São Bartolomeu e o capeta

06 dezembro 2020 às 00h00

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Capela do Morgadio da Granja de São Bartolomeu, de 1568, só abre no dia 24 de agosto, única data em que se pode visitar seu interior, forrado de azulejos fabricados e assentados no século 17
De Aveiro, Portugal — Repito, caro leitor: em Portugal, basta andar pelas ruas para se deparar com uma história, uma lenda ou uma tradição interessante, muitas vezes guardando uma ligação conosco, brasileiros.
Inúmeras vezes passei, na freguesia (bairro) de Beira-Mar, em Aveiro, por uma pequenina capela, sempre fechada, com uma grossa porta de madeira onde se vê uma ranhura para entrada de moedas, ranhura já bastante gasta pelo uso e pelo tempo, diga-se.
Procuro me informar e descubro: é a capela do Morgadio da Granja de São Bartolomeu, construída em 1568, que permanece fechada todo o ano, abrindo só no dia 24 de agosto, única data em que se pode visitar seu interior, forrado de azulejos fabricados e assentados no século 17. Estão ali, no altar, três imagens multicentenárias: Uma Nossa Senhora da Boa Viagem, tendo a um lado São João Batista e de outro um São Bartolomeu, este subjugando com uma corrente um cão representando o demônio. Acontece com todas as capelas cujo santo de devoção é São Bartolomeu: só abrem um dia no ano, a 24 de agosto.

E vêm a história, a lenda e os costumes tradicionais: São Bartolomeu é um dos doze apóstolos de Cristo, citado nos evangelhos (Livro de Jó) como Natanael, que levado por São Felipe, o Evangelista, teria acompanhado Jesus por três anos, e assistido à crucificação e à ressureição. Teria pregado na região que é hoje a Europa Oriental e sido martirizado no Cáucaso, no ano 51 d.C., ficando como seu dia o 24 de agosto, que reza a lenda, foi o dia de sua morte. A grande religiosidade portuguesa estendeu bastante essa lenda, e incorporou a figura do santo nos seus festejos e costumes tradicionais.
Diz-se que São Bartolomeu, certa feita, exorcizou um rapaz doente, e ao expulsar o demônio, fez dele prisioneiro. Teria sido o único apóstolo a conquistar esse feito, e por isso, suas imagens o retratam com um cão acorrentado deitado a seus pés. Como se sabe, em muitas culturas, o demônio é representado por um cão, e entre seus muitos nomes, capeta, demônio, demo, diabo, ferrabrás, satanás, tinhoso, e tantos mais, também figura “o cão”. Tremenda injustiça para com o melhor amigo do homem, portador de muita amizade e lealdade, como sabemos. E continua a lenda: São Bartolomeu, como santo que é, cultiva a tolerância, e um dia por ano, justamente no dia 24 de agosto, libera o demo, para que dê suas voltas por aí, evidentemente avisado pelo santo de que seja parcimonioso em suas maldades, e que à meia noite volte ao cativeiro, para que no ano próximo tenha sua nova “saidinha”. Algo parecido com o que ocorre no Brasil, e os leitores sabem do que falamos.
O dia 24 de agosto, em Portugal, é então o dia em que “o diabo está à solta”, e é preciso ter cuidado com ventanias, agressões, acidentes, perdas, roubos, doenças e tentações. A rainha Catarina de Médici reforçou a lenda do diabo à solta, ordenando o chamado “massacre de São Bartolomeu”, e promovendo a matança dos protestantes franceses em 1572, justamente num 24 de agosto. E não à-toa, São Bartolomeu é tido como padroeiro dos que tiveram objetos de valor perdidos ou roubados e das esposas enganadas. Quem necessitar de suas graças deve fazer uma promessa ao santo, e uma vez atendido(a), encontrado seu objeto desaparecido ou retornado ao aconchego do lar o marido infiel, deve pagar ao santo em moedas. Como as capelas só se abrem no dia 24 de agosto, existem em suas portas as fendas para que os fiéis atendidos depositem suas oferendas a qualquer tempo, como a que vi aqui na capela de Aveiro. Diz ainda a lenda que as moedas de pequeno valor, pela temperança do santo, ele acaba as transferindo ao demônio.
Existe uma romaria tradicional de São Bartolomeu, em Portugal: em Esposende, um concelho (município) do norte português, e no distrito (estado) de Braga. Lá existe a praia de São Bartolomeu do Mar. O costume, ou ritual religioso, centenário e até hoje seguido, e também em várias outras praias portuguesas é o seguinte:
Os pais que desejam que os filhos fiquem livres dos malefícios do diabo, como gagueira, epilepsia, medos e pesadelos, entre outros, levam suas crianças à praia, no 24 de agosto, e as entregam a um “banheiro”, que ali se encontra, tipicamente vestido. Pela tradição, os “banheiros” eram “sargaceiros”, os antigos colhedores de sargaços que serviam de adubo para as plantações. O “banheiro” submerge por três vezes o garoto (ou garota) no mar (os “banhos” podem variar em número, para cinco ou sete, sempre ímpares) e o entrega aos pais, recebendo uma paga. Podemos imaginar o berreiro da criançada nesses 24 de agosto, com esses mergulhos forçados nas águas geladas do Atlântico Norte. Em seguida os pais, já munidos de um galinha preta, fazem com que os “miúdos” deem três voltas em torno da capela de São Bartolomeu com a ave embaixo do braço. Reza a tradição que após essas voltas deve a família voltar à praia e fazer um cozido da galinha, que é distribuído à família. O ritual permanece, embora incorporando algumas modernidades. Por exemplo: hoje não é necessário que os pais levem a galinha e nem que a sacrifiquem. A galinha preta pode ser alugada na capela, e devolvida após as três voltas tradicionais em torno dela.
Algo dessas tradições, desses cultos religiosos chegou até nós? Com boa vontade, pode-se ver no costume litorâneo brasileiro de pular três ondas nas passagens de ano para se livrar da má-sorte, algo parecido. Ou no sacrifício das galinhas pretas nos terreiros de umbanda. Mas vestígios da crendice em São Bartolomeu e seu diabo acorrentado encontramos mesmo é no nosso Nordeste. Ali existe o dia dos “Exús”, que nos ritos africanos se confunde com o diabo, e é justamente o 24 de agosto. E para finalizar, também na região, se celebra, a 24 de agosto, o “Dia da Sogra”. Muitos leitores, não tenho a menor dúvida, vão achar bastante apropriada a data da celebração.