Estou elaborando uma lista de livros que, circulando na Argentina, ainda não foram editados no Brasil. São dicas para leitores e editoras brasileiros.

Ao visitar Buenos Aires recentemente, para ir à 48ª Feira Internacional do Livro da cidade, além dos estandes das livrarias dispostos na feira, consultei várias livrarias —Eterna Cadencia, Guadalquivir, Edipo, Libros de Pasage, Fundo de Cultura Económica, Hérnandez, Cúspide, Librería de Ávila. A bela El Ateneo é livraria para turista, como a linda Lello, do Porto.

Na feira, o estande que mais me agradou foi o da Waldhuter, que se tornou uma distribuidora. Estive em vários sebos, como o Dickens, onde comprei o excelente “Um Encuentro Fecundo — Rabindranath Tagore y Victoria Ocampo”, da doutora por Oxford Ketaki Kushari Dyson.

Com os cinco livros da terceira lista, já são 25 livros indicados. O comentário sobre “El Ojo de Goliat”, do escritor argentino Diego Muzzio, radicado na Europa, foi elaborado por Candice Marques de Lima, professora da Universidade Federal de Goiás. As traduções a respeito dos outros quatro livros são de minha autoria.

Diz-se que, como o real está mais “valorizado” do que o peso argentino, os produtos são mais baratos. Ledo engano. Os livros estão caríssimos. Muito mais caros do que as obras publicadas no Brasil. É raro encontrar um livro novo por menos de 80 ou 100 reais. Alguns superam 200 reais e o livro de memórias de Anastasía Tsvietáieva, filha da poeta Marina Tsvietáieva, passa de 400 reais.

Notei que as livrarias estão mais vazias. Percebi também que algumas delas já parcelam compras no cartão de crédito — “sem interesse” (juros) —, o que não apreciavam fazer.

Na próxima lista, comento um excelente livro sobre a história do café e dos cafés.

1

Xul Solar: Pintor del Misterio — Álvaro Abós

Você conhece Oscar Agustín Alejandro Shulz Solar? Como eu (com a beleza do cacófato), certamente responderá “não”. Mas quem não conhece o pintor argentino Xul Solar (1887-1963)? Há um museu em Buenos Aires — não muito grande, mas magnífico — que expõe parte de sua obra.

“Todos somos discípulos de Xul, inclusive aqueles que não sabem quem foi”, afirma Álvaro Abós, escritor e pesquisador argentino, na biografia “Xul Solar — Pintor del Misterio (Sudamericana, 318 páginas). Jorge Luis Borges, um de seus melhores amigos, o chamou de “hóspede de infernos e céus”. Leopoldo Marechal e Macedonio Fernández, assim como o autor de “O Aleph”, “o incensaram e o incorporaram à própria obra”.

Não estou entre os que entendem de pintura, mas, nas duas visitas que fiz ao Museu Xul Solar, percebi um certo parentesco entre a arte do argentino e a dos surrealistas. Há diferenças, parece claro. Porque a criação artística do portenho parece conter, e certamente contém, uma mensagem, se se pode assim, mística e, ao mesmo tempo, profana. Um diálogo entre contrários que, em suas mãos, se tornam complementares, mas sem se tornar uma voz única. Há uma “linguagem” pictórica e um sentido distintos — o que confere autonomia aos múltiplos trabalhos do argentino.

Pintura de Sul Solar

Minha companheira de viagens por Buenos Aires, Candice Marques de Lima, dada sua formação psicanalítica, viu mais nas aparentes “distorções” de humanos e outros seres na arte de Xul Solar. Ela aprecia “bater ponto” no museu, observando os quadros com atenção, racionalmente mesmerizada, digamos.

Xul era Solar — um criador múltiplo. “Xul Solar, além de virtuoso aquarelista, foi cartunista, astrólogo, inventor, metafísico, linguista, titereiro, arquiteto, desenhista, criador de um mundo plástico inclassificável, cruzado por enigmas cabalísticos e segredos esotéricos”, assinala Álvaro Abós.

O biógrafo enfatiza que, além de “um dos grandes artistas plásticos que a Argentina produziu no século 20, foi um personagem chave da cultura de Buenos Aires”. Era “carismático e misterioso, universal mas inconfundivelmente argentino”.

De acordo com Álvaro Abós, Xul Solar “foi um aventureiro espiritual; viajou pelo mundo, religiões, ocultismo, linguagens, música e invenção. O ocultista britânico Alistair Crowley (1875-1947), La Bestia, foi um de seus gurus.

“Quanto mais sei, mais quero saber”, dizia Xul Solar. O pintor queria conhecer tudo. “Estudou cabala, o Corão, o I Ching, o tarot, as lendas celtas e da Idade Média, assim como as fontes do hinduísmo e do budismo. Leu os grandes autores da literatura mundial cuja obra se relacionava com os ensinamentos herméticos, desde Dante Alighieri, chefe da associação templária Fede Santa, até William Blake. Mas também leu Swedenborg, Milton, Goethe, Narval, Poe, Baudelaire, Mallarmé.”

O artista plástico se interessava pelos cultos da América pré-colombiana. “Esse fundo religioso é visível nas belíssimas aquarelas como Tlaloc, em suas leituras pictóricas do tarot e em suas versões, às vezes irônicas e sempre luminosas do Zodíaco. A astrologia, a magia, a alquimia, esses mundos que têm produzido tanta conversa frívola, em Xul abrem caminhos pelos quais transitam a poesia, o humor e a alegria de viver”, anota Álvaro Abós.

Jorge Luis Borges e Xul Solar: amigos e parceiros culturais | Foto: Reprodução

A biblioteca de Xul Solar “acumulava a sabedoria do Oriente e do Ocidente”. O pintor “foi um americanista orgulhoso”.

Uma das paixões de Xul Solar eram as pesquisas linguísticas e a criação de línguas, como a “panlengua” e a “neocriollo”, uma “mistura de espanhol e português com algumas gotas de guarani”.

“O ‘neocriollo’ é um instrumento que Xul usou para integrar a linguagem escrita aos seus quadros, nos quais abundam as lendas que dotam a obra de sentidos e, às vezes, enigmas”.

Álvaro Abós sublinha que “as invenções de Xul, o panajedrez, o sistema duodecimal, seus planos para uma cidade ideal e seus títeres, assim como o futebol múltiplo, jogado em diversas zonas de uma quadra, o receptor radial ou telefone adaptado à cabeça e outras inovações têm sido incorporadas à vida pelos meios de comunicação, a televisão, o cinema, ao desenho animado, à publicidade e às ciências”.

“A invenção em Xul Solar era uma forma de sua fantasia criativa. Inventar era poetizar”, observa o biógrafo.

Álvaro Abós sugere que, em algum momento, “Xul Solar entra nossas vidas”. E, de lá, não sai. Sua arte, postula o biógrafo, é inesgotável. Julia Kristeva “pedia a todo criador que sua arte não se convertesse em lei”. Quem olha a pintura do argentino com alguma frequência talvez perceba que ela está sempre dizendo alguma nova ou diferente. Talvez seja isto que faça Candice Marques de Lima, nas suas visitas a Buenos Aires — seis até agora —, “bater ponto” no museu. Há “vozes” nos quadros que se assemelham à improvisação no jazz.

2

El Ojo de Goliat — Diego Muzzio

As autoras e autores argentinos produzem ótimos contos e romances de terror. Silvina Ocampo, Samanta Schweblin, Mariana Enriquez são algumas das escritoras que aprecio ler. Geralmente me questiono o que acontece com a cultura desse país capaz de produzir excelentes obras literárias nesse gênero.

Por causa de um vídeo de Mariana Enriquez, que dava três dicas de livros, busquei o romance de Diego Muzzio, de 55 anos. Não há nenhum livro do escritor portenho publicado no Brasil. Ele já escreveu contos, poesias, um romance curto, literatura infantil e seu último livro, El ojo de Goliat, é um romance que não nos deixa em paz. A vontade é de ler ininterruptamente.

A história é envolvente. Trata-se de um terror gótico – ou psicológico, como apresentado pela editora –, ao estilo das histórias de terror do século XIX. Mas o romance se destaca e sai da narrativa linear ao apresentar outras histórias dentro da história principal.

A narrativa começa com um psiquiatra que cuida de um hospício na Inglaterra. Para lá, são enviados pacientes com neurose de guerra, a 1ª guerra. O psiquiatra trata seus pacientes com hipnose e não lhes dá banhos gelados nem eletrochoques. É por isso criticado, pois na década de 1920 Sigmund Freud já havia desistido do tratamento hipnoterápico.

Numa noite, chega um paciente, um jovem engenheiro que enlouqueceu ao ficar alguns dias em um farol – El Ojo de Goliat, considerado o inferno dos infernos. Ele não fala e nada como se estivesse na água. A partir daí, surge uma outra história que é a leitura do diário do engenheiro e nele aparece a narrativa de outra história, do antigo morador no farol. Um assassino que matou e empalhou a mulher e a filha. E teve a pena de morte alterada para ficar trabalhando sozinho no farol por longos anos.

Chamo o livro de um terror gótico pois aparece em sua narrativa características desse tipo de história: escuridão, vento, ondas, chuva, aparições, uma atmosfera sombria. Entretanto, é interessante observar como os aspectos psíquicos das personagens tomam uma dimensão em que não é possível distinguir a realidade da loucura.

“El Ojo de Goliat” (Las Afueras, 232 páginas) ganhou o Prêmio Fundación Medifé-Filba 2023. É um romance que vale a pena ser lido. E publicado no Brasil.

3

La Dulce Ciencia — A. J. Liebling

O boxe é a sétima arte — existencialista, quiçá —, já que o cinema é uma subarte, ou uma arte derivativa, digamos assim. Jornalistas e escritores americanos escreveram muito bem a respeito da magia das lutas e dos boxeadores, que, com seus punhos de pedra (quem não se lembra do notável panamenho Roberto Durán), são uma espécie de escultores de corpos. Há um livro muito bom sobre boxe de autoria da escritora Joyce Carol Oates. Mas nada se iguala à obra “La Dulce Ciência” (Capitán Swing, 366 páginas, tradução de Enrique Maldonado), de A. J. Liebling (1904-1963 — viveu 59 anos), da revista “New Yorker”.

Postulo que o grego Heródoto é o inventor do novo jornalismo. Mas, como os americanos acreditam que inventaram quase tudo, talvez seja possível insinuar que a invenção talvez possa ser atribuída a Abbott Joseph Liebling — que, de 1935 até 1963, escreveu, com raro brilho, nas páginas da revista “New Yorker”. Escrevia tão bem que seu jornalismo sobrevive, com galhardia, nos livros. Ele escreveu sobre a imprensa, boxe, comida, bebida etc. “La Dulce Ciencia” é sobre boxe e seu entorno.

Arte de Thomas Rowlandson

Liebling começa falando da luta na qual Jack O’Brien, ao derrubar Bob Fitzsimmons, sagrou-se campeão dos meio-pesados.

“A doce ciência está unida ao passado como o braço ao ombro”, assinala Liebling. No boxe é assim: a estrela de hoje acaba por cair ante o surgimento de uma nova estrela, às vezes mais nova, mais forte ou mais rápida

Há os lutadores mais duradouros, graças ao próprio talento ou à falta de talento dos adversários. Recentemente, o britânico Tyson Fury perdeu para o ucraniano Oleksandr Usyk. O que aconteceu? Talvez falte a Tyson a Fúria de antes. La dolce vita convida à acomodação. O fortalecimento do espírito, pelo caráter dionisíaco da vida, às vezes amolece o corpo.

Entre os campeões longevos está o grande Joe Louis. “Quando apareceu, Louis nocauteou cinco campeões mundiais: Schmeling, Sharkey, Carnera, Baer e Braddock”. Era uma fera… de cara dulce.

A. J. Liebling martelando na sua máquina de escrever | Foto: Reprodução

Uma década depois, Joe Louis nocauteou Jersey Joe Walcott, que, quatro anos depois, se tornou campeão. “O brilho [a luz] de Louis… expõe a insignificância do que o precedeu e do que se seguiu”, escreveu, com acerto, Liebling.

Curiosamente, Liebling assinala que o pleno emprego e uma permanência mais longa na escola reduziram a oferta de bons lutadores por algum tempo, nos Estados Unidos. “‘Os bateristas e os pugilistas, para chegar à excelência, devem começar jovens — escreveu o grande [Pierce] Egan em 1820. É necessária uma peculiar destreza nas mãos e ter os ombros exercitados [fortes, musculosos], algo que unicamente se consegue com a prática’.”

Liebling, cujo livro é da década de 1950, diz que a televisão atrapalhou o boxe. “Os financiadores das redes de televisão, ao transmitir um combate gratuitamente quase cada noite da semana, estão arruinando centenas de clubes de boxe das cidades pequenas e bairros nos quais os jovens tinham a oportunidade de aprender a profissão e os operários das luvas podiam aperfeiçoar suas habilidades.”

Os críticos do boxe, que falam sobre sua violência, são vituperados por Liebling. Ele afirma que os problemas mentais do bailarino Nijinsky não foram acarretados pelo boxe. O que, claro, não é um bom exemplo (poderia ter citado o futebol americano). Cita Hemingway e Camus, que lutaram boxe. E conta a história de Billy Ray, que lutou boxe e viveu mais de 90 anos.

Pierce Egan: pioneiro ao analisar o boxe

A Segunda Guerra Mundial, que absorveu muitos jovens americanos, interna e externamente, operou para retardar o aparecimento de novos boxeadores de valor. Por causa dela, na opinião de Liebling, Joe Louis e Joe Walcott se mantiveram no trono por mais tempo.

Mas Liebling ressalta, que apesar de tudo, surgiram dois boxeadores de extrema qualidade — Rocky Marciano e Joe Walcott, o peso pluma com braços-espadas. No seu estilo que mescla o jornalístico e o literário, o repórter escreve: “Archie Moore, um artista de maturação tardia, como Laurence Sterne e Stendhal, iluminou os céus com a luz do ocaso, e Sugar Ray Robinson demonstrou ser tão longevo como precoce, em um tributo aos esforços de sol a sol”.

Rocky Marciano era uma fera nos ringues. “Marciano [aos 31 anos] nocauteou três campeões mundiais dos pesos pesados: Louis, Walcott e Ezzard Charles, e terminou derrotando Moore [aos 39 anos], o peso-pesado-meio-pesado.”

Ao comentar a luta de Rocky Marciano com Archie Moore, Liebling escreve: “É inegável que nenhum dos dois heróis será melhor do foi naquela noite”.

Ao comentar as lutas, Liebling conta a história do jornalista britânico Pierce Egan (1772-1849) e sua “Boxiana”. “É o maior autor que jamais escreveu sobre a doce ciência.”

Pierce Egan “era gacetillero [repórter, redator de notícias curtas], compositor de canções, diretor de operetas e, tendo a suspeitar, vigarista”. Ele dirigia uma publicação mensal sobre boxe. O jornalista “se converteu em uma grande figura na organização de lutas, na gestão de apostas, na resolução de conflitos, na promoção de celebrações”. Era um faz-tudo. Ninguém escrevia sobre boxe tão bem quanto ele.

Segundo Liebling, “um dos maiores encantos de ‘Boxiana’ é que não limitava a ser uma mera compilação de resumos a respeito dos combates. As histórias round a round de Egan, com detalhes incidentais, como as flutuações das apostas, são obras-primas do periodismo técnico. Mas Egan também via o ringue como um pedaço jugoso [suculento, substancioso] da vida inglesa de nenhum modo separado do restante”.

O estilo algo literário de Pierce Egan — o caráter objetivo do jornalismo não excluindo a subjetividade — teria influenciado a prosa de Charles Dickens, sugere Liebling.

4 — Secuestrar a un General — Patrick Leigh Fermor

O escritor britânico Patrick Leigh Fermor (1915-2011 — viveu 96 anos) era um viajante inveterado e escreveu livros considerados de qualidade reconhecida por experts. Em 1933, quando tinha 18 anos, foi a pé da Europa até Constantinopla, na Turquia. “A Árvore do Viajante”, de 1950, é um relato sobre sua viagem pelo Caribe. Escreveu também “El Tempo de los Regalos” (traduzido no Brasil como “Um Tempo de Dádivas”, Edições de Janeiro, 292 páginas, tradução de Maria Teresa Fernandes Serra e Mv Serra) e “Entre los Bosques y el Agua” (“Entre a Floresta e a Água”), “os dois clássicos de literatura de viagem nos quais relata sua viagem, quando jovem, a pé pela Europa de entreguerras”.

“Secuestrar a un General — La Operacín Kreipe y el Servicio Británico de Operaciones Especiales en Creta” (Berenice, 295, tradução de Inés Beláustegui Triás), de Patrick Leigh Fermor, é uma história tão fantástica que acabou levada ao cinema, com o título de “Emboscada Noturna” (1957), de Emeric Pressburger e Michael Powell, e estrelado por Dirk Bogarde, Marius Goring, David Oxley, Dimitri Andreas. A película foi adaptada de um romance de William Stanley Moss, companheiro de Leigh Fermor na captura do militar alemão Heinrich Kreipe, em Creta.

Em 1944, Creta estava sob o comando dos nazistas alemães, que chamavam a ilha de Festung Kreta (Fortaleza Creta). A Villa Ariadna era a residência do comandante da divisão principal da guarnição, o general de divisão Heinrich Kreipe, de 48 anos. Ela havia lutado na França e, ferido nas batalhas de Leningrado, na União Soviética, ganhou a Cruz de Cavalheiro, a mais alta condecoração da Alemanha nazista.

Billy Moss, Patrick Leigh Fermor e o general Heinrich Kreipe em abril de 1944

Kreipe dirigia em Creta a 22ª Divisão Aerotransplantada de Infantaria da Wehrmacht (forças armadas alemãs). O capitão Billy Moss tinha 22 anos e o major Leigh Fermor (Paddy), 29 anos. O segundo era o comandante do Corpo de Inteligência. Operava para o Serviço de Operações Especiais britânico.

Em Creta, Leigh Fermor uniu-se aos partisans cretenses em junho de 1942. Entre junho de 1942 e julho de 1943, forças especiais britânicas atacaram os nazistas. Os alemães retaliaram matando 50 reféns cretenses.

Em 1943, guerrilheiros cretenses, liderados por Manoli Bandouvas, atacaram os nazistas. Chegaram a matar vários. Mas a reação alemã foi brutal: reduziram a cinzas sete povoados e executaram mais de 500 cretenses, relata, no prefácio, o historiador Roderick Bailey.

Os assassinatos e os incêndios dos povoados foram autorizados pelo general Friedrich-Wilhelm Müller, “o Carniceiro de Creta”. Kreipe sucedeu Müller no comando alemão.

Partisans cretentes e militares britânicos se uniram contra o jugo alemão. Leigh Fermor, que falava grego, fez vários amigos em Creta. Para ficar parecido com um cretense, pintou o cabelo e deixou a barba crescer e passou a se vestir como as pessoas da região. Bailey diz que, “afetuoso, se interessava pelas pessoas, era arrojado e gostava muito de aprender outros idiomas, conhecer as danças e canções. Tinha fascínio por conhecer outras culturas”. Assim, ganhou a amizade e a confiança dos cretenses.

Certa feita, ao manusear sua arma, Leigh Fermor matou seu amigo e guia Yanni Tsangarakis. Ficou arrasado.

Patrick Leigh Fermor: especialista em livros de viagem | Foto: Reprodução

Numa operação, Leigh Fermor e sua equipe conseguiram salvar o general italiano Angelo Carta, que era procurado pelos alemães.

No Cairo, para onde se retirara provisoriamente, Leigh Fermor apresentou o projeto para sequestrar um general alemão. Um amigo do oficial, Xan Fielding, queria capturar o general Alexandre Andrae, mas o militar foi transferido. Fielding ideou então sequestrar o general Bruno Bauer e o oficial inglês Tom Dunbabin queria prender o general Müller.

Leigh Fermor chegou a pensar no sequestro do brutal Müller. “A ideia é que, com sua captura, se assestaria um duro golpe à moral dos alemães e, ao mesmo tempo, alentaria as missões britânicas na ilha e a população cretense a crer que a resistência em Creta seguia sendo efetiva”, diz Bailey.

No dia 26 de abril de 1944, Leigh Fermon e Billy Moss, com o apoio de guerrilheiros cretenses, sequestraram o general Kreipe. Vestidos com fardas alemãs, os dois pararam o veículo do militar. Prenderam o oficial e seu motorista. Depois, o esconderam em vários lugares de Creta e conseguiram levá-lo para o Egito.

Para se vingar dos sequestradores do general Kreipe, os alemães colocaram fogo em povoados e mataram 400 pessoas. Os nazistas saquearam as casas das pessoas. O motivo da violência não foi apenas a captura do oficial. As ações da guerrilha cretense e as incursões britânicas, que provocaram a morte de dezenas de alemães, levaram às ações cruentas.

No livro “Creta” (Record, 460 páginas, tradução de Maria Beatriz de Medina), o historiador britânico Antony Beevor ressalva: “A operação Kreipe foi muito criticada por ter provocado sofrimento desnecessário à população cretense, mas o estudo do professor Gottfried Schramm sobre os arquivos do Comando alemão indica que isso é falso. Não houve ligação entre o sequestro e a destruição de Kamares, Lokhria, Margarikari e Saltouria”. O pesquisador enfatiza que “a audácia do golpe” — a captura do general — “claramente” abalou os militares alemães que estavam em Creta. Se um general não era intocável, nenhum outro militar o era.

(Antony Beevor conta que, certo dia, o prisioneiro Kreipe “recitou os primeiros versos da nona ode de Horácio, ‘Ad Thaliarchum’. Leigh Fermor completou as outras cinco estrofes, criando assim um laço além da guerra entre captor e cativo”.)

Vários militares avaliaram que o sequestro não valeu a pena, dado o número de mortos cretenses (leia acima a versão de Antony Beevor). Kreipe não era também um general do primeiro time e muito menos era um nazistão fanático e violento. Seu interrogatório nada acrescentou àquilo que os britânicos já sabiam.

Bailey admite que, apesar de um grande feito, praticamente heroico, o sequestro “careceu de valor estratégico ou tático”.

O sequestro rendeu a Paddy Leigh Fermor a Ordem de Distinção em Serviço (DSO).

5

Una Tumba Con Vistas — Peter Ross

Muitos cemitérios, talvez todos, são museus dos mortos mas com histórias vivas de pessoas célebres ou não. Quem visita Buenos Aires e não vai aos cemitérios da Recoleta e da Chacarita passearam como turistas “mortos” e não “vivos”. Quer dizer, para os vivos, é imprescindível “ver” os mortos — suas tumbas, fotografias etc. — e o ambiente onde “moram”. E há as esculturas, muito belas, no geral, apesar de, aqui e ali, prevalecer o, digamos, kitsch.

No cemitério da Recoleta, ao lado de bons hotéis e restaurantes, o vivente mais atento poderá “conversar” com Oliverio Girondo, o grande poeta argentino, Silvina Ocampo (prosadora supimpa), Victoria Ocampo (a seminal agitadora cultural da Argentina, criadora da revista “Sur” e da Editorial Sur) e, entre tantos outros, Bioy Casares (escritor e amigo de Jorge Luis Borges). E, claro, Evita Perón — cujo túmulo é o mais procurado. Na Chacarita o diálogo se dará com Carlos Gardel — espécie de Nelson Gonçalves do país — e Ricardo Piglia.

“Una Tumba Con Vistas — Historias y Glorias de Cementerios” (Capitán Swing, 335 páginas, tradução de Isabel Hurtado de Mendoza), de Peter Ross, é uma conversa, por sinal agradável, sobre (e, sim, com os) mortos. Nada de espiritismo, mas, sob a pena do jornalista escocês, os mortos falam, voltam a falar. As histórias do livro são ótimas e escritas com uma graça imensa, deliciosa. A obra é séria e, ao mesmo tempo, divertida.

Sabe quem foi Phoebe Hessel, que está instalada num cemitério? Para lutar ao lado de seu amado, disfarçou-se de homem. Uma pré-Diadorim, por assim dizer, que lutou ao lado do amado Riobaldo.

Peter Ross, que ama visitar cemitérios, começa sua história versando sobre as mortes em decorrência da Covid. Menciona William, que, tendo sobrevivido ao letal campo de concentração de Bergen-Belsen, não escapou da Covid. Sobrevivente do período da gripe “espanhola”, Hilda, agarrada pelo coronavírus, morreu aos 108 anos.

“Uma das ideias centrais de ‘Una Tumba Con Vistas’ é que os mortos e os vivos são parentes próximos. Pensamos neles, os visitamos, às vezes conversamos e, algum dia, nos reuniremos com eles”, frisa Peter Ross.

No livro “El Catalejo Lacado” (catalejo é luneta), Philip Pullman, citado por Peter Ross, diz que “cada pessoa nasce com sua própria morte presente, uma companheira silenciosa e amável, invisível, que vai puxando para cima à medida que se aproxima o final: ‘Tua morte te dá uns golpezinhos no ombro, ou te toma pela mão, e diz vem comigo, chegou o momento’”.

“O surto do coronavírus intensificou a sensação que tenho de que sempre estamos em companhia dos mortos; de que a mão estendida [da morte] está a só um palmo de distância”, sublinha Peter Ross.

Um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Peter Ross fala das tumbas de escritores de histórias de fantasmas — M. R. James (Montague Rhodes James), Amelia B. Edwards, Joseph Sheridan Le Fanu. Há outras histórias fascinantes, mas não as exploro neste texto, já por demasiado longo.

M.R. James: “os mortos recordam”

M. R. James: escritor de histórias sobrenaturais

M. R. James é considerado por alguns como “o melhor escritor de ficção sobrenatural da língua inglesa”. Ele foi reitor de Eton, o célebre colégio britânico, no qual estudou George Orwell, e do King’s College, em Cambridge.

Uma das histórias de M. R. James, “El Maleficio de las Runas” (adaptado para o cinema com o título de “La Noche del Demonio”), não é, a rigor, sobre fantasmas, e sim sobre demônios.

Então, das histórias, Peter Ross salta para o túmulo de M. R. James. “A lápide de M. R. James é pequena e tão comedida como um de seus contos.” O nome está praticamente ilegível, mas é possível verificar as datas-chaves: 1º de agosto de 1862 a 12 de junho de 1932. Nascimento e morte.

Escrever contos, para M. R. James, era um divertimento. Porque, no dia a dia, “era um erudito sério, especialista pioneiro na catalogação de manuscritos medievais e no estudo dos livros apócrifos da Bíblia. Os contos que escreveu entre as décadas de 1890 e 1930, ao menos no princípio, era para satisfação de seus amigos”, informa Peter Ross. Sua primeira coletânea foi “Historias de Fantasmas de un Anticuario”, de 1904.

O “papa” das histórias sobrenaturais ou de horror, H. P. Lovecraft, escreveu, no ensaio “El Horror en na Literatura”, que M. R. James estava “dotado de uma força quase diabólica para invocar suavemente o horror”.

Para Peter Ross, a melhor obra de M. R. James é “Aviso a los Curiosos”, de 1925. Como ninguém é perfeito, o escritor disse que James Joyce “prostituía” a língua inglesa. Num discurso para familiares de parentes mortos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o reitor disse: “Por que os mortos recordam”. “É uma ideia surpreendente”, anota Peter Ross.

“Me pergunto o que deve recordar Monty James em sua modesta tumba do cemitério municipal de Eton. As coisas que amava, talvez. O odor da fumaça do cachimbo e a cera das velas nas largas tardes de inverno; uma história de fantasmas contada ao cair da noite.”

Amélia Edwards, escritora: lésbica, audaz e genial

Amelia Edwards: pesquisadora e escritora celebrada em seu tempo | Foto: Reprodução

A história mais interessante é sobre a escritora e arqueóloga Amelia Ann Blanford Edwards (1831-1892), que está enterrada no cemitério da igreja de St. Mary the Virgin de Henbury.

Amelia B. Edwards e Ellen Braysger estão enterradas no mesmo túmulo. “Foram amantes? Em 2016, o Historic England declarou a tumba estrutura de especial interesse em reconhecimento a sua importância para o patrimônio LGBTQ.” Um grande anjo “protege”, digamos, o túmulo.

De acordo com Peter Ross, “Edwards escreveu vários contos de fantasmas muito bons”. “El Carruaje Fantasma” saiu, em 1864, na revista “All the Year Round”, de Charles Dickens.

Os fantasmas das histórias de Amelia B. Edwards “normalmente são vítimas de assassinato condenadas a voltar a percorrer seus últimos passos antes de morrer. (…) A emoção dominante nas histórias de Edwards é a culpa”.

A escritora era frequentadora de cemitérios, como o cemitério protestante de Roma, onde está enterrado P. B. Shelley. Ela escreveu no seu diário, em 1857, quando tinha 20 anos: “Poderia ter ajoelhado e beijado a lápide. O teria feito se estivesse sozinha”. Ela admitiu que tinha “estranha adoração” pela memória do poeta britânico, que morreu afogado, aos 29 anos, em 1822, na Itália.

No Lido, em Veneza, Amelia B. Edwards visitou sepulturas de judeus. A experiência foi útil para a composição do conto “La Historia de Salomé”.

O poeta e crítico literário John Addington Symonds escreveu para Havelock Ellis que, entre seus amigos, estava Amelia B. Edwards, “que não me ocultou suas tendências lésbicas. A escritora manteve um ménage à trois com uma dama inglesa e um clérigo que era inspetor de escolas. Ela sofreu muito com o fim do relacionamento — “um golpe mortal”.

A divulgadora científica Cerys Bradley diz que, opondo-se ao conservadorismo do século 19, Amélia B. Edward “viveu a vida de uma maneira pouco convencional, audaz. Tão audaz que resistiu à maneira que a história tenta apagar o legado de mulheres como ela”.

Além de escrever histórias sobre fantasmas, Amelia B. Edwards sempre viajava para fazer pesquisas arqueológicas. “Em 1872, viajou para as Dolomitas, que se converteria no tema de seu primeiro grande êxito como escritora de livros de viagem: ‘Untrodden Peaks and Unfrequented Valleys’. Anos depois publicou sua principal obra, ‘Mil Millas Nilo Arriba’.”

Como pesquisadora, Amélia B. Edwards fez o que pôde “para explorar, documentar e preservar o patrimônio do antigo Egito”. Ela aprendeu sozinha a decifrar hieroglíficos.

A morte de Amelia B. Edwards, que se chamava de “Búho” (Coruja), ocorreu em 1892. Ela tinha 60 anos — havia se livrado de um câncer de mama mas, fragilizada, sucumbiu à gripe. Deixou suas antiguidades e a biblioteca para a University College London. Ela queria que a universidade construísse um museu de arqueologia egípcia. O Museu Petri (homenagem ao arqueólogo Flinders Petrie) acolheu os materiais deixados pela pesquisadora. Na sua época, chegou a ser considerada, pelo diário “The Boston Globe”, como “a mulher mais erudita do mundo”.

O infatigável Peter Ross visitou o túmulo de Amelia B. Edwards. Foi uma visita solitária. Ninguém estava ao seu lado. “A paz só era perturbada pelos corvos, que entravam e saíam do campanário, passando pela janela aberta sobre um relógio gravado com as palavras de Horácio: ‘Pulvis et umbra sumus’. ‘Somos pó e sombras’, uma frase muito apropriada para uma escritora tão famosa em sua época e praticamente esquecida no presente.”

Joseph Sheridan Le Fanu: prosador irlandês

Joseph Sheridan Le Fanu: escritor irlandês | Foto: Reprodução

Morto aos 58 anos, em 1872, o escritor irlandês Joseph Sheridan Le Fanu está enterrado no cemitério Mount Jerome, em Dublin. Um letreiro informa: “Aqui jaz o Príncipe Invísivel de Dublin Joseph Sheridan Le Fanu, 28 de agosto de 1814-7 de fevereiro de 1873, novelista e escritor de contos de fantasmas”.

Peter Ross diz que Le Fanu “foi um autor muito popular em sua época e teve uma influência enorme nos escritores do sobrenatural que lhe sucederam. Tem sido descrito como o pai do terror moderno”.

M. R. James, que bebeu muito em sua obra, escreveu que Le Fanu “conseguia infundir um terror misterioso melhor que nenhum outro escritor”.

A melhor obra de Le Fanu, para Peter Ross, é “Las Criaturas del Espejo” (As Criaturas do Espelho), de 1872. “Carmilla”, uma história “homoerótica de vampiros”, teria influenciado “Drácula”, de Bram Stoker. “Té Verde” (Chá Verde) é apontado como uma de suas boas histórias.

Em “Té Verde” um pequeno macaco começa a seguir o reverendo Jennings dia e noite. Uma história sem importância? Sim, “se a história não fosse tão lúgubre, séria e descarnada. O macaco é uma presença de ‘insondável malignidade’ que leva o religioso a estrangulá-lo”.

“Té Verde” foi publicado, em capítulos, pela revista “All the Year Round”, de Dickens. Mas é mesmo “uma história de fantasmas? Parece mais uma crise nervosa [de Jennings]. Alucinações visuais e auditivas, ideias suicidas, pensamentos intrusivos: se poderia diagnosticar Jennings com esses sintomas antes de chamar o exorcista”, sugere Peter Ross.

“El Familiar” é visto por M. R. James como “uma das melhores histórias sobrenaturais em língua inglesa”.

Na interpretação de Peter Ross, “as obras de Le Fanu são tênues e frias, dificilmente visíveis à luz de uma vela quase apagada”. “O Familiar” conta a história do capitão Barton, que planeja se casar com a srta. Montegue. Porém, ao voltar para sua casa, é seguido por um homenzinho furioso.

Barton acredita que o baixinho é o demônio, que quer se vingar por algum “pecado cometido no passado”. Desesperado, ele diz a um pregador que se encontra “frente à morte”.

Entretanto, afirma Peter Ross, “o texto de Le Fanu não sugere que” Barton “está possuído, e sim transtornado: paranoico e delirante”.

O cineasta e escritor Matthew Holness disse a Peter Ross sobre Le Fanu: “É um mestre dramatizando a psicologia. Suas histórias funcionam no plano inconsciente, têm múltiplos significados, e conseguem chegar ao que realmente assusta às pessoas”.

“Le Fanu lida com nossas ansiedades e medos mais íntimos, por isso seus contos de fantasmas são tão desconcertantes. (…) Não são, em absoluto, uma forma de entretenimento. Tenho a teoria de que Le Fanu não é tão popular como M. R. James porque os leitores gostam de ter medo, mas realmente não querem que nada os inquiete. Não querem confrontar-se demasiado consigo mesmos. Le Fanu é muito moderno; obscuro e horripilante na medida justa”, acrescenta Matthew Holness.

Com a morte de sua mulher, Susanna Bennett, em 1843, Le Fanu quase não saía mais de casa. Por isso passou a ser chamado de Príncipe Invisível. “Era visto em sebos, ao anoitecer, examinando livros antigos sobre demonologia e mortos-vivos. Seu gosto pelo sobrenatural aumentou após a perda de Susanna.” Ele perguntava ao livreiro: “Tem mais contos de fantasmas para mim?”

Quase no fim da vida, Le Fanu era atormentado por “sonhos horrorosos”. No 11 de fevereiro de 1873, o escritor morreu e foi enterrado ao lado de sua amada Susanna.

Ao visitar o cemitério Mount Jerome, em Dublin, Peter Ross descobriu que, se os livros de Le Fanu continuam circulando, mantendo-o vivo, seu nome havia desaparecido da tumba. Mas o americano Brian J. Showers, fã do escritor, decidiu restaurá-lo. O nome de Le Fanu foi devolvido ao túmulo. A Irlanda é um país pequeno, mas sua “contribuição à literatura sobrenatural e gótica é substancial”, postula o fundador do Festival de Contos de Fantasmas de Dublin.

Peter Ross perguntou a Showers: “O Príncipe Invisível voltou a ser visível?” O americano respondeu: “Espero que sim”.

No Mount Jerome, construído em 1836, estão enterrados Le Fanu, falando pela história e pela literatura, o dramaturgo J. M. Synge, o artista Jack Butler e o escritor Máirtín Ó Cadhain (1906-1970).

O romance “Cré na Cille” (1949), de Máirtín Ó Cadhain, “é contado exclusivamente pela voz dos mortos (uma cacofonia de vozes fúnebres), que conversam e balbuciam, que fofocam e maldizem, sob a grama de um cemitério de Connemara”.

Os mortos estão sempre vivos — em nós, de alguma maneira, e por eles, pela história de cada um, mignon ou grande.

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