler em Posen ante os mais importantes líderes do partido, Goebbels não havia sido informado nem compreendido que a ‘Solução Final’, naquele momento praticamente concluída, era de fato um assassinato sistemático que se aplicava sem distinção a todos os judeus europeus sob dominação alemã”.

Então, a Solução Final da questão judaica era, de certo modo, um segredo mesmo para membros da cúpula nazista, como Goebbels.

“A Solução Final’ da questão judaica — o assassinato sistemático dos judeus europeus — foi concebida no mais absoluto dos segredos, ou ao menos o maior segredo possível”, assinala Brayard.

Na Conferência de Wannsee, em 1942, decidiu-se que todos os judeus europeus seriam assassinados. Mesmo assim, enfatiza Brayard, “o círculo de conhecedores do segredo era muito mais restrito do que se pode pensar”.

Havia uma política de comunicação que liberava informações a conta-gotas, por assim dizer, sobre a extensão do assassinato dos judeus. Porém, “em outubro de 1943”, tal “política de comunicação experimentou uma inflexão fundamental: em Posen, ante as mais altas autoridades políticas, de segurança e militares, Himmler explicou pela primeira vez o que havia sido a ‘Solução Final’”.

Figura chave do Holocausto, ao lado de Hitler, Himmler disse que a “Solução Final” havia terminado, ou quase. O que, mesmo em 1943, Goebbels “não” havia entendido direito.

Heinrich Himmler e Adolf Hitler: os arquitetos da Solução Final, o Holocausto | Foto: Reprodução

A palavra “complô” não é satisfatória, mas Brayard diz que deve ser usada para explicar como Hitler e Himmler “esconderam”, em certa medida, a “Solução Final” dos principais nazistas.

O chefe do Estado, Hitler, “fazia parte do complô”, assinala Brayard. “Hitler e Himmler escolheram perpetrar o assassinato rápido e indiscriminado dos judeus da Europa por intermédio do aparato policial, unido pelo segredo; e eles, no mesmo movimento, decidiram não [grifo de Brayard] informar ao restante do aparato do Estado, salvo exceções, de todas as vertentes dessa política transgressora, ainda que alguns a conhecessem por outros meios.”

De acordo com Brayard, “o complô consistiu portanto, para os responsáveis e executores da ‘Solução Final’ entendida como um assassinato, em deixar que o restante do aparato do Estado acreditasse que não ocorria nada”.

Brayard observa uma questão pouco apontada: milhões de judeus — os Ostjuden — do Leste, soviéticos, poloneses, ucranianos e lituanos, foram assassinados, e não em campos de extermínio. Eram executados com armas. A morte desses judeus “era conhecida tanto das elites quanto de boa parte do povo alemão”.

Adolf Eichmann: o nazista que enviou milhões de judeus para morrer nos campos de extermínio | Foto: Reprodução

“O assassinato dos judeus alemães, mais precisamente dos que viviam no Oeste, no Sul e no Norte da Europa, tinha uma carga transgressora muito maior, pelo próprio fato de sua proximidade com os membros das sociedades em que viviam. (…) O assassinato dos judeus ocidentais se decidiu mais tarde e foi objeto de procedimentos específicos, e justamente para ocultá-lo se levou a cabo um segredo reforçado, superlativo que se assemelhou a um complô”, postula Brayard.

Segundo Brayard, dos 6 milhões de assassinados pelo nazismo de Hitler e Himmer dois terços eram de judeus do Leste, os Ostjuden. O pesquisador francês diz que é seminal prestar mais atenção a essa informação. É preciso, por assim dizer, incluir os judeus do Leste (“os outros”) no genocídio — que, frise-se, não ocorreu tão-somente nos campos de extermínio.

O scholar francês destaca que “os primeiros massacres de judeus em território soviético ocupado se perpetraram antes, ou inclusive antes de que surgisse um projeto de assassinato generalizado”. Os nazistas não faziam questão de esconder a mortandade no Leste.

Posta a questão, de que é preciso incluir os assassinatos dos judeus do Leste como parte do Holocausto, Brayard retoma a questão da Solução Final. Em 1942, na reunião da qual participaram Reinhard Heydrich e Eichmann, em Wannsee, decidiu-se que havia chegado o momento de matar todos os judeus europeus. Mas o pesquisador ressalva que o encontro ainda não era “uma espécie de anúncio das câmaras de gás de Auschwitz [Sobibor e Treblinka]. Porque a construção dos quatro complexos de gasificação e cremação que deram ao campo sua dimensão industrial se decidiu meio ano mais tarde”. Por isso, o historiador sugere que é preciso ter cuidado com exposições que resultam de anacronismo.

Florent Brayard: um dos principais estudiosos do Holocausto | Foto: Reprodução

Brayard frisa que o projeto descrito por Heydrich ainda não tinha a ver com assassinatos imediatos. “É provável que em Wannsee, no curso das conversações, se mencionasse a perspectiva de uma sobrevivência a médio prazo dos judeus deportados; os participantes da conferência seguiram pensando, durante o ano de 1942, nessa deportação ao Leste como um simples traslado”.

Na época da conferência de Wannsee, “o Escritório Central de Segurança do Reich previa ainda, em âmbito interno, que os judeus alemães deportados fossem trasladados de novo ao final do verão mais ‘para o leste’: portanto não se pretendia matá-los imediatamente”.

O campo de Auschwitz foi construído para matar os judeus europeus. “Auschwitz era a ferramenta da ‘Solução Final’. Seu balanço — mais de 1 milhão de mortos — superou por pouco ao de Treblinka.” Neste campo se matou os judeus poloneses. O escopo de Auschwitz era mais amplo: matar os judeus alemães, franceses, búlgaros, romenos e húngaros? Não foi bem assim, sublinha Brayard. Os judeus do Leste não foram, em larga medida, assassinados em Auschwitz. “Em certo sentido, quando se fala do genocídio dos judeus, sempre será preciso dizer Babi Yar e Auschwitz, ou inclusive Babi Yar, Treblinka e Auschwitz.”

O expert no Holocausto enfatiza que, quando fala em genocídio, não está se referindo tão-somente a Auschwitz. Este campo de extermínio deve ser visto, isto sim, como “a última configuração da política antijudaica, pela qual todos os judeus, e já não só os judeus do Leste, deviam ser assassinados. (…) O campo foi transformado progressivamente em um lugar industrial de extermínio a partir da primavera de 1942”. O livro de Brayard merece publicação no Brasil por vários motivos, sobretudo por avançar na discussão da Holocausto, ressaltando questões não discutidas ou ao menos pouco debatidos pelos livros já editados no país.

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Ramon Fernandez — Dominique Fernandez

O francês Ramon Fernandez (sem acento agudo no “o” de Ramon e no “a” de Fernandez) era filho do diplomata mexicano Ramón Fernández e da jornalista francesa Jeanne, uma das fundadoras da revista “Vogue”. Tornou-se membro do Conselho Editorial da Gallimard aos 20 anos. Crítico literário, chamou a atenção de Proust, de quem se tornou amigo. Na década de 1930, tendo trocado o viés cosmopolita pelo nacionalismo radical, aderiu às ideias nazistas. Porém, por ter morrido em 1944, não foi julgado por colaboracionismo.

O escritor Dominique Fernandez, seu filho e membro da Academia Francesa, decidiu investigar a vida do pai e o resultado é o livro, muito bom, “Ramon Fernandez — Um Mexicano em París” (Fondo de Cultura Económica, 359 páginas, tradução de Mario A. Zamudio Vega).

Uso a excelente introdução de Rubén Gallo — que, de algum modo, rivaliza com o texto mais complacente de Dominique Fernandez — para compor o texto a seguir.

Ramon Fernandez estudou na Sorbonne — foi aluno de Henri Bergson — e em Cambridge.

Aos 19 anos, publicou um artigo na “Nouvelle Revue Française”. Com formação filosófica sólida, se tornou um crítico literário de prestígio.

Marcel Proust: um dos mais importantes escritores franceses | Foto: Reprodução

Quando deu conferências na Inglaterra, o poeta T. S. Eliot o considerou como “um dos jovens mais promissores de Paris”.

Com pouco mais de 20 anos, durante a Primeira Guerra Mundial, Ramon Fernandez conheceu Proust, que estava escrevendo “Em Busca do Tempo Perdido”, talvez, ao lado da obra de Balzac e Flaubert, o romance-romances mais importante da literatura francesa.

Em 1914, depois de ler críticas literárias de Ramon Fernandez, Proust pediu a Lucien Daudet que o apresentasse ao jovem. Numa carta ao novo amigo, o escritor consagrado, que era homossexual, explicou-se: “Não é um rosto bonito, e sim uma mente bela o que desejo conhecer em você”.

Durante a Grande Guerra (1914-1918) — que só mais tarde passou a ser chamada de Primeira Guerra Mundial —, “Proust atravessou Paris, esquivando-se dos bombardeios alemães para” visitar Ramon Fernandez.

Proust perguntou para Ramon Fernandez: “Posso pedir a você, que sabe italiano, que diga em voz alta a tradução para o italiano de ‘sin rigor’?” O jovem amigo disse: “Senza rigore”. E teve de repetir várias vezes, com Proust escutando-o com os olhos fechados. O escritor usou “senza rigore” no romance “A Sombra das Moças em Flor” (na tradução de Rosa Freire d’Aguiar), numa passagem que versa sobre o salão de Odette.

“‘Senza rigore’ é um termo musical que indica uma passagem que deve ser tocada sem um tempo estrito, mas Proust deu-lhe um sentido mais geral de ‘sem regras estritas’.” No livro tem a ver com a falta de rigor, de precisão, de Odette ao usar palavras e expressões estrangeiras.

Ramon Fernandez: crítico que ganhou elogio de T. S. Eliot e foi amigo de Proust | Foto: Reprodução

De acordo com Rubén Gallo, “Ramon foi uma das últimas pessoas que Proust recebeu antes de morrer”. O pós-adolescente havia lido, com imenso prazer, o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” — “No Caminho de Swann” (Mario Quintana, Fernando Py e Mario Sergio Conti são os três tradutores do livro no Brasil). Ele dizia que “‘Em Busca do Tempo Perdido’ constitui, de maneira inesperada, uma filosofia do conhecimento”.

“Em meados da década de 1930, Ramon Fernandez havia se tornado uma figura chave do mundo literário parisiense. Junto com Gide, Jacques Rivière e Valéry Larbaud, foi colaborador da ‘NRF’”, assinala Rubén Gallo. Na revista, publicou ensaios sobre vários autores, entre eles Proust. “Em 1927 coordenou ‘Cahiers Marcel Proust’, uma revista dedicada inteiramente à obra do escritor.”

Em 1926 Ramon Fernandez publicou seu primeiro livro, “Messages”, uma coletânea de ensaios, um deles sobre Proust. Dois anos depois, lançou “De la Personanalité”, no qual discutia a relação entre a obra e a personalidade do autor. Em seguida, publicou “La Vie de Molière”, “André Gide”, “Moralisme et Littérature”, “L’Homme, est-il Humain?”. Publicou romances: “Le Pari” e “Les Violents”.

O antifascista que se tornou fascista

Nos primeiros anos da década de 1930, Ramon Fernandez se posicionava como antifascista e antistalinista. “Em 1934 foi um dos fundadores do Comitê de Vigilância Antifascista dos Intelectuais e escreveu uma série de artigos contra o totalitarismo.”

Entretanto, em 1937, mudou de lado e se tornou integrante do Parti Populaire Français — partido de direita dirigido por Jacques Doriot. “Ramon passou a ser um dos membros mais ativos do grupo nacionalista, anticomunista e pró-fascista.”

O PPF, durante a ocupação, “colaborou abertamente com os alemães e apoiou as leis raciais antissemitas”. O ministro da Imprensa e Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, recebeu Ramon Fernandez, Pierre Drieu La Rochelle e Robert Brasillach, na Alemanha, em 1941 — em plena Segunda Guerra Mundial.

De acordo com Rubén Gallo, “Ramon não apoiou o antissemitismo da extrema direita. No início dos anos 1930 criticou as declarações racistas de Céline, e repetiu suas objeções em um artigo de 1938 dedicado a ‘Bagatelles Pour um Massacre’”.

Porém, “durante a ocupação, sua atitude foi mais ambivalente: ainda que haja ecos de ideias antissemitas em seus escritos, na prática defendeu autores que os nazistas consideravam ‘degenerados’”. Em 1941, publicou uma homenagem a Bergson. Em 1943, no estudo “Proust”, valorizou o escritor que não era idolatrado pelos nazistas. Mas Rubén Gallo sublinha que preconceitos morais-religiosos impediram que o crítico interpretasse a obra do autor de “O Tempo Redescoberto” de maneira mais elástica.

Simon Epstein escreveu que Ramon Fernandez é um representante do “paradoxo francês”: “Um colaborador antirracista”.

Em agosto de 1944, semanas antes da libertação de Paris do controle nazista, Ramon Fernandez morreu de um derrame cerebral. Ele tinha 50 anos.

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Confira a terceira parte da lista dos livros