Fernando Arrabal, Fidel Castro e o iate Tuxpan

18 junho 2023 às 00h00

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O escritor Fernando Arrabal não é muito divulgado no Brasil, embora seja um dos mais ativos e producentes autores espanhóis desde sempre. Novelista, dramaturgo, poeta, panfletário e cineasta, falemos um pouco dele.
Ainda vivo, aos 90 anos, nasceu do outro lado do Mediterrâneo, na cidade autônoma espanhola de Melilha, no norte africano. Criou-se em Ciudad Rodrigo, bela vila da província de Salamanca, vizinha da Estremadura espanhola e da fronteira portuguesa. Ali era tido como menino prodígio, antes de cursar universidade em Madri.
Fernando Arrabal escreveu novelas, peças de teatro, algumas traduzidas para português, como “O Cemitério de Automóveis” (1959) e “O Arquiteto e o Imperador da Assíria” (1966), centenas (sim, centenas, cerca de 800) de livros de poesia. É tido como o dramaturgo mais representado na atualidade, ao menos na Europa. Escreveu três livretos panfletários: “Carta ao General Franco” (1973), “Carta a Fidel Castro” (1984) e “Carta a Stálin” (2003). Crítico das ditaduras, foi perseguido por Francisco Franco e desde 1955 vive em Paris.
Lembro-me de ter traduzido em 1990 um artigo escrito por ele em uma revista espanhola, que reproduzo para os leitores do Jornal Opção, e que se refere a Fidel Castro.


A deliciosa vide de líder
Fernando Arrabal
Os pobres enganados e os ricos engalanados vivem o mundo ao revés de seu discurso proletário. Você, que se jactou de igualar, hoje presenteia com tal fortuna os seus, que os de baixo nunca estiveram tão diminuídos nem os de cima tão engrandecidos. Mas nenhum tanto quanto você. Orwell escreve: “A penúria geral destaca melhor a importância dos privilégios e a distinção entre um grupo e outro”. Pouco frequentes são as deliciosas sensações que você saboreia, como a de se fazer eleger, por unanimidade, presidente do Conselho de Estado, por um Conselho de Estado, cujos membros, todos e cada um deles você mesmo nomeou com igual facilidade com que pode demiti-los. Refinada droga que não teme o abuso e nem o hábito. Que absurda esperança de pretender tudo oferecer a si mesmo! Que desatino de satisfazer a todos os próprios caprichos! Sua ostentação é tanta, seus cargos tão numerosos, suas precedências tais, que de tanto brilhar só reluzem seus achaques. Perfumado de medalhas, com sua barba entreaberta, sua arrogância se veste de funeral sem luto. Dispõe de 25 residências e chácaras, conhecidas como “casas de estar do Fidel”. Como um deus, mudou a data do Carnaval, que não lhe ficava bem: já não é porta de Quaresma, mas meio de verão. Seu aniversário é motivo de celebração “obrigatoriamente voluntária” em todos os quartéis, fábricas, oficinas, escolas, universidades. Em todos os cantos da ilha, se canta a versão proletária do “Parabéns pra Você”. À sua limusine Zil, suntuosa por sinal, você agregou os luxos mais decadentes dos milionários dos anos trinta. Suprimiu de um coice as festas de Natal e com um golpe de pena atrasou o dia dos meninos cubanos, o Dia de Reis, de janeiro para julho. O velho alfaiate Henry, da alfaiataria Sol, considerado por você e pelos seus como o melhor da ilha, ficou retido em Cuba para que, com a melhor gabardine inglesa lhe confeccione seus uniformes verde oliva de imóvel guerrilheiro de salão. Dispõe do dinheiro que lhe apetece sem prestar contas para outro rei que não seja você mesmo. Possui várias praias privadas, uma delas, antigo clube aristocrata, está hoje reservada para seu uso pessoal. A polícia patrulha armada, para que nenhum olheiro do povão rompa o encanto ao aproximar-se de seu oásis. Criados submissos, como os de Cuba colonial, lhe atendem. Do luxo asiático dessa praia podem dar conta vários ministros europeus que foram seus hóspedes. Etc.

Assustadora fome de tudo, que nada pode saciar, seus lingotes são de barro, e seu céu, de sucata. Por ocasião de seu aniversário, os membros do Comitê Central do Partido (único) Comunista de Cuba, felizes e agradecidos a você, o homem que os nomeou sem critério, lhe obsequiaram com o que chamaram um “pequeno presente”. Como servidores lúcidos e prudentes souberam diminuir o que era nada menos que o fruto da primeira iniciativa que tomavam em assembleia sem a sua permissão. Posto que você é príncipe de Cuba, o princípio de tudo, e eles, participantes sem princípios, sua servitude principal. O pequeno presente, menos pelo tamanho e mais pelo respeito, era o iate mais luxuoso que jamais fundeou num porto cubano, e maior que o de Onassis. Também, é certo que o protocolo o exige: você é o proprietário de uma ilha infinitamente mais extensa do que a que o milionário grego possuía no mar Egeu. O iate – pequeno presente – foi construído nos estaleiros Regle, pertencentes ao Ministério da Construção. Ramiro Valdez Menendez dirigiu a equipe de engenheiros navais com tal acerto que, pela façanha, recuperou o Ministério do Interior. Que muito é preciso para satisfazer um líder, quando ele é o máximo. Grande empresa foi conseguir tão singular prenda; os especialistas não a completaram com preconceitos de classe que pudessem deixá-la coxa, cega, sem motor e sem classe, sendo mister em semelhante transe mostrarem-se judiciosos, evitarem os erros dos camaradas vermelhos para servir-se dos ferros dos desprezados brancos:
O aço veio da Suécia;
Os motores de Detroit, graças à “diabólica” mutreta holandesa;
As hélices, da Inglaterra;
Os mármores, da Itália;
O alumínio, de Ottawa;
Os pianos, de Tóquio;
Os projetos, de Miami;
A porcelana, de Londres;
Os perfumadores, de Milão;
Os eixos, de Liverpool;
A eletrônica, do Japão (no dique seco de sua arrogância, entre fuligem e farrapos, as vacas bramem sem ubres e os corvos grasnam sem asas).

O Tuxpan é um iate com três pontes de cristal blindado, salas de projeção, camarotes com banheiros em mármore, instalações para pesca esportiva, pois seria bobagem que você navegasse descontente quando segura com mão tão firme o timão da pátria, disseram seus lacaios. Quando você não se serve de sua nau de faraó, esta dorme fundeada no Arsenal da Marinha de Guerra, sob os cuidados de um “pessoal selecionado da Segurança do Estado para que a plebe não se aproxime afoita e empane com seu hálito a porcelana e o mármore. Talvez um dia você se permita mostrá-lo em foto ou filme, pois seu iate é de cinema! O saber que você percorre o oceano em tal luxo não remedia nem alivia, mas sim desanima e adoece os cubanos, para os quais, segundo o jornal “Le Monde” o transporte é uma verdadeira praga. Graças a Francis Pisani, do mesmo periódico, sabemos que “é frequente esperar duas e às vezes três horas um ônibus que não termina de se fazer esperar. Os ônibus chegam cheios, não param nas estações, com medo de serem tomados de assalto, ou, quando param, há que se empregar a força para neles se subir”.
Notas:
1
A paixão de Fidel Castro pelos iates e pela pesca submarina motivou o luxo. Ele havia se apossado do iate Aquarama, do ditador Fulgencio Batista, mas queria algo maior e mais luxuoso. De certa forma, deu a si próprio o Tuxpan.
2
O nome Tuxpan vem de uma localidade no México, onde Fidel comprou o barco Granma, com que invadiu Cuba, com seus guerrilheiros.
3
Há mais de sessenta anos, a população cubana vive em carência de tudo, até de alimentos. As famílias têm uma caderneta de racionamento, “la libreta”, que estabelece as quantidades máximas de alimento que cada uma pode adquirir. Essas quantidades “máximas” são sempre irrisórias. Mas o luxo dos chefes comunistas, Fidel à frente, como se vê, nunca teve limites.
4
Isso, o que hoje nos ameaça. Por mais incrível que pareça.