Na paisagem política atual, que pode bem ser descrita como um deserto de lideranças, vale lembrar Antônio Delfim Netto (1928-2024), que faleceu no dia 12 de agosto de 2024. Há algum tempo, doou 100 mil livros para a Universidade de São Paulo, onde estudou e se tornou professor emérito.

Delfim Netto era economista, professor universitário, ocupou no regime militar três ministérios diferentes (Fazenda, Agricultura e Planejamento), foi embaixador na França e deputado federal por cinco mandatos, representando São Paulo.

O economista foi o civil mais influente em todos os governos militares, principalmente como ministro da Fazenda, cargo que ocupou por sete anos, quando a economia brasileira mais cresceu em sua história, superando os 10% ao ano.

Ele brindado pela imprensa da época com o título de “czar da economia”, tal o seu poder. Em que pese a seriedade daqueles tempos, nunca deixou de ser afável, bem-humorado, aberto à imprensa. 

Ernane Galvêas e Nestor Jost: auxiliares de Delfim Netto | Foto: Reproduções

Ao fim do regime militar, quando se elegeu deputado, era um dos mais assíduos na Câmara e atencioso com os colegas.

Por incrível que pareça, Lula da Silva (PT), eleito presidente, embora nada tivesse que o aproximasse de Delfim, conhecedor de sua competência, mais de uma vez o procurou, em busca de conselhos econômicos, que ele não se furtava a dar.

Acusado algumas vezes de corrupção, nada se provou, e até os últimos dias levou uma vida moderada.

Constantemente visado pela imprensa “sinistra” por ter assinado o AI-5, alegava que em 1968 os tempos eram outros, e que julgar sem tê-los vivido era tão fácil quanto errado; que não se arrependia da assinatura. Tinha razão, pois vivíamos tempos de terrorismo, com URSS, China, Coreia do Norte e Cuba financiando a juventude brasileira para imitar o movimento, então romântico, de Fidel Castro descendo a Sierra Maestra com seus jovens companheiros para derrotar o ditador Fulgencio Batista. Só que para implantar no Brasil uma ditadura comunista. 

Irrepreensível: o czar da modernização

Delfim Netto foi um irrepreensível condutor da economia, de 1967 a 1974, época em que crescemos a taxas nunca vistas, viveu-se o pleno emprego, e eram dispensáveis os programas assistenciais que, por um lado, atendem os mais carentes, mas, por outro lado, os manipulam eleitoralmente, desestimulam o trabalho e não libertam para uma vida mais digna os beneficiários.

As instituições financeiras públicas foram modernizadas e serviram com eficiência uma economia florescente. Dou meu testemunho ao leitor, via de um episódio vivido em 1973, e que foi importante para Goiás, da personalidade de Delfim Netto, principalmente quanto à competência, ao espírito público e à simplicidade.

O expert em economia sabia se cercar de pessoas competentes, e colocá-las em postos-chave na estrutura que chefiava. O presidente do Banco Central era Ernane Galvêas e o do Banco do Brasil era Nestor Jost, profissionais qualificados para as funções que exerciam, e não, como hoje, “companheiros” em busca de bons salários e pouco trabalho. 

Antônio Delfim Netto, Ernane Galvêas e Carlos Langoni, em 1983 | Foto: Reprodução

Em fins de 1971, o Conselho Monetário Nacional aprovou a criação do primeiro banco multinacional de investimentos com participação brasileira, o European Brazilian Bank (Eurobraz), com sede em Londres.

O banco tinha como sócios o Banco do Brasil, o Deutsch Bank, o Swiss Bank, o Bank of America. Ideia de Delfim Netto, realizada por meio de cuidadoso trabalho de Nestor Jost, o Eurobraz desempenhou importante papel na economia brasileira nos anos seguintes, em que o país construía grandes obras de infraestrutura, como a ponte Rio-Niterói e a usina de Itaipu, e se ressentia da pequena poupança interna.

O Eurobraz foi peça chave na captação de recursos externos (para Itaipú inclusive), facilitada pela situação saudável de nossa economia na época.

O diretor indicado pelo Brasil para o Eurobraz era um jovem professor de economia carioca e funcionário de carreira do Banco do Brasil, Alfredo Moutinho dos Reis.

Moutinho dos Reis fora professor visitante do curso de Engenharia Econômica da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Goiás, e fizera amigos em Goiânia. Eu era um deles. Havia sido trazido por um ex-aluno, o competente economista goiano José Carlos de Almeida.

Financiamento para a usina de Cachoeira Dourada

O Eurobraz se instalou em 1972. Em 1973, eu ocupava a presidência da Centrais Elétricas de Goiás S.A. (Celg), que construía a maior obra do Estado, a Usina de Cachoeira Dourada. Não era simples levantar recursos para continuidade da obra. Apenas tínhamos duas fontes de financiamento: Eletrobrás e BNDES (então apenas BNDE — Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico).

As negociações, até porque ambos os financiadores tinham suas limitações de captação, eram demoradas e raramente contemplavam liberação de recursos para mais de um ano de obras. Financiamento externo ainda era algo desconhecido aqui por nossas plagas. Resolvi ligar para Moutinho em Londres.

Usina de Cachoeira Dourada, que pertenceu à Celg | Foto: Cedoc/Jornal Opção

— Moutinho, você tem como financiar as obras de Cachoeira Dourada?

— Claro, a Celg é empresa reconhecida nacionalmente, fornece energia para Brasília. Qual seria o montante?

— X milhões de dólares. Precisamos de uma carência de três anos, até que a etapa entre em operação, e mais sete para pagar.

— Sim, é possível.

— Que garantias você exige? Não me peça aval da União. É difícil.

— Bastam-me as contas de energia. Ponha a Caixego (Caixa Econômica Estadual de Goiás) como fiadora, já que ela recebe boa parte de suas contas de luz. Isso basta.

Fiquei surpreso. Era muito mais fácil do que eu imaginava. E os juros eram muito menores que os do BNDES e da Eletrobrás. Pedi a Moutinho que providenciasse o contrato. Liguei para o presidente da Caixego, Índio Artiaga, contei-lhe a conversa e disse:

— Prepare-se para irmos a Londres nos próximos dias.

Mas haveria um drama final:

Chegamos cedo no Rio de Janeiro, alguns dias depois, para embarcarmos à noite para Londres. Soa o telefone no escritório da Celg no Rio. Era Moutinho.

— Irapuan, estou aguardando vocês. Mas você colheu a autorização do Ministério da Fazenda para o empréstimo?

—Nem sabia que era necessário.

— Há um Conselho que controla o endividamento externo e que autoriza.

—Vou cancelar a viagem e providenciar. Depois falamos (lá iam por água abaixo meus sonhos de financiamento rápido e abundante para Cachoeira Dourada).

— Não ainda. Vou falar com Delfim e te ligo. Aguarde aí.

Cerca de uma hora depois, Moutinho liga novamente:

— Você tem sorte. Delfim está aí no Rio e pede a você para ligar para ele. Está no escritório do Ministério, na Avenida Rio Branco.

Liguei, um tanto descrente, para o Ministério. Delfim Netto era a figura civil mais importante do Brasil de então. Muito ocupado, atenderia alguém que desconhecia? Para minha surpresa, a secretária passou imediatamente a ligação, e tenho até hoje na memória o diálogo:

— Bom dia, ministro. Estou ligando a pedido do Moutinho, do Eurobraz.

— Sim. Você é o Irapuan, da Celg. O Moutinho me relatou seu problema. Você tem papel timbrado da Celg com você?

— Sim, estou no escritório da empresa aqui do outro lado da avenida.

— Ótimo. Faça um pedido de autorização em duas vias para seu empréstimo e traga aqui para mim. Estou aguardando.

Fiz o ofício e corri ao ministério. Fui recebido por um Delfim Netto sorridente, que guardou na gaveta a cópia do ofício que eu levava e escreveu no original que me devolveu: “Autorizo, ad referendum do Conselho tal”, e assinou.

— Pronto. Pode buscar seu dinheiro com o Moutinho — arrematou, sempre sorrindo.

Um dos homens mais ocupados do país, e um dos mais importantes, havia resolvido com rapidez e simplicidade o problema que afligia um desconhecido de um Estado interiorano desimportante, então. Havia entendido que se tratava de algo relevante do ponto de vista social e havia demonstrado disposição e boa-vontade em ajudar. Guardei a lembrança e a gratidão.

O que aconteceria em situação semelhante nos dias de hoje?