Baudelaire no século XIX e Brasil no século XXI: a atualidade das quimeras
06 agosto 2023 às 00h01
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Há não muito tempo, reproduzi aqui um pequeno poema em prosa de Charles Baudelaire (1821-1867), que por sua atualidade, ao menos no Novo Mundo de fala espanhola e portuguesa, cai como uma luva para boa parte da classe política. O leitor poderá comprovar, nesta mini obra literária, a genialidade do poeta francês. Na sua curta e desregrada vida (morreu aos 45 anos), marcou a poesia de tal forma que é considerado o pai dos simbolistas e dos modernistas (e ajudou na redescoberta de Edgar Allan Poe, o escritor americano). Quanto ao poema-conto, vale repeti-lo, e repetir as considerações feitas, para reflexão do leitor.
Conexões entre o mundo de ontem e o de hoje
Comento sobre a ficção de ontem, do poeta, que é a realidade de muitos, hoje: neste breve conto fantástico, repleto de figuras de linguagem, o poeta francês parece profetizar o peso que cairia sobre a humanidade meio século mais tarde, com o comunismo leninista-stalinista, com o fascismo de Benito Mussolini e o nazismo de Adolf Hitler.
Pessoas, grupos, partidos, nações, grande parte do planeta, enfim, experimentaria, de maneira voluntária ou forçada, a passiva angústia de que falou Baudelaire. Cada ideia tem sua força, que só pode ser avaliada após transformada essa ideia em prática e produzidos seus resultados. E pode aí residir a felicidade ou a perdição dos homens. A ideia da igualdade entre os homens, cada qual ofertando de acordo com sua capacidade e recebendo conforme sua necessidade, numa concepção materialista do universo, afastada qualquer ilusão metafísica, prometia a todos o melhor mundo possível. Marx e Engels seriam os cristos da religião do novo homem — o comunismo —, posta em prática pelos apóstolos Lênin e Stálin.
Por ela, o Deus estava neste mundo, personificado no Estado, pai e provedor de todos os componentes da massa humana, fraterna e homogênea. Essa ideia desaguou na Revolução Russa de 1917. Criou-se como que uma religião, embora se proclamasse uma filosofia. Mas não seria religião e nem filosofia; era apenas uma desapiedada quimera, ver-se-ia mais tarde, ao custo de milhões de vidas.
Uma crença de superioridade na raça e na tradição histórica e cultural — o fascismo — tomaria conta da Itália, quase à mesma época da Revolução Russa de 1917. Seu teórico era o filósofo Giovanni Gentile e sua prática se iniciava com o discípulo e colaborador Benito Mussolini. Outra quimera.
Quase ao mesmo tempo a ideia de supremacia racial branca do francês Arthur Gobineau e do inglês Houston Chamberlain tomava corpo nos países de língua alemã e nas minorias germânicas de vários países da Europa e outras partes do mundo. Surgia o nazismo, reforçado pela teoria do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) sobre o super-homem, acima do bem e do mal, e posto em prática pela máquina de guerra de Adolf Hitler. Mais uma quimera; afinal o século 20 seria o século delas, e elas, montadas nas costas de milhões, seriam cruéis.
O nazismo se estabeleceu na Alemanha e satélites em 1933, fez sólida aliança com o fascismo italiano, uma aliança eventual com o comunismo (o pacto nazi-soviético, de agosto de 1939) e lançou o mundo em sua maior guerra (1939-1945). Terminada esta, nazismo e fascismo, perdedores, desapareceram, para todos os efeitos práticos, da face da Terra.
A quimera comunista
Mas uma dessas três quimeras continuaria bem viva. O comunismo estava firmemente fincado em boa parte da Europa, na China e ameaçava se espalhar pela África e América Latina. Manteve sua aparência de solidez por meio século, sabendo dissimular sua fraqueza, seu fracasso, as mortes e os sofrimentos que impôs aos seus devotos voluntários ou forçados. E mesmo depois de esboroada, nos anos 1990, tenta, em várias partes do mundo, uma sobrevida, ainda que que só o consiga nas condições mais miseráveis. É uma quimera alquebrada, que teima em não morrer, e que, como todas, nega ser quimera.
Não poderia supor Baudelaire que as quimeras por ele pintadas em seu pequeno conto, assoladoras de um grupo de homens, em décadas estariam às costas de meia humanidade, músculos tensos e garras cravadas em milhões, já cientes de que transportavam quimeras, mas sem forças para despejá-las e seguirem em frente aliviados. A humanidade conseguiu sacudi-las, deitá-las ao chão, asas quebradas, garras partidas, no fim do século passado. Mas elas ainda resistem em alguns lugares do mundo ou em alguns grupos, em muitos lugares do mundo. Quimeras sempre se recusam a morrer, e sempre existirão os prontos a carregá-las nos ombros, sem saber que são quimeras, sem sentir seu peso, sem se aborrecer com suas garras, sem saber para onde vão, embora andem sempre, como já fazia saber Baudelaire.
O deserto brasileiro
Procure o leitor à sua volta e vai constatar que hoje, mais de século e meio depois do escrito, existe o que o poeta francês relatava em sua visão fantástica: quantos partidos no Congresso brasileiro se comportam como o bando de homens descrito no deserto baudelairiano?
Integrantes do PT, PSOL, PC do B — e outros partidos — caminham sem se afligir, naturalmente, portando e defendendo até com veemência suas quimeras, responsáveis por milhões de mortes, por incomensurável sofrimento, por fome e fracassos econômicos mundo afora. Responsáveis no Brasil pelo maior ataque aos recursos públicos, que levou ao tribunal e à cadeia os seus maiores líderes, fazem o mesmo. Responsáveis pelo desvio de recursos do banco brasileiro de fomento para Cuba, Venezuela, Angola, Nicarágua, Equador etc., em volumes nunca vistos e que faltam para nosso desenvolvimento e para dar trabalho aos nossos irmãos desempregados — e desesperados, idem.
Se o leitor olhar à sua volta, verá que conhecidos seus, e até amigos, também marcham sem ver estes desmandos que por décadas sofremos. Conduzem às costas suas quimeras. Aceitam sem subterfugir, a liberdade para os que foram presos por roubarem o povo que juraram servir. Abominam reformas que visam corrigir ao menos em parte a tremenda e injusta situação em que os mais pobres e trabalhadores bancam a remuneração ou aposentadoria dos mais ricos e preguiçosos. Defendem um Estado pesado, ineficiente e corrupto e odeiam os que empreendem, pagam impostos e geram empregos a duras penas. Os que carregam quimeras estão entre nós. Alguns poucos, bem-intencionados, mas cegos, religiosamente cegos, marchando sem rumo como no conto de Baudelaire. Outros, levados por seu interesse imediato. Mas todos, rigorosamente todos, equivocados, gastando sua energia e nos oprimindo, para transportar e alimentar suas alquebradas, mas nunca inofensivas ou pacatas quimeras.