Não sei se o leitor aprecia os contos, as estórias curtas, que exigem do autor uma capacidade de síntese extraordinária, permitindo resumir em poucas páginas o que seria matéria para um alentado romance. Se aprecia, saiba que não somos uma tribo numerosa. Quem lê, na maioria, prefere os romances, as peças, a poesia. Mas os contos têm seus expoentes, como os russos Tchekhov, Púchkin, Górki, ou os americanos, como Edgar Allan Poe, Jack London, Hemingway. Escreveram pequenas pérolas literárias, que não devem ser ignoradas. Um contista que por certo o leitor desconhece é Abdullah Kajjar, do Uzbequistão, tido como o Tchekhov uzbeque. Não é desdouro esse desconhecimento. Abdullah Kajjar (1907-1968) quase não foi traduzido para português, e o foi pouco mesmo para o inglês, embora seja figura proeminente nas letras de seu país e na literatura soviética. Até a grafia de seu nome no ocidente é incerta, pois nos EUA se escreve Abdulla Qahhor. Vou falar dele e de outro contista, esse muito conhecido — Jack London — e de dois contos que escreveram. Dois contos que, no fundo se confundem.

Jack London escreveu o conto Lost Face, que em português aparece como “Cara no Chão” em algumas traduções ou como Cabeça Baixa, em outras. Essa noveleta, narrada com enorme maestria, impregnada de “suspense”, passada no final do século XIX, conta o fim de Subienkow, jovem artista e poeta polonês, cuja existência, ao contrário do que pede sua natureza sensível, se desenrola em meio à mais crua violência. Da luta pela libertação de sua pátria à prisão, da fuga ao engajamento nos navios de pesca operando no Ártico, como caçador, ladrão de peles ou minerador, da Sibéria à California, e depois de volta ao frio no Alaska, Subienkow só encontra sofrimento, combate, destruição e morte. A volta à civilização das capitais europeias é um sonho sempre empurrado para mais longe pela selvageria que o destino teima em atravessar no seu caminho. Subienkow e seus companheiros caçadores de peles são aprisionados pelos índios Inuítes próximo à Baia de Norton, às margens do Rio Yukon, no Alaska. Ele vê seus companheiros torturados até a morte, um a um, e chega sua vez. Sem escapatória para o fim, que em si mesmo já não mais o assusta, ele engrena um estratagema para escapar à tortura, ela sim, abjeta. Convence o chefe índio de que possui uma fórmula mágica para “fechar o corpo”, uma poção que esfregada na pele lhe confere a dureza do aço, e se propõe a trocá-la pela vida. Subienkow negocia, pechincha, pede além da vida certo número de mercadorias e fecha negócio com o chefe Makamuk. Prepara sua tisana misturando os mais diversos ingredientes, enquanto murmura uma cantilena, unta com ela o pescoço e manda que o mais forte dos guerreiros índios lhe dê três machadadas na nuca, para mostrar o poder do remédio. É claro que no primeiro golpe Subienkow fica sem a cabeça e Makamuk, desmoralizado percebe que foi passado para trás. Fica com o apelido de Cabeça Baixa (ou Cara no Chão), título do conto. Com isso termina Jack London sua história, mas estamos só na metade da nossa.

Abdullah Kajjar conta uma história muitíssimo parecida em seu conto “Os Cegos Veem a Luz”. As diferenças na trama geral são mínimas, e existe uma identidade nos detalhes dos dois contos que se percebe quando os comparamos numa leitura atenta. Ajmat Pálvan, personagem de Kajjar, é um camponês, combatente “vermelho” na Revolução Russa. Foi preso por um grupo de combatentes “brancos”, opostos à revolução, após ter matado um oponente ferido, que se refugiara em sua casa. Agora, em frente ao “kurbashi” – chefe do grupo “branco” que o capturou, Ajmat encara o ajuste de contas, que será, inevitavelmente, uma vasta sessão de tortura, com a mais dolorosa das mortes. Ajmat convence o chefe – que é caolho – de que possui a receita de uma mistura milagrosa, que cura a cegueira. Com a dita mistura banha-se uma pedra recém-lavrada, para se certificar que nunca tenha sido molhada, e a pedra, balançada sobre o olho cego, emite radiações que restauram a visão, diz Ajmat. O chefe acredita na existência do sortilégio, e Ajmat, mesmo não negociando de saída sua vida, se dispõe a ensinar a fórmula e recuperara a visão do “kurbashi”. Feita mistura, lavrada e untada a pedra, o que Ajmat faz, ao balançá-la para a emissão das milagrosas radiações, é esmagar com ela a cabeça do chefe rebelde, perdendo incontinenti a vida num golpe do sabre do carrasco que o vigia.

Quase idênticas, as duas narrativas fazem a princípio pensar em algum fato verídico, folclórico, contada com nuances diferentes pelos dois escritores, e adaptadas às suas respectivas regiões e épocas. Mas não há como não pensar em plágio. Se alguém pensou em coincidências, leia os dois contos. Identidades de detalhes, há muitas, como o de um dedo decepado para o preparo da poção, nos dois casos.  Seria muita coincidência. E se falamos de plágio, quem plagiou quem? Fácil a dedução: Jack London escreveu seu conto lá por volta de 1910, quando já mundialmente famoso. Além disso, por sua posição socialista, foi o escritor americano mais difundido da União Soviética, no Uzbequistão inclusive, até aparecer Ernest Hemingway. Abdullah Kajjar nasceu em 1907 e nem sequer sabia as primeiras letras quando Lost Face foi publicado. Só foi publicar seus contos na segunda metade dos anos 1920. Logo…