Esta pequena crônica está dedicada a um grande sonhador, Hermes Novais Neto, que anda campeando a utopia pelo Vale do rio Corrente, lá pelas bandas onde o Cerrado caprichosamente se mistura à Caatinga, bem pertinho do Rio São Francisco. Essa busca ele aprendeu convivendo com as pessoas sábias, fruto de um celeiro inesgotável, que é o Vale do Corrente.

Embora à distância, compartilho algumas de suas angústias, mesmo porque não se trata daquela angústia neurótica, mas de uma angústia metafísica, que anda sempre em busca do saber, do conhecimento, pelo simples fato de querer ser mais – não confundir com ter mais e, sim “ser” mais.

Anda buscando a felicidade e a liberdade para ser consciente, porque, como dizia o grande mestre Paulo Freire, só há liberdade na consciência.

E aqui, do centro do sertão de dentro, na área “core” do Cerrado, passo também a campear, componentes, causas e consequências, para tentar entender a sociedade atual. E, como professor, dirijo também minhas indagações para as universidades brasileiras.

Contam que, certa vez, um pai ficou irritado com o comportamento de seu filho. Como castigo, o trancou em uma sala. Antes, porém, pegou um mapa geopolítico do mundo moderno, o picou em pedacinhos, entregou ao filho, dizendo: “Você só sairá desta sala quando montar todo este mapa”. Trancou a porta, deixando lá dentro seu filho com seu castigo.

Passados alguns minutos, o filho bate à porta chamando pelo pai, que se espantou ao entrar na sala e ver o mapa todo montado. O pai então, com um misto de curiosidade e satisfação com a esperteza do filho, indagou: “Como conseguiu resolver tão rápido o castigo que te dei?” O filho então com ar de orgulho respondeu: “Simples, meu pai…”. E, virando o mapa, mostrou que do outro lado da página havia a figura de um homem. Ele então explicou ao pai que simplesmente montou a figura do homem. O pai ficou por instantes pensativo, depois concluiu: “É verdade: conserte o homem que consertará o mundo”. E, por durante muito tempo, esta história foi contada nos quatro cantos da Terra. Eu mesmo a contei em algumas de minhas aulas. Hoje, confesso que estava completamente enganado.

Porque o conhecimento da realidade me ensinou que o “homem novo”, se forma numa sociedade nova e sadia, sendo o contrário também verdadeiro. Ou seja, uma nova sociedade sadia, surge com a interação constante de homens novos, com novas mentalidades, cidadãos conscientes, livres e responsáveis, pois se trata de um processo dialético.

É uma ilusão tentar desprezar as interferências dos mecanismos sociais na formação de cidadãos conscientes, livres e responsáveis. Esse fenômeno é conhecido como socialização e pode ser entendido como um processo dinâmico por meio do qual o homem se transforma num ser social.

Quatro são os pilares básicos nos quais esse fenômeno se apoia: a família, a escola, a igreja e os grandes meios de comunicação de massa, incluindo os sistemas cibernéticos.

Atualmente, a crescente desestruturação da família, causada por problemas de ordem econômica, ideológica e pelas imposições do mundo contemporâneo, contribuem para que, a cada dia que passa, ela exerça cada vez menos seu papel socializante.

Os professores não conseguem a motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isso acontece porque o conteúdo não traz novidade e não é mais motivador

As escolas, tanto as fundamentais como as básicas e superiores, que por algum tempo eram tidas como continuadoras da família, há muito deixaram de exercer essa função. Mergulharam num pântano de lodo mal cheiroso e movediço, que suga a criatividade e faz seus dirigentes adotarem uma dança macabra, como se fossem fantasmas, diante de imposições ainda mais fantasmagóricas.

Os professores não conseguem a motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isso acontece porque o conteúdo não traz novidade e não é mais motivador. Grande parte dos alunos já conhece, por outros meios, o que lhe será transmitido. A aula dentro da sala perde, então, o interesse e o sentido.

A escola que outrora se constituía num ponto de encontro para fazer amizades, trocar ideias e aprender novidades, não é mais nada disso. Hoje, as redes sociais desempenham esse papel.

A maior parte das escolas básicas e fundamentais carece de pátios para brincadeiras, não tem bibliotecas, muito menos equipamentos para dinamizar uma aula. Sequer de longe, pode-se mencionar que não possuem laboratórios. Isso é muito luxo para quem acha que o ensino não necessita de experiências.

Os professores se sentem desmotivados não só pela remuneração. Aliás, para quem nunca ministrou uma aula, pode-se afirmar que não há na terra tarefa mais exigente, responsável e cansativa. Também se sentem desmotivados porque não são mais respeitados pelos alunos. As associações sindicais de pais de alunos, apoiadas pelos meios de comunicação sensacionalistas, são capazes de levar um professor à Justiça se ele, no intuito de impor a disciplina, alterar um pouco sua voz na sala.

Aliás, por falar em disciplina, as escolas hoje em dia são vigiadas por policiais porque viraram pontos de compra, venda e consumo de alucinógenos. A falta de perspectivas faz o aluno buscar esses caminhos. Por isso e muito mais, a escola, tal qual a família, não faz corretamente o papel de socialização e formação de cidadãos.

O terceiro elemento fundamental na tarefa de socializar é a igreja. Entretanto, com a materialização crescente dos princípios sociais, norteados pela bandeira maior do capitalismo que estampa o consumismo, e ainda com a deturpação da doutrina básica do cristianismo, mutilada pelo economicismo a que muitas seitas lançam mão para sobreviverem, enriquecerem e criarem impérios, há uma disseminação da descrença. Quando esta não vem, em seu lugar surgem o fanatismo e a alienação, que podem ser considerados a encarnação da própria escravidão. Portanto, se a família não cumpre adequadamente o papel de socializar, a escola e a igreja, atualmente, o fazem muito menos.

Os meios de comunicação vão contribuindo para a formação de cidadãos doentes, agressivos, neuróticos, depressivos e miseráveis globalmente

Quem desenvolve com eficiência o papel de socialização e formação das mentes na sociedade brasileira são os grandes meios de comunicação de massa. Esses veículos, com uma força avassaladora, modelam os hábitos da sociedade brasileira, mudam horários de eventos tradicionais de acordo com seus interesses, transformam em artistas quem não são, fazem o povo cantar músicas alienantes e depressivas visando a irradiação da mediocridade. Quanto mais medíocre e sem consciência crítica fica o ser humano, também se torna mais fácil aceitar programas banais, com altos índices de audiência etc.

Assim, esses meios vão contribuindo para a formação de cidadãos doentes, agressivos, neuróticos, depressivos e miseráveis globalmente. Uma vez submetidos às condições desfavoráveis, esses seres se deixam dominar sem outra reação qualquer que a do conformismo, antessala da alienação.

De modo geral, isso é o tipo de sociedade que compartilhamos atualmente. Não há solidariedade, não há valor pela vida, não há exemplos de honestidade. A corrupção, qual cavalo selvagem, campeia relinchando pelas campinas gramináceas. Assim, convivendo com esses exemplos, a utopia da construção de uma sociedade sadia se torna cada vez mais longínqua.

Por sua vez, o Estado brasileiro, ao longo de algumas décadas, pelo Ministério da Educação, sem criatividade e talvez sem a competência necessária, cria a todo instante mecanismos autoritários, repressores, restritivos, que só reforçam a situação atual refletida pela sociedade brasileira.

Movidos pela ideia errônea de que povo culto é aquele que tem diploma universitário, estão cometendo erros imperdoáveis, permitindo a criação de cursos universitários sem qualidade e a multiplicação desenfreada das faculdades “pegue-pague”.

Buscando corrigir essas distorções monstruosas que foram criadas, o Ministério da Educação tem lançado mão de instrumentos ineficazes e inoperantes, que, ao invés de corrigirem as falácias, colocam numa mesma caixa vazia de bombom todas as instituições de ensino superior, sem considerar suas peculiaridades, sua história, seu contexto, a importância e a vocação regional de cada uma.

Ao proceder desta forma, o MEC intervém de uma maneira nunca vista na história do autoritarismo brasileiro, impedindo o crescimento de instituições tradicionais, restringindo suas tarefas de pesquisa, que são o fundamento da existência da própria universidade, impedindo suas ações inovadoras e criativas, uma vez que as obriga a vestirem uma camisa de força para cumprir, sem reclamar, as equivocadas exigências do Ministério.

O sistema avaliativo atualmente implantado para aferir as instituições de ensino superior (IES), quer seja pelos alunos, quer seja avaliando a própria instituição, está cheio de contradições e não se baseia num alicerce teórico sólido que consiga expressar a real situação institucional. Isso porque não se toma em consideração a inserção social da instituição avaliada, sua participação na formação da realidade regional, sua vocação, sua missão, tampouco a história e os contextos.

A impressão que fica é que essas ideias absurdas parecem que, de repente, brotam da cabeça de pessoas que se julgam geniais, cujo trabalho se desenvolve em um cubículo cercado por quatro paredes, distante da realidade do território brasileiro, que é um continente, com inúmeras diferenças regionais, refletidas nas atividades econômicas, sociais e culturais, permeadas por uma diversidade ambiental de grandeza e significados incomensuráveis.

Esses sistemas de avaliação nos remetem ao episódio em que Charles Darwin foi avaliado pelo conselho de classe do colégio no qual estudava. Na ocasião, o reitor do colégio expressou: “Trata-se de um péssimo aluno, não gosta das aulas de canto e chega a chorar quando tem de assistir e participar das aulas de balé. Seu negócio é observar as mariposas pousarem nos troncos das árvores. Parece um desajustado!”.

Em tempo, foi observando as mariposas que Darwin criou o conceito de mimetismo, que culminaria na ideia de seleção natural e evolucionismo, fundamentos que revolucionaram o pensamento humano.

Da mesma forma que o MEC está enganado e deve rever seus processos avaliativos, a Capes e o CNPq deveriam revisar seus conceitos de pesquisa. Não deixar que esses conceitos que brotam em cabeças de burocratas se transformem em obstáculos para o desenvolvimento dessas atividades no seio das verdadeiras universidades brasileiras. Para aqueles que sempre cantavam ou cantam as canções de Geraldo Vandré, é sempre oportuno recordar o que este compositor e poeta diz em uma de suas músicas: “Não vai falar de amor quem nunca soube amar”.

A missão de ser professor e ou pesquisador é tarefa que exige vocação e aptidão, é claro, que associada ao conhecimento

Isso se aplica a diversas áreas de atuação. Não pode traçar diretrizes para a educação ou para a pesquisa quem nunca foi educador ou pesquisador. Se insistir nesta tecla, poderá ser criada uma teia complexa de instrumentos impeditivos.

A missão de ser professor e ou pesquisador é tarefa que exige vocação e aptidão, é claro, que associada ao conhecimento. Tentar relacionar a titularidade de doutor a pesquisador é uma atitude semelhante àquela atitude do reitor querendo transformar Charles Darwin num dançarino de balé.

Se as autênticas universidades brasileiras tivessem voz, talvez de forma uníssona, elegeriam uma representante que expressaria da seguinte forma:

Eu sou a velha universidade brasileira, não no sentido restrito da cronologia. Aliás, com relação à idade, comparativamente sou até jovem. Sou velha nas estruturas, a osteoporose me corroeu paulatinamente, de tal sorte que mal consigo ficar em pé sozinha. Na realidade, ninguém sabe ao certo minha idade: uns dizem que meus ancestrais nasceram na Idade Média, outros que foi na Renascença, mas poucos se lembram de que já no século 14 um árabe, Ibn Batuta, criou a Universidade do Níger em Timbuktu, para conhecer o mundo, os povos do mundo e a história do mundo. Seja lá de onde eu venho, fui transplantada para o Brasil, sem levar em consideração as vocações desta terra. Hoje percebo que minha adaptação não foi boa e de longe deixei de cumprir minhas finalidades. No meu seio, existem os falsos educadores, que enfraquecem a boa visão dos autênticos. Existem também os arrogantes e falsos cientistas, que por inveja e tantas críticas, inibem a criação de alguns poucos estudiosos e pensadores.

A grande maioria dos professores se encontra em posições cômodas; para essas pessoas, não é necessário mudar a rotina do dia a dia, que, de tantos dias, vira rotina de décadas. Essa situação cria um comodismo tão grande e uma miopia extraordinária que nem sequer permitem enxergar, e muito menos imaginar, que outro modelo de universidade, mais dinâmico e interdisciplinar, é possível. Agora vejam, eu que sou o universo da diversidade, que nasci para criar e inovar, constato hoje que, com raríssimas exceções, as últimas inovações e criações científicas e culturais não surgiram dentro de mim. Isto ocorre, porque me transformaram num grande supermercado para vender ou distribuir “enlatados”; essa tem sido a minha maior função nos tempos de hoje. As amarras em que me encontro nem sequer permitem que meus agentes de boa vontade possam aprender a processar esses “enlatados”, ou seja, misturando ou relacionando uns com os outros, para produzir ao menos um “enlatado” novo.

O tipo de ensino que percorre as minhas veias é tão ultrapassado que sinto pena dos meus professores e alunos, ambos bombardeados pelas incontáveis informações controvertidas e às vezes maldosas da multimídia. O professor, coitado, sem novidade para ensinar, propicia que as salas de aulas se transformem em espaços vazios. Os alunos, mal começa o semestre, já ficam torcendo para que ele termine. As amarras não permitem a estimulação da pesquisa, que é o alicerce da criação. O pesquisador, aquele raro profissional, que insiste em produzir sua própria comida, mesmo que seja num pequeno fogareiro, é sempre visto ou malvisto como algo estranho. Seus discursos e lamentos raramente encontram ressonância e de tanto repetirem a mesma ladainha, muitos se acomodam. Sinto muita pena deles e classifico esta situação como “a erosão do potencial humano”.

Muitos dizem que não estimulam ou desenvolvem a pesquisa durante o espaço da aula, por falta de laboratório. No entanto, se o professor tiver domínio completo do assunto, com um pouco de criatividade e de materiais colhidos em meus corredores, pode perfeitamente transformar sua sala de aula tradicional num laboratório, ou sair até os pátios e ruas e transformá-los em vários laboratórios. O importante nesta relação é o domínio do conhecimento, temperado com uma dose de criatividade. Mas nem isto o gesso no qual me jogaram permite.

E assim a noite continua. Mas vamos continuar a busca pela utopia. Embora o amanhecer esteja demorando, precisamos trabalhar, está sendo muito longa e penosa esta noite, mas temos a esperança de que alguma coisa nova esteja escondida logo ali, depois da curva do rio.