As festas populares de Aveiro, como a de São Gonçalinho

15 janeiro 2023 às 07h40

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De Aveiro, Portugal — No último fim de semana e no começo desta, ocorreram em Aveiro os festejos de São Gonçalinho, que comentei alguns anos atrás.
Toda a história portuguesa foi marcada por uma grande religiosidade, e essas raízes milenares se refletem nos costumes da sociedade local. Nas festas comunitárias, então, muito fortemente.
Em Aveiro, as duas maiores comemorações anuais homenageiam os dois “padroeiros” locais: Santa Joana e São Gonçalinho. É interessante registrar que nenhum dos dois foi canonizado, não sendo santo Gonçalo de Amarante, nem Joana santa, mas ambos beatos, ele feito em 1561, pelo papa Pio IV, e ela proclamada em 1693, por Inocêncio XII.
Mas isso não causa qualquer abalo nos fiéis e devotos, para quem ela é Santa Joana, padroeira de Aveiro e ele, carinhosamente, São Gonçalinho, protetor da mesma cidade.
De Santa Joana, a Infanta que, em vez de rainha, se tornou freira e beata, e de seus festejos, falaremos noutro dia.
Vejamos a festa do “santo”. O dia festivo de São Gonçalinho é no presente mês: ocorre a 10 de janeiro, mas as comemorações duram de três a quatro dias, abrangendo em geral um fim de semana. O “santo” é a um só tempo protetor dos pescadores, mitigador de doenças ósseas e solucionador de problemas conjugais, aí incluídos os de infertilidade. É considerado também casamenteiro, atendendo as promessas das mais velhas, enquanto das mais jovens cuida Santo Antônio.
O fiel ou a devota que obteve ou que deseja obter uma sua graça, deve munir-se de uma boa porção de “cavacas” e, nas horas aprazadas para tal, atirá-las do alto da torre da igreja do santo, situada no centro histórico de Aveiro, para a multidão aglomerada em baixo. Se as cavacas forem bentas, maior a possibilidade de alcançar a graça pedida.

E o que são “cavacas”: bolachas de bom tamanho, com cobertura de açúcar. As barracas postadas à volta da igreja vendem-nas aos milhares, nestes dias, aos pagadores de promessas. Um dos pontos altos dos festejos, talvez mesmo seu cume, é esse lançamento.
Como toda a programação é fartamente anunciada, no horário das cavacas uma multidão se junta em frente à igreja, na intenção de apanhar o maior número delas possível. É que apanhar uma cavaca lançada lá do alto da igreja é também entendido como uma bênção.
Como são muitos os penitentes, a quantidade de cavacas arremessadas nos três dias de festa é enorme, e há mesmo os “profissionais” em arrecadá-las, que passam o dia nessa pescaria, em que utilizam guarda-chuvas abertos ao contrário ou puçás de redes de pesca de camarão. É uma grande diversão, que contamina todas as idades.
Entretanto, deve-se ter cuidado: as cavacas são de bom tamanho, pesam por volta de 100 gramas e às vezes mais. Uma cavaca na cabeça de quem está descuidado pode causar danos.
Mas programação é variada, e o lançamento de cavacas é apenas parte. Há missas, procissão, palestras e shows musicais com artistas e bandas locais, devidamente transmitidos pela RTP (a estatal Rádio e Televisão Portuguesa).
As professoras de primeiro grau levam seus alunos em grupos à igreja, onde ensinam aos “miúdos” sobre o “santo”, sua história e as tradições ligadas.
A multidão que comparece aos shows, geralmente numa das praças principais de Aveiro é muito comedida, não havendo tumultos ou grandes manifestações, mas apenas aplausos ao fim de cada número. Nada de confusões, bebedeiras ou drogas, e não há notícia de roubos ou furtos no correr da festa, embora o uso de celulares (que aqui se chamam telemóveis) seja tão disseminado quanto aí em nossa terra.
Todos os festejos têm hora não só de começar, como também de acabar. Muitíssimo raramente algum espetáculo vai além da meia-noite. Neste ano, como a meteorologia, que aqui é muito precisa, apontava muita chuva, montou-se enorme barraca para abrigar a assistência dos shows.
A igreja de São Gonçalinho é bem central em Aveiro. Pequena, pouco mais que uma capela, com suas paredes de pedra, é muito bem conservada e cuidada, a despeito de ser tricentenária (foi entregue aos fiéis em 1714).
Contempla-se, nestes dias uma alegria popular bastante saudável, com todas as idades participando, um cultivo da música, das tradições e do sentimento religioso com muita informação e ausência de excessos. Muito diferente de um nosso carnaval, festa de adultos onde se cultiva apenas a tradição e onde a bebida está sempre presente, ou um Rock in Rio, famoso não só pela música, mas também pelos exageros de várias naturezas.

Quem foi São Gonçalinho, que ecoa no Brasil
Mas quem foi São Gonçalinho, qual sua história? Não falta aqui quem ensine: nascido Gonçalo Pereira (1193-1259), de família nobre, fez-se padre. Peregrinou a Roma e Jerusalém (onde viveu por 14 anos), foi admitido na Ordem dos Dominicanos, quando de volta de sua peregrinação, em Amarante, município do distrito (estado) do Porto, no norte português.
Gonçalinho desenvolveu intensa atividade religiosa e social, que responde por sua importância, a qual não se limita a Amarante, onde morreu, e a Aveiro, cidade que o tem como protetor, mas a todo Portugal. E que, como veremos, se estende ao Brasil.
Em Portugal, é patrono da cidade de Amarante, onde pregou, trabalhou e morreu. Os festejos em sua homenagem também são ali bem expressivos, como os de Aveiro, mas em época diferente, na primeira semana de junho.
A igreja de São Gonçalo é o monumento mais visitado da cidade, seja por fiéis, seja por turistas.
No Brasil, três municípios levam seu nome: São Gonçalo, segundo maior município do Estado do Rio de Janeiro, cuja sede foi fundada em 1579 por Gonçalo Gonçalves, um nobre português, donatário de uma sesmaria, e seu devoto; São Gonçalo do Amarante, no Maranhão, e São Gonçalo do Amarante, no Ceará.
E há ainda no Brasil, a tradição nordestina da Dança de São Gonçalo, que dizem ser de origem lusitana, embora hoje não exista mais em terras portuguesas, ao que parece. Alegre com comedimento, festiva com tradicionalismo, respeitosa com a cultura, a religião e os costumes locais, é a festa de São Gonçalinho em Aveiro. Neste frio sem exagero do inverno português, é um espetáculo que merece ser visto.