Passados quase sete meses de governo do PT, Luiz Inácio Lula da Silva à frente, as previsões do então ministro da Economia, Paulo Guedes, de março do ano passado, já deixam de ser confirmadas, ao menos pela metade: segundo o “Chicago Boy” que agora diz não querer mais saber de política, era para o Brasil a essa altura já ter chegado ao “estágio Argentina”, para, em mais dois anos e meio, completar sua venezuelização. Era em podcast, meio conversa de boteco, mas ele disse o que disse.

No Twitter, o influenciador de esquerda Lázaro Rosa ironizou. “Comunicado: em virtude dos ótimos resultados do governo Lula, o evento ‘Brasil vai virar Venezuela’ foi cancelado. Agradecemos a compreensão de todos!”.

O contexto é que, no mesmo dia – a quarta-feira, 27 –, o País subia um degrau no rating da agência Fitch de classificação de risco, de BB- para BB. A justificativa era “desempenho macroeconômico e fiscal melhor que o esperado”. Mais: a expectativa, segundo a mesma Fitch, é de que “o novo governo trabalhará por mais melhoras”. Não tem nada mais capitalista do que ser avalizado por uma espécie de auditoria que classifica onde os investidores devem aportar seu precioso dinheirinho. Se havia alguma incerteza sobre que tipo de política econômica seria implantado pela nova administração do Planalto, o pânico de que o Brasil se deterioraria tanto econômica como politicamente nas mãos de Lula hoje só não se sustenta mais, a não ser dentro dos muros ferrenhos da extrema direita que vê comunismo em qualquer um que não lhe seja espelho.

Ainda que nutra simpatia por personagens do espectro, Lula não é nem nunca foi comunista. No máximo, já foi mais de esquerda algum dia, antes de ter sido presidente. Como tal, no cargo, nunca foi mais do que social-democrata, um pouco à esquerda, isso sim, de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso – aliás, outro que caminhou mais à direita ao assumir a cadeira principal do Executivo em relação a sua trajetória política e acadêmica.

Adaptando a famosa frase do filósofo José Ortega y Gasset: Lula é Lula e suas circunstâncias. Para o pensador espanhol, não seria possível considerar uma pessoa como sujeito ativo sem que fosse levado em conta, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o circunda, do próprio corpo ao contexto histórico em que vive.

Hoje, entre os críticos respeitáveis – aqueles que não passam o dia chamando o presidente de “Nine”, “9 Dedos”, “Descondenado” ou “Lule” –,  há gente de dois polos opostos: os que detonam Lula por achar que ele está a serviço da velha conciliação nacional e, assim, perdendo a chance de realmente transformar a sociedade brasileira; e os que não o perdoam por, segundo eles, parecer viver ainda em um mundo que já foi embora, ao abrir tapete vermelho para autoritários como Nicolás Maduro, que preside a Venezuela em uma ditadura com eleições, e minimizar outro regime do tipo, o de Daniel Ortega na Nicarágua, para isso relativizando o conceito de democracia.

Todos estão descobrindo que Lula não é nem Gabriel Boric, a esquerda renovada do Chile, nem Justin Trudeau, o progressismo que viria do Canadá para de lá baixar a toda a América. Lula é Lula e seus 77 anos. Um hoje idoso que, no auge de sua energia, deu seus melhores anos para se constituir em um dos pilares da democracia que surgia após as sombras nefastas da ditadura militar.

Juntamente com Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, José Sarney, Leonel Brizola, Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso, entre outros tantos menos estrelados – e tantas mulheres apagadas dessa história, é bom ter isso em mente –, Luiz Inácio Lula da Silva colaborou no processo da redemocratização com acertos e erros em seus discursos e ações.

Poderia ter sido já eleito presidente em 1989. Nunca se saberá o tamanho do impacto que teve nos votos aquela edição do último debate presidencial, em que a hegemônica (muito mais do que hoje) TV Globo beneficiou abertamente Fernando Collor, como confessariam décadas depois. Também era o mais cotado para 1994, quando o Plano Real atrapalhou todos os outros planos que não fossem os de FHC.

Durante os mais de 50 anos de vida pública, Lula tem uma história homogênea de acordo com seu perfil

Depois, chegou a vez de Lula vencer, em 2002. E ele, democraticamente, soube esperar seu tempo. Assim como democraticamente, 16 anos depois, aceitaria a cadeia sem pedir a revolta de sua militância, mesmo que num processo eivado de falhas, como se constataria com o vazamento de conversas nada republicanas entre servidores públicos do Judiciário que se tornaram militantes políticos na Operação Lava Jato.

Durante os mais de 50 anos de vida pública, contando aqui a etapa sindical, Lula tem uma história homogênea de acordo com seu perfil: sempre foi espontâneo em suas falas, às vezes em tom áspero, às vezes entremeadas com ironias. No comando das ações, desde a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos até os dias atuais, nunca foi de tomar o rumo da radicalização; pelo contrário, sempre buscou o consenso, a união entre as partes que trazia para seu grupo. Ao mesmo tempo, o petista sempre apontou um adversário a derrotar, fosse um país imperialista, uma elite rentista ou um fascistoide no poder. Em torno do mesmo combate, juntava os seus.

Lula sabe que está chegando ao fim da vida, como todos os que têm a idade dele percebem, embora muitos busquem fugir da reflexão. Precisa fazer o máximo que puder no menor prazo possível, porque tempo lhe é uma palavra-chave. Mas quem tem esse “deadline” literalmente à sua frente, ao mesmo tempo, usufrui de uma liberdade que os demais viventes não podem acessar: estes precisam preservar empregos, amizades, reputações, pelo menos por um certo tempo ainda.

Por isso, Lula está tão confortável para fazer o que acha que é melhor para o Brasil e, dentro desse conjunto, melhor ainda para os que se juntaram a ele. Ora, se a metade mais pobre do País é basicamente lulista – não confundir com petista –, como seu líder não os colocaria em primeiro lugar, pelo menos em relação ao que detêm hoje como cidadãos de um País tão desigual? Mais do que um compromisso eleitoral, seria uma questão moral.

E então, para atingir seus fins, escaldado que foi por oito anos de exercício da Presidência temperados com eleições perdidas, achaques, mensalão, petrolão, Lava Jato, cadeia, cerceamento a candidatura, tentativa de golpe de Estado etc. –, Lula vai jogar o jogo de seu jeito, sendo menos moral do que pragmático. Assim como nomeou para a primeira vaga ao Supremo Tribunal Federal (STF) seu advogado pessoal, Cristiano Zanin, vai também querer se resguardar da mesma forma para a segunda vaga, a partir de outubro e no lugar de uma mulher, Rosa Weber, colocando alguém de sua estrita confiança. Até ouvirá sugestões e se deparará com pressões, inclusive do próprio partido, para nomear uma mulher ou um negro. Dará ouvidos, mas não dará atendimento aos clamores.

Aos que querem um presidente moderninho, então, o aviso é: Lula está aí para fazer o que fez em seus mandatos anteriores. Não mudará, não tocará violão em entrevista nem se portará como um lorde. Ele se tornará um octogenário ainda durante seu terceiro mandato. Quem tem essa idade e ainda continua aclamado para o cargo sabe que está lá somente por um motivo: entregar resultados. E, nisso, as agências de risco não o deixam mentir.