Zico é a melhor pessoa entre as lendas do futebol e posso provar por quê

15 agosto 2023 às 15h00


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Memórias afetivas grudam na pele da mente. Eu era um garotinho de 5 anos quando pela primeira vez tive consciência de me preparar para ver um jogo de futebol. Meu pai me falou que o Brasil iria enfrentar o Ajax, que eu não sabia bem o que era, embora o nome soasse bem aos meus ouvidos. De toda forma, ele me garantiu que era um time muito bom.
Palavras de pai são verdades escritas na rocha quando se é criança. Era 1979 e o meu me alertava: aquela seleção nacional que eu via ali em preto e branco tinha muitos craques e um jogador de talento especial, embora de curto codinome: Zico. E meus recém-conhecidos super-heróis venceram por 5 a 0 aquela que fora durante a década considerada a melhor equipe europeia.
Lembro-me de ter assistido àquele amistoso de luxo com um misto de sensações: expectativa, novidade e admiração. Que eu me recorde, ali foi minha primeira vez vendo uma partida na TV. Os limites entre realidade e ficção não estavam ainda tão fixados para mim. Então, de certa maneira, entendia aqueles homenzinhos uniformizados correndo atrás de uma bola pela minha experiência em desenhos animados: de um lado, os mocinhos; do outro, os vilões.
É verdade que os malvados dos holandeses já não tinham seu gênio maior, Johan Cruijff, mas, se lá estivesse no Morumbi, como ícone do futebol-arte bateria palmas para o show de bola dos adversários. Revendo hoje os melhores lances daquele jogo, o dono do espetáculo foi Sócrates, que fez dois gols (o primeiro deles uma verdadeira obra-prima, com “matada” no peito, lençol e corte em dois zagueiros antes do chute certeiro no cantinho). Mas o Galinho de Quintino também fez dois e a propaganda do meu pai (vascaíno, por sinal) fez muito efeito.
Garoto contemplando a beleza do futebol daquele camisa 10, tornei-me quase tão “ziquista” quanto esmeraldino. Torci pelas vitórias e títulos do Flamengo inesquecível daquele começo dos anos 80. Até que Zico foi embora para a Udinese e me dediquei então a sofrer só pelo Goiás. Passei para a turma dos “anti” (como os rubro-negros chamam os que torcem contra seu clube), mas continuo apaixonado por seu maior ídolo, que é o meu também.
Por isso, em minha história, a quinta-feira 10 de agosto de 2023 vai ter um lugar especial. Para as pessoas comuns, são raros os momentos em que se pode encontrar uma celebridade que tenha mudado sua trajetória. Devo muito de minha formação – até literalmente – ao esporte. Dentro dessa grande área, Zico ocupa um espaço singular, o qual ficou especialmente registrado de vez a partir de 14 anos atrás.
Era a manhã do segundo domingo de fevereiro de 2009 e na televisão passava Esporte Espetacular. E veio uma matéria de curiosa e incômoda comparação: “Quem foi melhor, Zico ou Zidane?”, perguntavam na enquete. Mas, gente, que insano teria essa dúvida? Pior foi descobrir que eram muitos: afinal, Zizou se aposentara havia menos de três anos, tinha sido o pesadelo dos torcedores brasileiros em duas Copas e conquistado uma delas, entre outros títulos importantes – inclusive o de melhor jogador do mundo por três vezes. Por outro lado, muitos dos que votavam ali não haviam vivenciado a graça de ver o brasileiro em campo.
Meu filho tinha 4 meses dentro da barriga da mãe e foi ali que decidimos, eu e ela: o nome do rapazinho seria Arthur, em desagravo àquela blasfêmia.
Zico não era apenas mais jogador que o habilidoso carrasco francês. Desde Pelé até o surgimento de Lionel Messi, foi o mais completo craque que passou pelos gramados. Participava do jogo por inteiro, era líder de sua equipe e exemplo de fair play. Tecnicamente, tinha nível de excelência em todos os fundamentos: precisão no passe curto e nos lançamentos, sem contar a ajuda aos companheiros nos desarmes; finalização eficaz com perna direita, com a canhota e também cabeça; mestre da bola parada, detinha um aproveitamento extraordinário em cobranças de faltas e era um perigo constante quando ia para o escanteio, além de exímio batedor de pênaltis; sua visão de jogo beirava à clarividência; dribles tortuosos eram seguidos de arrancadas verticais, em velocidade como poucos de sua época – e com a bola grudada nos pés. Quem viu dá testemunho, e seu testemunho é verdadeiro.
Não por acaso, mas por serem gênios da bola, quem acompanhou a carreira de ambos vai saber que é possível estabelecer várias comparações: Messi e Zico têm posicionamento semelhante em campo, postura corporal, domínio e corrida bem similares. Até mesmo no aspecto físico se pareciam, ainda mais quando jovens.


Talvez por isso tenha me alegrado tanto ver o 10 argentino erguer a Taça Fifa: Leo não merecia passar a carreira sem conquistar o título maior, como ocorreu ao Galinho, pelos caprichos das quatro linhas. Entretanto, há um dito bem correto: se Zico não ganhou uma Copa, azar da Copa.
Não bastasse a injustiça eterna que é a seleção brasileira de 82 não ter levantado o troféu, com aquele esquadrão de craques – maldade semelhante só a que os deuses dos campos haviam feito ao Carrossel Holandês de Cruijff em 74 –, ele também ficou marcado pessoalmente por perder o pênalti contra a França, quatro anos depois. Quem o responsabiliza costuma se esquecer do hercúleo esforço que Zico havia feito para recuperar o joelho a ponto de competir em alto nível, em menos de um ano, após um Flamengo x Bangu pelo Campeonato Carioca. Também não se lembram de que foi dele a genial jogada que gerou o pênalti em Branco naquela tarde triste em Guadalajara. Mas quem disse que o futebol e os torcedores são justos?
Devaneios são inerentes a esse tipo de narrativa, mas é preciso voltar à manhã de quinta-feira no ginásio do Sesc Faiçalville, do outro lado da grande Goiânia, para quem mora na região norte. Depois de chegar em cima da hora, na portaria me lembro de que precisava ter comprado o alimento não perecível. A doação servia de ingresso à palestra que o sr. Arthur Antunes Coimbra proferiria ali. Muita gente, certamente, “deu o migué” e conseguiu passar sem problemas, porque a entrada era franca e o gesto era simbólico. Mas trato é trato, o combinado não é caro.
Perco mais 15 minutos para ir ao super mais próximo e voltar com a contribuição, mas isso talvez tenha sido essencial para, na volta, encontrar Alessandro Gagulé, um colega de infância com quem joguei bola no time dente de leite do “seu” Nivaldo, um oficial da PM que pelo esporte transformou meninos em homens, alguns em jogadores profissionais, no campão de terra da Vila Itatiaia.
Gagulé estava na organização do evento, meio que entre apoio e segurança, e, ao me ver chegar esbaforido, já me reconheceu e me classificou automaticamente como jornalista – apesar de eu ter isso ali “à paisana”, como simples fã em pessoa física. O resultado é que fui levado para ficar junto à imprensa, dentro da quadra e a poucos metros do palestrante. Bem comparando, era como o menino Elder ter ganhado uma credencial para descer da arquibancada do Serra Dourada e acompanhar o Goiás imortal de Luvanor, Cacau, Zé Teodoro e Carlos Alberto à beira do gramado. A plateia, obviamente, era composta de uma maioria esmagadora de flamenguistas. Entre eles, meu amigo Jayme, pobre mortal no meio da massa que se assentava no cimento como que para assistir no Maraca a mais um jogo do camisa 10 da Gávea – registrando aqui que eu estava de pé, por não ter mais cadeira disponível, mas com a impagável compensação da proximidade ao astro do evento.
Zico não é de modo algum arrogante em sua fala, mas também não tem falsa modéstia no papo. Conta com satisfação seus sucessos e com altivez seus perrengues
E eis que toca o conhecido hino de Lamartine Babo e começa a descer as escadas ao fundo da cena aquele senhor septuagenário. De tênis, jeans e camisa manga longa para fora da calça, veste-se de forma jovial, mas os joelhos o obrigam a pisar duas vezes em cada degrau. O povo fica de pé para aplaudi-lo e as palmas merecidamente se demoram.
Então, durante uma hora e meia, Zico fala sobre sua carreira, conta histórias que eu não sabia e outras que já tinha ouvido e ficaram perdidas na memória. Não é de modo algum arrogante em sua fala, mas também não tem falsa modéstia no que diz. Relata com satisfação seus sucessos e com altivez seus perrengues.
Mas, enfim, se encerra aquela conversa que poderia durar o dia ou a semana, com muitos causos do futebol. Logo depois, em um espaço reservado ali mesmo na quadra, meninos e autoridades vão para o gol de futsal para defender cobranças de pênalti do Galinho. Ele chuta simbolicamente, com uma generosidade que zagueiros e goleiros rivais nunca experimentaram. Em tese, era para tudo ter terminado por ali. Mas, na verdade, o acontecimento se transforma em outro, uma versão futebolística da beatlemania. Grande parte da multidão não aceita o evento por concluído: querem uma foto com Zico, querem tocá-lo, querem que ele autografe a camiseta ou seus pertences, ou querem apenas dizer de perto o quanto o admiram. Meu amigo Jayme é um da turma dos autógrafos. Aciona o celular para me encontrar e repassar um uniforme réplica da seleção de 86, para que o craque a assine. Mas a muvuca é grande demais para um acesso direto. Tenho uma ideia: repassar ao Gagulé, meu amigo da organização – que agora já se desorganizou – e está lá no meio da bagunça.


O problema é que meu colega de futebol na periferia está quase tão inacessível quanto o astro a quem protege. Torcendo para dar certo, repasso a relíquia canarinho a um rapaz de crachá e mesmo uniforme, indicando para quem ele deveria entregá-la. “É o Alessandro, da organização”. Quem? Ele não o conhece. Aponto para o fortão careca que está lá no meio da histeria rubro-negra e ele vai atrás. Depois de algum tempo, quem vem atrás, mas de mim, é o Jayme. “E aí?”, pergunta, com total ansiedade. E aí que está lá pro Galinho assinar, respondo. “Mas lá com quem?”, se desespera.
Eu olho e vejo que Alessandro Gagulé agora tinha sumido do campo de visão. E sabe-se lá se o rapaz havia conseguido lhe entregar a camisa do meu amigo flamenguista. Agora eram Jayme e eu com nós nas respectivas gargantas temendo pelo destino da peça rara no meio daquele fuzuê, enquanto observávamos no piso da quadra, sendo resgatada numa padiola pelos bombeiros, uma moça que tinha levado a pior no meio daquele pequeno caos.
Depois que me tornei jornalista, só por duas vezes, e ainda no começo da carreira, me atrevi a tietar e pedir autógrafo a quem eu tinha alguma consideração: uma foi com o ex-judoca Aurélio Miguel, ouro na Olimpíada de Seul, em 1988; a outra, com o tricampeão de Fórmula 1 Nelson Piquet. Arrependo-me de ambas, não por minha atitude, mas pelo que os dois fizeram com sua reputação tempos depois.
Mas Zico, como diria o filósofo contemporâneo Bruno Henrique, é “outro patamar”. Mesmo assim, um dos motivos de ter uma resistência a ir além de apenas estar perto como fã era acabar provocando uma reação não desejada do ídolo. Não queria “estragar” a imagem do craque que conservei durante a vida.


Mas isso não tinha por quê, e explico daqui a pouco o porquê. Antes, é preciso dizer que encontramos o Gagulé, que retirou de sua bolsa a amarelinha devidamente autografada. E então pude presenciar um amigo cinquentão dar pulos de alegria, como se tivesse conquistado seu próprio graal.
Nesse momento, já estávamos na área externa ao ginásio, a lenda do Flamengo e da seleção se deslocando lentamente, sempre protegido por um cordão de isolamento entre necessário e improvisado, enquanto a multidão lhe pedia uma selfie ou um autógrafo ou só um pouco de atenção. Zico atendia todo mundo com tanta paciência que então pensei “olha, não vai ser a mim que ele vai destratar”.
E, razão já vencida pela paixão, me juntei à turba, passando ao embate com a equipe de segurança para tentar conquistar meu prêmio. Todo mundo implorando, gritando “Galinhô, aqui, Galinhô!” ou “Zico, Zico, assina pra mim!”, alguns seminus temporariamente, enquanto tentavam um rabisco nas camisas que tinham tirado do corpo. Isso em meio a gente cantando o hino rubro-negro ou algum grito antigo da torcida.
Era muito barulho, até que ele percebeu meu esforço de convencimento dos homens do cordão. Quando vi que meu alvo tinha me focado, qual a primeira coisa que falei? “Zico, meu filho se chama Arthur porque você é muito maior do que o Zidane!”. Claro que, além de mim, aquilo dito assim não fazia nenhum sentido algum, mas era o que dava para resumir da história pessoal dentro de um acotovelamento debaixo de sol quente. Nunca vou saber se ele entendeu ou não, o fato é o Galinho falou para aliviarem comigo. “Deixa ele vir”, ou algo assim. E então tive meus dez segundos místicos: com a precisão de quem foi treinado a vida inteira para desenhar sua grife, Zico rabiscou no meu peito minha camisa preferida – que era de trabalho, mais a ver com tênis do que com futebol. E, já que estava ali, me atrevi a tirar uma selfie, a qual, em decisão de um átimo, resolvi trocar por um vídeo curtíssimo de dois segundos de louvação a meu super-herói de infância.


Mostrei o feito ao Jayme e comemoramos nossas façanhas. Depois, agradeci ao Gagulé, trocamos alguma conversa e, como o dia útil pedia, fui embora cuidar de meus afazeres, uns dez quilos mais leve. Meu ídolo era de carne e osso demais, e ter esse contato, que confirmava os vieses de caráter, simpatia e generosidade, complementava a fascinação pelo talento puro.
De Quintino para o mundo, Zico nunca foi nem pretendeu ser rei, como um Pelé – embora, por sua passagem pelo Japão, por lá seja quase um imperador, dizem. O fato é que o Galinho tem uma nobreza suburbana inigualável, daquela que só quem veio do mundo das privações e dos sacrifícios pode alcançar. Em tempo: “Faltou Dizer” é uma coluna para tratar de temas mais urgentes à ordem do dia. Mas sempre vai “faltar dizer” o quanto Zico merece seu lugar de destaque entre as maiores lendas do futebol, seja pelo que produziu em campo, seja pelo que sempre foi fora dele. E a camisa com aquele “Zico” estilizado agora é peça de museu particular. No armário, é um pedaço, um traço, do super-herói que eu conheci em monocromia, naquela noite de 79.