A notícia que mexeu com Goiânia na manhã da terça-feira, 27, foi a “invasão” de uma residência no Condomínio Aldeia do Vale, região norte da capital, por uma onça. Enquanto Corpo de Bombeiros e técnicos do Zoológico eram acionados para a ocorrência e o resgate, um vídeo viralizava nas redes sociais: era a onça acuada, emitindo alguns sons de espanto e alerta.

Nessas horas, ser a espécie hegemônica tem suas vantagens: só o dom da palavra para fazer outro ser humano crer que era aquele animal que tinha realmente “invadido” o espaço. Porque o espaço é dela.

Jogando por baixo numa estatística leiga, as onças estão no Cerrado brasileiro há dezenas de milhares de anos. Até o início do século 18 – portanto, 300 anos atrás, no máximo –, onças encontrarem seres humanos por aqui era evento raríssimo. Quando isso ocorria, a luta pelo território era paritária até terminar em armistício: os animais ficavam nas savanas e matas e aqueles homens quase desnudos, em clareiras, onde formavam aldeias. Quase sempre respeitavam o espaço um do outro, porque, por extensão, cada um respeitava o outro.

Com a chegada de homens mais claros, mais vestidos e com instrumentos mais mortais nas mãos, o acordo não escrito de paz acabou. Para sempre. A partir de então, a disputa ficou desigual e a “negociação” passou a ser tácita: ou as onças ficam longe do “nosso” espaço ou a gente mata as onças.

Primeiramente, isso aconteceu nos núcleos urbanos: em vez de clareiras no meio do mato, o que passou a existir, com o tempo, foi algum mato em meio às clareiras. Eram as cidades, cada vez maiores, mais cheias de gente e sem espaço para divisão com qualquer bicho que não fosse “útil” aos homens.

Não parou por aí: com o avanço da fronteira agrícola e do agronegócio no Cerrado, também o mato fora das cidades ficou cobiçado, porque, afinal, soja e gado dão dinheiro todo ano. E esse cerradão enorme e incólume, serve para quê?

Agora, já não há mais Cerrado incólume, muito menos enorme. Onde mora hoje a dona onça, um animal que precisa de uma área com 50 quilômetros de raio para viver e sobreviver? Ela não mora mais: ela foge. Foge para lugar nenhum, porque lugar para ela não há mais.

O que fazia ali, então, a onça do Aldeia do Vale? Em uma área que até 30 anos atrás seria sua morada e a de seus ancestrais, ela quixotescamente exigia, atordoada e sem saber, a reintegração de posse tomada pela espécie hegemônica.

Indo literalmente mais longe, aos rincões do Brasil, indígenas são hoje uma “espécie” muito mais próxima, em mesmos interesses, da onça “invasora” do que desses homens brancos que se transformaram em cupins tecnológicos.

Está em discussão no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), o estabelecimento de um marco temporal para a demarcação das terras dos povos originários. Isso nada mais é do que é a legalização da grilagem por parte de quem é dominante.

Aquela onça no Aldeia do Vale é mais dona daquele condomínio do que qualquer portador de escritura. Assim como qualquer indígena é mais senhor desta terra do que estes cupins bípedes e vestidos que aqui se disseminaram.