Livro de Salatiel Correia indica que privatização de Cachoeira e da Celg resulta da pressão do capitalismo global, porém, mesmo fulanizar, não isenta agentes locais

Tenho em mãos o mais recente trabalho de Salatiel Pedrosa Soares Correia, que foi entrevistado na semana passada, no Jornal Opção. É uma publicação intitulada “O Capitalismo Mundial e a Captura do Setor Elétrico na Periferia” (Editora Appris, 280 páginas). Há uma década (em junho de 2011), comentando outro livro de Salatiel (“A Construção de Goiás — Ensaio de Desenvolvimento Político e Regional”), eu me referia ao autor como tendo conseguido “se credenciar como um legítimo intérprete do desenvolvimento goiano” (por extensão, do Brasil e do mundo). Essa nova publicação consolida a afirmativa. O autor é graduado em Administração pela PUC-GO e em Engenharia de Telecomunicações pelo Inatel-MG. E pós-graduado (mestrado) pela Unicamp em Planejamento de Sistemas Energéticos. A esse sólido alicerce educacional soma uma experiência profissional de décadas no setor elétrico e a produção de vários livros, a maioria abordando a temática do desenvolvimento e sua ligação com o setor energético. Para redigir a publicação que ora comentamos, Salatiel vem pesquisando há duas décadas. Não é pouca coisa. Deixa mais um documento para a história econômica goiana, bastante elucidativo, muito fundamentado, de fácil apreensão.

Tendo vivido a maior parte de minha vida profissional como engenheiro no setor elétrico goiano, posso testemunhar a precisão dos dados que o autor faz desfilar pelo livro, quando constrói as bases para sua análise do ocorrido na empresa goiana de energia – a Centrais Elétricas de Goiás S.A. (Celg), desde seu nascimento, em 1956, até sua morte como empresa estatal, em 2017, e sua captura pelo capital estrangeiro.

Salatiel usa essa trajetória como “case” demonstrativo de um fenômeno mais amplo, pois não só nacional, mas mundial, no cenário da globalização pós-Guerra Fria. O primeiro capítulo do livro, aliás, busca situar o Estado de Goiás nesse novo contexto econômico global. Segue-se uma descrição da metodologia econométrica usada para desenvolver o trabalho, uma apreciação do setor elétrico goiano, e uma detalhada biografia da Celg, onde estão contempladas, com acurada visão, as três fases da vida daquela que foi a maior empresa goiana e uma das mais eficientes empresas públicas do setor energético brasileiro.

Chama a atenção a profusão de dados apresentados, as tabelas organizadas, os gráficos esclarecedores, tudo de forma a abrir, perante os estudiosos de agora ou pesquisadores do futuro, um leque de informações capaz de esclarecer o ocorrido no setor energético goiano, via de seu principal motor, a empresa Celg. Se por um lado, não faltam dados, tabelas e gráficos, fruto dos anos de pesquisa do autor, por outro lado é de se assinalar sua capacidade de síntese no diagnosticar o que se passa na empresa e identificar as três fases de sua existência, que ele nomina como Desenvolvimentista (1956-1964), Autoritária (1965-1978), e Populista (1979-1998). O gráfico da página 83 elucida perfeitamente o que o autor, com clareza, expõe nas páginas anteriores.

“Numa perspectiva mais ampla, esses fatos [venda de Cachoeira Dourada e da Celg] só podem ser bem compreendidos se inseridos no cenário dos ditos ‘exuberantes anos 1990’, caracterizados pelas pressões dos Estados Unidos para desregulamentar as economias dos países satélites”

É um livro de história, é um livro de economia, não de política, embora a política obrigatoriamente permeie a história e o desenvolvimento de qualquer região. Ocorre que a história política, se escrita vis-à-vis, dificilmente escapa da parcialidade, das simpatias e das antipatias com que se analisam os fatos por parte de um ou outro autor. Salatiel, ao trazer à apreciação do leitor apenas ocorrências numericamente registradas, escapa dessa armadilha. Não buscou pessoas, ao traçar a trajetória celguiana, mas apenas ocorrências comprovadas. Não estudou biografias, mas balanços. Não buscou culpar ou desculpar esse ou aquele, até porque os fatos narrados se inserem em um contexto maior, numa esfera além da regional ou mesmo nacional. É um mecanismo que nossos políticos, com raras exceções, sequer têm alcance para perceber, tal sua estreiteza mental. Como diz Salatiel em suas conclusões: “Numa perspectiva mais ampla, esses fatos só podem ser bem compreendidos se inseridos no cenário dos ditos ‘exuberantes anos 1990’, caracterizados pelas pressões dos Estados Unidos para desregulamentar as economias dos países satélites”.

Salatiel Pedrosa Correia: um scholar| Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

A história da Celg poderia ser diferente, e poderia ela persistir, tal como foi por muito tempo, uma empresa indutora do desenvolvimento goiano, principalmente se mantivesse suas fontes geradoras. Os próprios Estados Unidos, com toda sua desregulamentação e seus princípios anti-estatizantes, mantêm, estrategicamente em mãos do Governo Federal, parte de suas usinas geradoras de energia elétrica. Mas também afirma Salatiel, parafraseando Roberto Mangabeira Unger, um de seus mestres, no encerrar suas conclusões: “… é oportuno enfatizar o que nos diz Unger a respeito da alternativa transformadora tão necessária para que o País se liberte das amarras do subdesenvolvimento: Seremos uma república de cidadãos quando formos uma nação de profetas”.

Heródoto, o pai da História, a entendia como uma consequência da narração imparcial, e abria seus escritos da seguinte forma:

“Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Helicarnasso para que os feitos dos homens não se desvaneçam com o tempo…” E dizia: “Deve-se pensar o passado, para compreender o presente e idealizar o futuro.”

Cumprimentos a Salatiel Correia por mais esse trabalho histórico. Resultado de muita labuta e pensamento. Para que os feitos no setor energético goiano e em nosso desenvolvimento não se desvaneçam no esquecimento. Repito o que já disse do autor e de sua obra: Nos dias futuros, quem desejar bem compreender nossa região e interpretar seu desenvolvimento, terá forçosamente que beber na sua fonte.