O entusiasmo com que alguns líderes mundiais receberam a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para seu terceiro mandato como presidente do Brasil – o primeiro na história nacional a vencer três pleitos – realmente traz um sentimento nostálgico ao coração de quem viveu a primeira década dos anos 2000.

Isso vem, em parte, pelos bons momentos – mensalão à parte – em nível global que foram proporcionados à autoestima nacional pelo governo Lula, e que ficaram marcados por dois momentos em especial. O primeiro em 2003, quando Gilberto Gil, então ministro da Cultura, e o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, tocaram juntos – o brasileiro na guitarra e o ganês na percussão – a música “Toda Menina Baiana”, na abertura da Assembleia Geral daquele ano.

O outro foi em 2009, na Cúpula do G-20 em Londres, com as maiores economias do mundo, quando o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, falando a uma roda de líderes globais enquanto Lula se aproxima do grupo, apresenta o brasileiro: “Este é o cara!”. A cena foi flagrada pela TV estatal britânica BBC e tornou-se simbólico não só do reconhecimento do presidente, mas da Nação. Em ambos não houve nada de tecnicamente relevante, mas a simbologia se mostrou nítida.

Não foi à toa que o jornalista Jamil Chade, correspondente da “Folha de S.Paulo” na Europa, fez questão de notar, na semana passada, como foi efusivamente cumprimentado, seja por autoridades, seja por simples funcionários, ao chegar rotineiramente à sede da ONU, em Genebra, para acompanhar uma reunião ordinária. “Foi muito lindo entrar na sala e basicamente ser parabenizado pelo resultado das eleições no Brasil (…), por governos estrangeiros, pela cúpula da entidade, pelo pessoal de serviço. Não por conta da vitória de Lula, mas acima de tudo pela derrota de um projeto de destruição”, relatou, em vídeo.

Lula ser essa pessoa que devolve o Brasil ao mapa geopolítico mundial é, certamente, um bônus

Qualquer governante que sucedesse a Jair Bolsonaro (PL) seria benquisto pelo mundo, já que, à exceção da extrema-direita local e mundial, não há quem tolere ou admire um presidente que, além de seus posicionamentos enviesados de origem, tenha lidado tão mal e porcamente com a tragédia mundial da pandemia. O desprezo às medidas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – célula da ONU, diga-se – e seu descaso com a vacina nunca serão esquecidos.

Mas ser Lula essa pessoa que agora devolve o Brasil ao mapa geopolítico mundial é, certamente, um bônus. A comunidade internacional, em grande parte – e nisso, não há nem mesmo clara distinção ideológica –, vê Lula como uma lenda da política. Algo muito distante da imagem de 50% do eleitorado brasileiro que o tem como “ladrão” e nada mais, não obstante o fato de os processos em que foi condenado por corrupção terem sido anulados após a constatação de que Sergio Moro foi um juiz incompetente e parcial. Isso além de mais duas dúzias de processos em que foi absolvido.

Lula é, tecnicamente falando, tão inocente quanto qualquer outro cidadão. E isso dói em quem coloca suas posições político-ideológicas acima da razão. E tirar a racionalidade das pessoas foi algo em que o bolsonarismo se esmerou na última década, antes mesmo de ter Bolsonaro como seu líder e antes mesmo de ter esse nome, quando era um contingente erroneamente chamando de “antipetistas”.

A nostalgia não se restringe ao que Lula representou, mas, por incrível que pareça, ao mundo da época, embora não fosse nada assim tão idílico. Pelo contrário. Surgiam novíssimos problemas: um deles era o de o novo milênio haver começado sob a égide do horror explícito do terrorismo globalizado, com os homens de Osama bin Laden atacando os principais ícones da América e matando milhares naquele 11 de setembro transmitido ao vivo o pânico a todo o Ocidente.

Por outro lado, o avanço da internet e a promessa de acesso facilitado à troca de informação e de experiências com conexões rápidas e sem fronteiras, em meio ao nascimento das redes sociais, traziam grandes expectativas. Tudo veio, mas nada se cumpriu tão positivamente como o esperado.

Estar conectado a uma rede – ou redes –, em vez de trazer liberdade, passou a ser uma forma de entrar numa bolha social. Passamos a conhecer mais gente semelhante em gostos e afinidades, inclusive ideológicas, aqui ou do outro lado do mundo. Dentro dessa bolha, reconhecemos o semelhante e expelimos o diferente.

O “extremismo raiz” de Bin Laden se transmutou no conectado Estado Islâmico, arrebatador de jovens homens-bomba pelo mundo todo. Na política, pessoas de pensamento radicalizado que não se conheciam passaram a ter fóruns para trocar suas estranhas ideias. Daí para surgir alguém que os conectasse como representante legítimo era um passo.

Foi o que ocorreu com Donald Trump nos Estados Unidos e com Jair Bolsonaro no Brasil. Eles, mundialmente, representam o oposto do que gente como Obama e Lula: estão a serviço de uma homogeneidade, de um jeito único de ver o mundo, com princípios e valores rígidos e superiores. A diversidade, as minorias e culturas não hegemônicas passaram, para essa parcela, a representar algo ruim, inclusive espiritualmente falando.

Comunismo agora é uma questão de costumes e, principalmente, de inadequação à agenda ‘conservadora’

Se a guerra fria acabou com a dissolução da União Soviética no início dos anos 90, a absurda ameaça do “comunismo” – agora com aspas, já que é um conceito ressignificado – ressurgiu como estratégia de amedrontar e arregimentar. Comunismo agora é uma questão de costumes e, principalmente, de inadequação à agenda “conservadora”, outro conceito expropriado pela extrema-direita. Não tem a ver mais com regime político. Nesse sentido, o socialista Guilherme Boulos, do PSOL, e o liberal João Amoêdo, fundador do direitíssimo partido Novo, são ambos “comunistas”, simplesmente porque, ao apoiarem Lula para presidente, se colocaram do lado oposto ao dos “conservadores”.

É essa noção de entendimento binário – o “bem” contra o “mal”, o “bandido” versus o “cidadão de bem”, o “cristão” versus o “infiel” – que Lula vai ter de enfrentar sentado na cadeira presidencial a partir de janeiro. Não bastassem guerras e tensões militares entre superpotências e o quadro gravíssimo de mudanças climáticas, o experiente e incensado político vai ter esse problema na própria cozinha: o Brasil é, no momento, uma Nação dividida ao meio por injeções diabólicas aplicadas de forma homeopática durante anos e anos a fio. Quem as recebeu, por ironia, acha que agora será governado por um demônio corrupto e não por um líder brasileiro acolhido pelo mundo.

Sentimento evocado pelo retorno de Lula: a atmosfera nostálgica de quando “a esperança venceu o medo”. Expectativa realista, diante do cenário político e da conjuntura social: pelo menos por muitos meses, o novo presidente não terá paz. Espera-se que ganhe tempo. É a aposta para conseguir contornar a forte turbulência dos “patriotas”. Se atuar como o velho Lula pode, de repente, transformá-la em uma marolinha verde e amarela. E então a moda retrô pode ficar “in” novamente.