Gravidez precoce: problema sério que o Brasil precisa enfrentar com ação e menos discurso
05 outubro 2022 às 18h39
COMPARTILHAR
Há um grupo de senhoras na minha vizinhança (minha mulher faz parte) que se dedica, há algum tempo, a confeccionar enxovais de bebês que são doados a gestantes carentes. Os enxovais, feitos com capricho, são acondicionados numa pequena banheira que servirá também para as crianças que chegam, e entregues para as grávidas que se cadastram nas maternidades públicas.
Dessas entregas, essas senhoras trazem sempre uma ruga de preocupação na testa. Porque é grande o número dessas gestantes que são ainda crianças, com 13 ou 14 anos de idade. Que futuro espera esses bebês, fruto de uma concepção irresponsável? E o que move essas garotas, a maioria sem fonte confiável de renda, advindas de famílias desestruturadas, algumas delas usuárias de drogas, no caminho de uma gravidez imprudente, para não dizer insensata? Não é difícil responder à primeira pergunta.
O futuro dos filhos dessas gestantes precoces tende a não ser feliz, dado as circunstâncias em que crescerão: os pais são ausentes e muitos sequer conhecerão os filhos, as mães não têm recursos materiais suficientes para suas necessidades mínimas, como alimentação e vestimenta. Elas não têm trabalho, e se o tiverem terão que legar o filho aos cuidados de terceiros, dando-se por satisfeitas se encontrarem parentes que os acolham de boa vontade, e sabemos que boa vontade está longe de significar amor materno.
Essas crianças serão mais vulneráveis a abusos, crescerão em deficiência, para dizer o mínimo, de aprendizado e educação, sendo propensas, se garotas, e quando também elas atingirem a adolescência, a seguirem o caminho das mães; e se garotos, a se envolver com o omnipresente tráfico de drogas. Quando muito, poder-se-ia esperar que algumas dessas crianças fossem dotadas o suficiente ou tivessem a sorte de encontrar uma guarda responsável que desviasse seu futuro para uma estrada mais afortunada.
Quanto à segunda pergunta, é de dificílima resposta.
A gravidez é algo consentido, vem da vontade da mãe, exceto nos raríssimos casos de estupro, que não se enquadram nos atendidos por aquelas senhoras doadoras. Se é consentido, por que o foi? O que se passa no cérebro ainda imaturo dessas garotas para desejarem gerar um bebê, com todo o trabalho que acarreta, e que elas já conhecem, pelos irmãos menores ou por outros parentes? O que as move, em raciocínio? Ou não será raciocínio, mas apenas um sentimento ou emoção que as leva a essa maternidade, nunca é demais repetir, desajuizada?
O fenômeno não é isolado, já escrevi no Jornal Opção. A estimativa é de que 14% dos partos brasileiros sejam de mães adolescentes, o que significa mais de 1.000 por dia. Não é um número de se desprezar, mesmo porque existe um esforço de governo para sua redução.
E mais grave, segundo o Ministério da Saúde: em 2021, mais de 17.000 garotas, de 14 anos ou menos, deram à luz no Brasil. Um número assustador, que corresponde a 46 nascimentos diários.
Como o problema não é apenas brasileiro, consegue-se uma resposta, ou ao menos parte dela, para a motivação dessas garotas gestantes, no filósofo britânico Theodore Dalrymple, mais precisamente em seu livro “Em Defesa do Preconceito”, escrito em 2007 e traduzido no Brasil em 2015.
Para o leitor menos familiarizado com Dalrymple: é um pseudônimo usado pelo psiquiatra, filósofo e escritor britânico Anthony Daniels. É um estudioso da violência, da criminalidade, do uso de drogas e de outros males sociais, tendo trabalhado em prisões e comunidades carentes da África e do Reino Unido. Defende o esforço, o conhecimento, a cooperação e a tradição como elementos que combinados possibilitam o avanço civilizatório. Tem livros publicados e traduzidos em várias partes do mundo, entre eles o que mencionamos acima, e no qual aborda o problema dessas mães-meninas e faz a pergunta que fizemos: o que move essas garotas a buscar os desafios de uma gravidez bastarda e precoce?
Dalrymple cita um estudo feito por uma instituição britânica de serviços sociais (Fundação Joseph Rowntree) sobre a gravidez de adolescentes. Ele mostra uma enorme similaridade entre o que ocorre no Reino Unido e o que ocorre aqui, com essas garotas-mães. Lá, como aqui, quando entrevistadas, mostravam a pobreza de linguagem, que mal permitia que se expressassem aos pesquisadores. Mostravam desdém pela escola e pela educação, considerando os professores aborrecidos, e se indispunham com eles, no que eram apoiadas pelos pais (quando com eles conviviam). Vinham de famílias desestruturadas, se ressentiam disso, mas não pareciam perceber que com sua atitude davam continuidade a esse problema social. E vem a revelação, a resposta que pedíamos ao porquê da atitude dessas garotas ao conceber.
Dalrymple escreve: “Ao emergir de um ambiente sem amor — no qual a hostilidade, não somente com as pessoas, mas diante do mundo em geral, está sempre acima da ternura — essas garotas buscam aliviar sua carência afetiva trazendo ao mundo um ser sobre o qual poderão dissipar as emoções insatisfeitas que residem em seus corações. Elas esperam que a criança retribuirá o seu amor incondicionalmente, como um dócil brinquedo — no limite de sua capacidade imaginativa – ou um cachorro. Uma garota de 13 anos com um bebê disse: ‘Eu tive uma infância muito, muito ruim … eu achei … porque meus pais não são bons pais, então … e (hum) eu, eu achei que um bebê me daria estabilidade e me daria algo que me amaria incondicionalmente … você sabe … nunca me abandonaria … porque seria meu … ninguém poderia tirá-lo de mim’”.
No drama dessas garotas, que vai além delas e chega à nossa sociedade, leitor, e ao qual não podemos ficar alheios, a menos que a insensibilidade nos tenha cegado, está a família, melhor dizendo, a falta dela. A importância da família se demonstrou durante séculos e é insensato querer negá-la, como mostram as carências dessas garotas. É fato que a educação, o ensino e às vezes mesmo a droga têm sua parcela de culpa no problema, mas fundamental mesmo é o ambiente familiar sadio, que continua indispensável para o avanço civilizatório, embora setores do mundo social e político preguem que o Estado é um sucedâneo para a família, e que acolhe, ensina e educa melhor que ela. Essas meninas, mesmo em seu silêncio, estão a gritar que não é assim.