Esquerdismo de Boric pode destruir a estabilidade política e econômica do Chile?

27 março 2022 às 00h00

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Falta preparo a Gabriel Boric. E está à vista a destruição de um legado de reformas de sucesso, respeitado por esquerda e direita chilenas até agora
O continente americano, uma extensão de terras que vai do Ártico à Antártida, e cobre 42 milhões de quilômetros quadrados, abriga 1 bilhão de habitantes e compreende 34 países e duas dezenas de possessões territoriais. A chamada América Latina abrange cerca da metade desse conjunto de países, os colonizados pela Península Ibérica: o Brasil, de Língua Portuguesa, e 18 outras nações, de língua predominantemente espanhola.
A região tem história recente, se comparada aos continentes europeu e asiático, tem uma economia baseada em exportação de commodities e viveu, mormente ao longo dos últimos cem anos, uma instabilidade política generalizada, com raríssimas exceções.
Há quem ligue os dois fenômenos (instabilidade política e exportação de matérias primas), como os pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas(FGV) Daniella Campello e Cesar Zucco. O ciclo natural de variação do valor das commodities faz com que as arrecadações dos governos passem por períodos alternados de abundância e escassez, e na escassez a pressão popular por melhores serviços causa desestabilização política.
Dois fatos são indiscutíveis: as economias das nações latino-americanas estão longe de ter sua base na indústria, principalmente a de ponta, como ocorre com países asiáticos e europeus de mesmo porte; e a instabilidade política é uma constante, principalmente nas américas Central e do Sul. E há o agravante para a instabilidade de ser esta a única região do mundo onde ainda existem contingentes eleitorais defendendo um sistema de governo à moda soviética, como mostra o Foro de São Paulo. Nos últimos cinquenta anos, porém, vemos que há um ponto fora da curva: o Chile. Recordemos alguns fatos.

O Chile é um país de 750.000 quilômetros quadrados e tem cerca de 19 milhões de habitantes. Tem uma conformação geopolítica desfavorável: aproximadamente retangular, com mais de 4.000 quilômetros no sentido norte sul, e uma largura média inferior a 180 quilômetros, constrangido entre os contrafortes dos Andes e o Oceano Pacífico. Sofre clima rigoroso, principalmente ao sul, e abriga uma área desértica (o Atacama); experimenta seca na sua região central, e não estão ausentes os terremotos (o maior terremoto já registrado no mundo ocorreu no Chile, em 1960). Além disso, não ostenta muitas riquezas naturais. Possui o cobre, seu principal produto de exportação (quase metade das exportações, nas últimas décadas) e produtos agrícolas. Em que pese tudo isso, o Chile tomou, desde os anos 1980, a dianteira econômica da América Latina, a ponto de ostentar a maior renda per capita entre todas as nações da região, mesmo as mais dotadas de recursos naturais, como o Brasil e a Argentina. E tem, desde a queda do regime militar do general Augusto Pinochet, na década de 1990, mantido estabilidade política, ainda que se sucedendo governos conservadores e de esquerda, e até de esquerda mais radical, como o da presidente (por duas vezes) Michele Bachelet.
O que se passou com o Chile? Tentemos interpretar, sem muitos devaneios, nos atendo aos fatos comprovados.
Desde a Independência, em 1823, até a constituinte presidencialista de 1925, o país buscou uma configuração política mais estável, tendo passado por uma experiência parlamentarista (1891-1925) pouco satisfatória. Sofreu intensa depressão com a crise mundial de 1929, e viu os embates políticos internos, principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se voltarem para o campo ideológico, com a Guerra Fria. As eleições presidenciais de 1970 se feriram sob as vistas da CIA e do KGB (que chegou a enviar dinheiro para os comunistas chilenos) e deram uma vitória minoritária para o comunista Salvador Allende (36% dos votos), já que inexistia segundo turno e o centro-direita estava dividido.
Allende tentou um governo inteiramente à moda marxista, nacionalizando as minas de cobre, o setor financeiro e as principais indústrias, além de dar início a uma reforma agrária radical. Chegou mesmo a receber uma insólita visita de Fidel Castro, em novembro de 1971, que por quase um mês permaneceu no Chile, interferindo no governo e açulando sua radicalização.
As medidas adotadas por Allende na economia logo levaram o país à inflação, ao desabastecimento, à recessão e às greves (uma greve dos caminhoneiros durou 26 dias), gerando o caos e uma revolta popular.
Quando o Congresso chileno já preparava um impedimento de Allende, este foi deposto por um movimento militar liderado pelo chefe das forças armadas, o general Augusto Pinochet, em setembro de 1973.
Allende morreu de maneira até hoje não clara: teria suicidado, conforme anunciou que faria? Foi morto pelo exército de Pinochet? Ou foi morto por sua guarda pessoal, composta de cubanos, sendo que a Fidel Castro interessava transformar Allende (como conseguiu), de rematado incompetente que era, em um mártir?
Pinochet assumiu a Presidência do Chile, onde ficaria até 1990. Não seria um fato isolado. Governos militares surgiram por toda a América Latina, como anteparo ao avanço comunista, num reflexo regional da Guerra Fria. Foi o caso do Brasil, Argentina, Peru, Bolívia, Uruguai, Paraguai, Guatemala e República Dominicana.
Mas o Chile apresentaria uma diferença fundamental dos outros regimes militares: enquanto esses regimes mostravam uma face nacionalista e até estatizante na maioria dos países, no Chile uma série de reformas liberais seria implantada pelo governo Pinochet. A mais importante delas, uma reforma econômica, fiscal e previdenciária dirigida por um grupo de economistas jovens, apelidados “chicago-boys”. Eram jovens economistas chilenos (cerca de 30), que haviam se formado nos EUA, beneficiados por um convênio de 1964 entre a Universidade Católica do Chile e a Universidade de Chicago. De volta ao Chile, buscavam aplicar as teorias que haviam aprendido.
Pinochet se convenceu das teorias liberais destes economistas e implantou as reformas, o que dificilmente se conseguiria fora de um governo forte. Além disso, Pinochet implantou uma reforma política e outorgou em 1980 uma nova Constituição, aprovada em plebiscito.
As teorias liberais também influenciaram o ensino chileno. As universidades passaram a ser todas pagas, e o ensino privado foi muito incentivado. Apesar de apontado como elitista, o ensino chileno se colocou à frente dos demais na América Latina nas avaliações internacionais, em particular no Pisa. Um programa de valorização do professor foi implantado ao fim do regime militar, e persiste até hoje.
É importante observar que os resultados na economia chilena das reformas mencionadas foram persistentes, e o crescimento do PIB per capita colocou o Chile no topo das nações latino-americanas na década de 1990, onde ainda se encontra.
Todos os governos que sucederam ao de Pinochet, fossem de esquerda ou conservadores, preservaram essas reformas, até mesmo os de esquerda mais radical, como os de Michele Bachelet. Esses os segredos do sucesso chileno: reformas feitas no momento certo e esquerdas inteligentes, que mantiveram o que o regime militar fez de positivo na economia, ao invés de demoli-lo por razões ideológicas.
Até a constituição de Pinochet foi preservada. O PIB per capita do Chile (Paridade do Poder de Compra) está hoje na casa dos 27 mil dólares, enquanto o da Argentina está pelos 23 mil, o do Brasil em 16 mil e o da Venezuela em 10 mil (Fonte: FMI). O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Chile é o maior da América Latina, e a mortalidade infantil a menor.
Mas duas ameaças graves pesam hoje sobre o país: uma Assembleia Constituinte predominantemente de esquerda está redigindo uma nova constituição. É de se prever uma carta estatizante, onde sobrem direitos e faltem deveres, onde estejam previstas benesses às custas do Estado e onde abundem privilégios às custas dos mais pobres. E foi eleito presidente do Chile para o mandato 2022-2028, Gabriel Boric, um ex-líder estudantil de apenas 36 anos, cuja única experiência profissional foi a de dois mandatos de deputado. Iniciou seus estudos de Direito, que nunca terminou: algo típico do “estudante profissional”. Já no seu discurso de posse teceu vários elogios a Salvador Allende, que não pode, por várias razões, ser exemplo de governança para nenhum país do mundo. Falta preparo a Boric. E está à vista a destruição de um legado de reformas de sucesso, respeitado por esquerda e direita chilenas até agora.