Juliana Márcia: “existe um peso social atribuído à maternidade como dom natural e de atribuição exclusivamente feminina”
09 novembro 2023 às 11h35
COMPARTILHAR
Neste mês, a coluna Conversas de Mãe traz entrevista com a pesquisadora da PUC Rio Juliana Márcia Santos Silva. Entrevistada pela professora Ana Carolina Coelho, que é feminista, mãe de duas crianças, mulher, escritora, professora, e coordenadora do GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais FH/UFG/CNPq, Juliana foca nas experiências de mães universitárias e na luta por melhores condições de conciliar maternidade e estudos. Além disso, Juliana ressalta que é essencial reconhecer que as mães têm desejos e sonhos que vão além da maternidade. Confira:
- Ana Carolina Coelho: Juliana, poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória, suas metas e sonhos?
Juliana Márcia: Nasci numa comunidade chamada Marotinho, em Salvador, em uma família negra periférica que a partir dos estudos conseguiu subir de vida. Estudei em escolas confessionais toda a vida e tive uma educação em parte católica e em parte adventista. Sempre fui uma criança “ligada no 220V”, e uma adolescente que “dava nó em pingo d’agua” e hoje sou uma adulta inquieta com olho aguçado para analisar as relações sociais. Quando eu era criança minha mãe trabalhava tanto que quando ela chegava eu já estava dormindo e quando ela saia eu ainda não tinha acordado, mas colo de vó não me faltou. Fiz graduação em serviço social e mestrado em estudos interdisciplinares em mulheres gênero e feminismos na UFBA, e hoje faço doutorado na PUC Rio como bolsista – sem bolsa pra mim seria impossível estar na PUC Rio.
Estudo mães estudantes desde que pensei em me tornar pesquisadora, maternidade é a instituição que faz meu olhos brilharem, desde a maternidade no sentido biológico até o sentido social. Minha meta hoje é concluir o doutorado e ingressar na docência dentro da minha área de formação pra que eu possa contribuir com a formação de outras assistentes sociais. Sonho em casar, em ser mãe, em viajar o mundo e em comprar uma casa no mato pra reunir a família aos fins de semana comendo milho assado na fogueira.
- Ana Carolina Coelho: Como você decidiu estudar a questão das maternidades? Pode nos contar mais sobre sua pesquisa?
Juliana Márcia: “Decidi estudar maternidade por causa da minha mãe”, seria a resposta mais curta para dar a essa pergunta e a resposta que eu costumava dar, mas hoje vejo que estudo maternidade porque percebi como tantas mulheres são prejudicadas pelo peso social atribuído à maternidade como um dom natural e de atribuição exclusivamente feminina.
Minha mãe foi uma “mãestudante” de graduação que engravidou do segundo filho no fim do curso de farmácia, sem dilatação de prazos, sem alívio das rotinas, sem licença maternidade de seis meses, sem regime de atividades domiciliares, ou seja, sem qualquer direito a um alívio da rotina estudantil. As múltiplas jornadas que ela assumia fazia com que ela estivesse sempre ocupada de mais ou cansada de mais, e eu precisei ser rede de apoio pra ela no cuidado com meu irmão.
Após me tornar uma pesquisadora do tema nós tivemos conversas terapêuticas sobre esse período em que ela pode confessar pra mim o peso da culpa que a acompanhava. Minha pesquisa iniciou analisando trajetórias de mulheres como ela na graduação e na pós graduação, dando ênfase a questão racial e hoje ela se concentra em estudar os coletivos de mães nas universidades que lutam por melhores condições de viver a universidade e a maternidade. Hoje ela já deu belos frutos, em especial o mapa nacional de coletivos de mães universitárias – confesso que é a menina dos meus olhos. Ainda não sou mãe, mas espero que quando meus filhos se tornarem estudantes estejamos em outro modelo de escola e universidade.
- Ana Carolina Coelho: Você frequentemente recebe a pergunta “mas você é mãe” por estudar sobre maternidade? Qual é sua perspectiva sobre esse questionamento?
Juliana Márcia: Sim, muitas pessoas assumem que sou mãe por estudar maternidade. Algumas preferem me chamar de mãe ou “irmãe” devido ao meu papel de cuidado com meu irmão. Isso ocorre porque as pessoas geralmente se relacionam com movimentos que as representam pessoalmente. Eu acredito que a maternidade é uma questão que deve ser refletida por todas as mulheres, não apenas as mães. Lidar com esses questionamentos não é um problema, exceto quando usam minha não-maternidade para invalidar minha presença nos movimentos maternos. Acredito que esses serem espaços que precisam de todas as pessoas e luto para que as mães sejam protagonistas e narradoras de suas vivências. É importante dizer que essas invalidações jamais vieram de dentro do movimento de mães onde sempre fui muito bem aceita.
- Ana Carolina Coelho: Quais são os desafios mais importantes que as mães enfrentam nas universidades atualmente?
Juliana Márcia: As mães nas universidades enfrentam desafios como a falta de licença maternidade para estudantes, a necessidade de estruturas de amamentação, creches, fraldários, acesso a restaurantes universitários e a permanência nas moradias estudantis. É essencial criar políticas de ação afirmativa que considerem o acesso e a permanência das mães na educação superior.
- Ana Carolina Coelho: O que o público que está nos lendo pode fazer para contribuir para a luta materna?
Juliana Márcia: A escuta atenta é fundamental, além de ser uma rede de apoio para as mães ao seu redor. Lembre-se de que as mães são mulheres, têm desejos, sonhos e planos que não se limitam a seus filhos. Recomendo fortemente lembrar-se que uma mãe também é uma mulher, uma pessoa e uma cidadã, tem desejos, tem sonhos, tem planos e vontades que não estão voltados para sua criança.
- Ana Carolina Coelho: Há algo que você gostaria de falar e que não foi abordado nesta entrevista?
Juliana Márcia: Gostaria de discutir o significado da maternidade. A maternidade pra mim é uma bela instituição que valoriza a relação de uma mulher com seu filho e a capacidade feminina de gerar um ser humano completo. Ao mesmo tempo, é também uma instituição utilizada para aprisionar mulheres as obrigações do lar e da família, submetê-las a anulação de seus desejos e planos, além de obrigar essa mulher a aceitar diversas violações em nome do amor materno e de ser “uma boa mãe”.