“Barulho da noite” bota dedo na ferida de uma tragédia nacional: a violência infantil
19 agosto 2023 às 18h09
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Uma estreia histórica e alvissareira, para o incipiente e vigoroso cinema do Cerrado. O longa-metragem “Barulho da noite”, filme genuinamente tocantinense, já conquistou o improvável: figurar entre as principais produções brasileiras de 2023, credenciado por um dos mais importantes festivais de cinema do país, o Festival de Cinema de Gramado. E isso em si já é um prêmio. Afinal, a visibilidade é importante para um filme com baixo orçamento, vindo de um Estado sem tradição na produção cinematográfica e abordando uma temática delicada e difícil de ser retratada na telona.
O longa conseguiu ser selecionado para a mostra competitiva do 51º Festival de Cinema de Gramado dentre 300 inscritos. E causou uma boa impressão logo na estreia. Está entre os seis que concorrem ao Kikito e já conseguiu a façanha de ser ovacionado por jornalistas e críticos de cinema que acompanham o evento, o que indica uma trajetória de sucesso. O “Barulho da Noite” é o primeiro filme do Tocantins a entrar no Festival e único dirigido por uma mulher a entrar na competição. Tem tudo para fazer história. Aliás, já fez.
A curadoria do festival ficou a cargo do ator Caio Blat, ganhador de dois Kikitos como melhor ator; do jornalista, crítico de cinema e professor Marcos Santuário e a atriz e cantora argentina, Soledad Villamil.
O festival ainda não acabou e tudo pode acontecer, mas o longa dirigido pela produtora e roteirista Eva Pereira, pode ser considerado um vencedor. O filme é estrelado por atores globais, todo rodado no Tocantins. Ambientado na paisagem do Cerrado, explora as manifestações culturais do Tocantins, como a Folia do Divino Espírito Santo, que diz muito sobre a identidade do Estado e do jeito tocantinense de ser.
A produtora e roteirista, Eva Pereira, ainda bastante emocionada com a estreia do seu trabalho, afirma que a receptividade do público e da crítica especializada de cinema, até agora, superou as expectativas. “Estamos no festival com muita humildade, disputando o prêmio com grandes produções do cinema nacional. Por isso, só de termos chegado até aqui, colocado o Tocantins sobre o tapete vermelho e na tela do Festival de Cinema de Gramado, já representa uma grande vitória”, disse a diretora, destacando a conquista de ter levado o Tocantins tão longe na produção audiovisual.
Segundo a atriz Emanuelle Araújo, o longa não busca ser bonito, pelo contrário, provoca desconforto no espectador. “Esse roteiro, a Eva fez com muita pesquisa para mostrar a realidade que existe. Não houve a intenção de romantizar. É uma história que busca ser colocada de uma forma incômoda”, defende a atriz.
O filme conta o drama de Maria Luíza, uma menina de 7 anos, a primeira a perceber que sua família está por um fio quando descobre que a mãe está apaixonada pelo sobrinho. O olhar de Maria Luíza é o esconderijo de tudo que ela cala, da dor silenciada, da denúncia, do pedido mudo de socorro contra os abusos que sofre, dos seus anseios e medos. Após o avanço do tempo, Maria Luíza perderá brutalmente sua inocência, e o olhar de Ritinha, a irmã mais nova e sua cúmplice na história.
Agricultor e folião do Divino Espírito Santo, Agenor parte no giro da folia para cumprir as promessas na Festa do Divino, por graças recebidas, deixando sua mulher e filhas aos cuidados do intruso. Ao tratar de temas delicados e retratar o cotidiano rural do Brasil profundo, “O Barulho da Noite” revela uma história dramática contada por não ditos, pelo olhar da menina que se cala e se encolhe pela dor silenciada e pelo pedido mudo de socorro, nunca atendido. O elenco conta ainda com a participação de Tonico Pereira no papel do caixeiro-viajante Chico Mascate.
O filme coloca os holofotes nas crianças, para falar sobre abuso infantil, um tema difícil e espinhoso. “Apesar de recentemente começar a ser discutido de forma mais calorosa nas redes sociais e na mídia, no dia a dia, esse tema continua velado, pairando como uma sombra de um mal recorrente em universos distintos, extrapolando privilégios econômicos, sociais e culturais”, diz a diretora.
Os dados da violência infantil no Brasil são alarmantes. A cada 15 minutos uma criança sofre abuso sexual no Brasil, segundo dados da Fundação Roberto Marinho. O abuso sexual é uma das causas de comportamentos como agressividade, falta de apetite e isolamento social. O crescimento desse tipo de crime no Brasil assusta.
Segundo dados do Ministério de Direitos Humanos de Cidadania, só nos quatro primeiros meses deste ano foram registradas 17,5 mil violações sexuais contra criança e adolescentes, registrados pelo Disque 100. O órgão aponta um aumento de mais de 70% dos casos, com o mesmo período de 2022. Os dados do ministério apontam ainda que é nas casas da vítima, do suspeito ou de familiares onde estão os piores cenários da violência, com quase 14 mil violações.
Sobre a violência contra a mulher que também acontece no ambiente doméstico, a juíza de direito, Renata Nascimento, ressalta que a culpa não é da mulher. “O problema não é só da mulher, mas é da sociedade. É um mecanismo, uma estrutura de força e de controle. É necessária uma mudança de consciência e de uma estrutura gigantesca, que perpassa nosso sistema familiar patriarcal”, pontua a magistrada.
O primeiro longa do Tocantins a participar do Festival de Gramado está fazendo um barulho no Sul e pode abrir caminhos para a produção audiovisual do Estado que, embora ainda pequena, já chama atenção. Recentemente o filme A Flor do Buriti foi premiado no Festival de Cinema de Cannes, na França. Dirigido pelo português João Salaviza e pela brasileira Renée Nader Messora, o longa ganhou o prêmio de melhor equipe na mostra “Um Certo Olhar”.
O filme foi rodado ao longo de 15 meses, em quatro aldeias do Tocantins. Por meio dos depoimentos dos indígenas, eles reconstituem as últimas oito décadas. Do massacre sofrido pelo povo, em 1940, às consequências do bolsonarismo na vida dos Krahô. Explorando as fronteiras entre documentário e encenação, o longa conta também com a participação da líder Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas.
O documentário Hotxuá, o Palhaço Sagrado, o Riso da Terra de 2009, dirigido por Letícia Sabatella e Gringo Cardia, foi vencedor do Prêmio do Júri Popular no Festival de Cuiabá e do troféu Mapinguari no FestCine Amazônia. Destaca os índios que vivem na aldeia Krahô, no norte do Tocantins, onde preservam a maior área de cerrado do Brasil. Conhecido por ser alegre, esse povo tem o palhaço Hotxuá como o responsável por fazê-los rir. A produção registra o dia a dia da tribo, sua cultura e preocupação com o meio ambiente.
O cineasta premiadíssimo Cacá Diegues, quando filmou Deus é Brasileiro, lançado em 2003, com locações em Palmas e no Jalapão ficou maravilhado com a luz cinematográfica do Tocantins. O diretor elogiou muito a paisagem cênica e a luz que segundo ele contribui muito para a produção audiovisual em função das condições naturais. Na época chegou a dizer que o Tocantins tem o pôr do sol mais bonito do Brasil.
O “Barulho da Noite”, que será lançado somente em 2024, já criou uma expectativa bastante interessante para levar público ao cinema. Tem tudo para ser um sucesso e ajudar a projetar a produção audiovisual do Tocantins que vem aumentando significativamente.