Tudo indica que jornalistas e intelectuais estão passando uma borracha no passado recente do líder do PT

Uma das páginas mais marcantes de Shakespeare encontra-se peça “Henrique VI” (também conhecida como “O Reio Henrique VI”), escrita e representada no fim do século XVI, e que retrata um diálogo (ficcional, criação do dramaturgo) entre a rainha consorte Margarida D’Anjou e o duque de York, em plena Guerra das Rosas.

O duque, acusado de traição, foi capturado na batalha de Wakefield (na realidade, morreu na batalha) e levado à presença da rainha, no Castelo de Sandal. Na enfermidade de Henrique VI, ela enfeixa nas mãos os negócios do reino. Segue-se um áspero diálogo entre a rainha e o duque, prestes a ser decapitado. Na fala do Duque, criada por Shakespeare, é citado um ditado, para acusar a rainha de ignorância e despotismo, ao ocupar um trono de que não estava à altura: “Montado o mendigo, faz o cavalo galopar até morrer”. O ditado ficou célebre. Arthur Schopenhauer, no século XIX, o reproduziu em seu livro “Aforismos para Sabedoria na Vida”. Continua válido, mutatis mutandis, até hoje. E como figura de retórica, será válido até o final dos tempos, significando que alguém que ocupe uma posição deve estar preparado para ela, sem o que só fará desatinos e desmandos.

O Brasil e o mundo estão cheios de indigentes morais e mentais, que galgaram poderes muito acima de sua compreensão e de suas capacidades, usando e abusando de sua posição, sem ter como avaliar os males que espalham, até por lhes faltar o discernimento intelectual para isso. Na época de Shakespeare, o sonho de consumo não era um carro de luxo, um jatinho, um helicóptero ou um iate, que não existiam, mas um belo corcel, luzidio e bom de galope. Um indigente, que um nobre, num raríssimo arroubo de generosidade presenteasse com uma dessas montarias, seria o mais feliz dos homens, mas sua felicidade pouco duraria, pois na sua ignorância, não saberia dos muitos cuidados que um animal de raça exige, o que come, a que horas deve a ele dar de beber, bem como quanto em uma jornada pode ele percorrer sem os danos da estafa. Não teria os cuidados necessários, cavalgaria em excesso, e num certo dia veria o corcel desfalecer debaixo de si. Daí o adágio.

A todo momento vemos mendigos de espírito, sem conhecimento, sem moral e sem ética, galopando além dos limites a sua montaria figurada. Montaria que pode ser um mandato executivo ou legislativo, uma reitoria de universidade pública, uma diretoria de empresa estatal ou de um fundo de pensão, uma coluna de jornal, ou especialmente uma toga de um tribunal superior.

José Dirceu, Lula da Silva e Antônio Palocci: por que “esquecer” a história do PT no governo? O passado deixou de contar no Brasil? | Foto: Reprodução
Dois pesos, duas medidas

O assunto do momento, nos jornais e televisões brasileiros — e nas rádios também — é o indulto concedido pelo presidente Jair Bolsonaro ao deputado federal Daniel Silveira e seus desdobramentos.

Em oito décadas, não vi uma imprensa tão ferozmente oposicionista a um presidente. Chega ao paradoxo: quando o candidato dessa mesma imprensa, Lula da Silva (quando presidente), concedeu asilo a um tetra-assassino italiano (hoje encarcerado na Itália, pois foi passear na Bolívia e de lá foi extraditado), esses jornalistas acharam normal. Já o perdão a Daniel Silveira da pena de oito anos a que foi condenado pelos desaforos que dirigiu aos ministros do Supremo escandaliza esses mesmos jornalistas. Quando Lula é isento pelo Supremo, sem julgamento de mérito em suas condenações por várias instâncias e vários juízes, em processos provados e comprovados, esses articulistas não discutem. Acham que Lula da Silva é intocável, mesmo praticando roubos dignos do Guinness Book, em escala planetária. É ele o chefe inconteste. Pode tudo.

Já Daniel Silveira, apenas por suas falas irresponsáveis — garantidas pela Constituição — deve ser esfolado vivo, e em praça pública, para que esses jornalistas se sintam satisfeitos.

Um jornalista desses militantes do UOL — Kennedy Alencar, Leonardo Sakamoto, Jamil Chade ou outro qualquer, não me lembro qual, pois são todos iguais —, escreveu, em sua redação não lá muito boa (deveria tomar umas lições com J. R. Guzzo, por exemplo), uma reportagem com o título: “Aliados europeus de Bolsonaro são acusados de receber dinheiro de Vladmir Putin”. Promove a aliados de Bolsonaro, por exemplo, Marine Le Pen, que acredito nunca ter se encontrado com o presidente; o italiano Mateo Salvini, com quem o presidente esteve uma vez; o líder de maior prestígio popular na Hungria, Viktor Orbán, eleito várias vezes como chefe de governo; Beatrix von Storch, que carrega o pecado de ser neta de um ministro nazista, e que foi recebida por Bolsonaro quando visitou, como deputada e líder conservadora alemã (a imprensa esquerdista diz líder da extrema direita) o Brasil.

“O receber dinheiro de Putin”, no entendimento torto do jornalista, é tomar dinheiro emprestado num banco russo (o que Le Pen fez) ou financiar uma usina com dinheiro russo (o que Orbán fez). O jornalista não fala se tais empréstimos foram pagos (com toda probabilidade o foram ou serão). E nem fala o que Bolsonaro, que ele introduziu na reportagem, tem a ver com isso.

O jornalista nunca mencionou o empréstimo feito por Dilma Rousseff, quando presidente, a Cuba, para a construção de um porto marítimo, embora se soubesse, antes mesmo de assinadas as promissórias, que nunca veríamos um tostão de retorno (pelo menos os leitores do Jornal Opção sabiam).

Curiosamente, o jornalista faz que não sabe e nunca põe no papel que El Pollo Carvajal, o outrora poderoso general e traficante venezuelano falou, com todas as letras, em depoimento à justiça espanhola, sob cuja custódia se encontra, que financiou com dinheiro do tráfico de drogas, Lula da Silva e vários amigos dele, inclusive o ex-primeiro-ministro espanhol José Luís Rodriguez Zapatero. Mas Lula da Silva, para esses jornalistas, está acima do bem e do mal, e não fica bem revelar seus pecados. Isso é que é profissionalismo, ética e isenção.