Corria o ano de 2005. E, após estudos de impactos ambientais conduzidos pelas empresas Ecology and Environment do Brasil, Agrar Consultoria e Estudos Técnicos e JP Meio Ambiente para buscar o licenciamento junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), o projeto da transposição do Rio São Francisco – também denominado pelos burocratas de Projeto de Integração Regional das Bacias Hidrográficas – começou a sair do papel.

Desde aquela época, os pesquisadores brasileiros, amparados por uma gama de movimentos sociais e eclesiásticos de boa-fé, tinham consciência que começava a andar o maior crime ambiental brasileiro, incapaz de ser percebido num curto espaço de tempo, mas que os estudiosos da história evolutiva regional, que raciocinam dentro de um outro parâmetro de tempo, sabiam que se tratava apenas de um lapso desse tempo quântico para os impactos negativos ambientais e sociais começarem a aparecer.

Os mais esclarecidos sempre souberam que tal projeto era para atender os interesses do agronegócio e que, futuramente, com a integração da bacia do Rio Gurgueia e do Rio Parnaíba, um milagre, na mente deles, hoje denominado Matopiba, poderia clarear a ganância dos poderosos, transformando-os em milionários e criando classes sociais, como os sem-terra, os sem-tetos, os miseráveis, os desiludidos, cujas consequências enriqueceriam os traficantes de alucinógenos e transformariam as periferias urbanas em áreas incontroláveis, com a proliferação de doenças, abandono das escolas, ausência de serviços estatais essenciais e aumento degradante da prostituição infantil e do trabalho escravo.

Durante aquela época, por aquelas franjas de Cerrado e Caatinga, um peregrino franzino, vestindo uma túnica marrom, com um cordão de São Francisco amarrado à cintura, imitando João Batista nos desertos da Judeia, transmitia mensagens que suplicavam pela coragem, alegando que o tempo da destruição já havia despontado no horizonte. E às vezes, como um Antonio Conselheiro, proclamava: “Eles, que acabaram com os peixes que matavam nossa fome, querem agora secar as águas que saciam nossa sede e lavam os fundos dos nossos roçados familiares.”

O peregrino era Dom Luiz Cappio, bispo da Diocesse de Barra. Atrás dele, uma procissão esperança, composta por religiosos, pesquisadores, representantes dos movimentos sociais, peregrinavam em direção a Brasília. Nesta cidade, foram realizadas várias reuniões e até uma audiência com o então presidente da República, para, de joelhos, implorarmos pela paralisação das obras. Ouvimos promessas vagas, como aquelas da revitalização de toda a Bacia do São Francisco. Nem sequer me ouviram quando tentei dizer de forma acanhada, que o Cerrado, de onde partem as águas que alimentam o São Francisco, uma vez degradado jamais se recupera na plenitude de sua biodiversidade.

O fim do protesto de Dom Luiz Cappio, explicitado através de um jejum de vários dias, associado à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de ordenar a retomada das obras para a transposição do Rio São Francisco, funcionou como uma ducha de água fria, despejada em todos os movimentos. E apagou de vez a esperança que alguns mantinham na capacidade de diálogo dos governantes.

Desde aquela época quase nada se escreveu sobre o tema. A não ser na forma de “louros”, puxando, ora mais, ora menos, o mérito para o construtor daquele desastre que, um dia, a matemática do caos saberá mostrar.

Tentei por algumas vezes escrever artigos sobre os impactos negativos daquela obra, que já eram visíveis, ambiental e socialmente, dentro dos parâmetros científicos da história evolutiva regional. Mas, infelizmente, meus escritos soaram como um grito mudo, numa atmosfera de surdos.

Após algum tempo, retomamos desta vez o assunto, para que fique registrado nos anais da história da humanidade o fato de que nós, pesquisadores, coerentes com os princípios atuais do nosso conhecimento, não fomos omissos.

O argumento até então utilizado, que fundamentou nossa posição, sempre foi baseado em dados científicos, levando em consideração a história da evolução geológica regional, o estado de degradação atual do Cerrado, bem como sua história evolutiva. Particularmente, o argumento que agora me orienta se baseia na etnologia do imaginário das populações ribeirinhas do Vale do São Francisco. Porque parte da cultura se perde com o tempo, mas o imaginário reflete sua parte mais duradoura.

Neste universo imaginário, em meio a inúmeros símbolos e personagens da cosmovisão, se destaca a figura do Nego d’Água. Segundo a crença das populações ribeirinhas habitantes do Vale do São Francisco, esse forte personagem atormenta seus sonhos, ataca os pescadores, violenta as lavadeiras desprevenidas, além da acometer outras tantas aleivosias.

De acordo com os pescadores mais destemidos, nem as carrancas fincadas nas proas das embarcações conseguem assustá-lo; a única maneira de acalmá-lo, quando está disposto a parar as frágeis embarcações, é presenteá-lo com um bom pedaço de fumo de rolo. Daí a razão pela qual esses pescadores sempre carregam nas suas traias tal tipo de material, para agradar o Nego d’Água enfurecido. Os pescadores ainda dizem que esse estranho habitante do rio não gosta de ser chamado de Nego d’Água, mas, sim, de Cumpade d’Água.

Desde criança, cresci ouvindo estas histórias. Os ribeirinhos ainda contam que os Negos d’Água, ou melhor, os Cumpades d’Água, vivem em bandos e habitam as locas que ficam escondidas nas barrancas do rio; vez por outra, saem da água para um banho de sol nos lajedos ou bancos de areia. Sempre zombei da sua existência, porém, diante da grande convicção dos ribeirinhos, minha descrença se assemelhava àquela descrença do ateu que se apega aos santos antes de embarcar num avião.

Em épocas de grandes cheias do São Francisco sempre corria até suas margens, para certificar-me da existência desses personagens. Nunca os vi, e isso era motivo para povoar o meu imaginário de muitas zombarias, que acabava encharcado por um riso de criança, vendo os estragos causados pelas corredeiras que arrastavam galhos, árvores, criações e outros elementos.

Se os Cumpades d’Água saírem das suas tocas para morrerem desidratados nos montes de areia, certamente terei a certeza de sua existência

Hoje, diante do panorama da transposição, nós, pesquisadores, temos elementos suficientes para prever que o leito do rio principal, bem como o de seus afluentes, vai minguar lentamente, expondo como consequência bancos de areia, acumulados pelo processo de assoreamento. Também antevemos expostos de forma assustadora, grandes barrancos ao longo do rio.

Se os Cumpades d’Água saírem das suas tocas para morrerem desidratados nos montes de areia, certamente terei a certeza de sua existência. Entretanto, no imaginário dos ribeirinhos eles são muito teimosos e, por essa razão, certamente morrerão alojados nas suas tocas. Aí jamais saberei de sua existência.

De qualquer maneira, o fato é muito triste, pois afeta o imaginário de milhares de pessoas, cujas consequências podem ir além da nossa imaginação. Aliás, a única certeza que nós, estudiosos do assunto, temos é de que a História, mais dia, menos dia, saberá julgar os autores da ação da transposição e os assassinos dos “Cumpades”.

Nesta perspectiva, retomo novamente o verbo na primeira pessoa do singular, para afirmar que, dentro da minha simples e ao mesmo tempo complexa maneira de ver a vida, me remeto às zombarias e aos risos da minha infância, para pedir mil perdões aos Negos d’água por meu deboche. E eu, que já ri tanto daquele rio, pelas bramuras de suas enchentes, daquele rio não rio mais. Adeus!