Lula precisa decidir se quer ser presidente ou chanceler

04 junho 2023 às 00h00

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Depois de cinco meses com alguém apto ao cargo de volta ao comando no Planalto, ao cabo de quatro anos de desgoverno, como está hoje a temporada 3 da saga de Luiz Inácio Lula da Silva presidente?
A primeira coisa que fica óbvia para quem observa o quadro é o fim do tradicional período de lua de mel que vem na esteira da posse. Convencionou-se que esse prazo seria de seis meses, mas um mês antes a gestão petista já sofreu desgaste suficiente para acabar com o clima – inclusive, literalmente –, mesmo tendo tido, como trunfos, uma posse cheia de simbolismo em meio a muita tensão e a superação de um golpe de Estado.
É preciso pontuar que foi ali, no 8 de Janeiro, Lula teve sua melhor atuação desde que voltou a ser presidente. A forma com que reagiu ao ataque ao coração dos três Poderes, seguida do chamamento a todas as autoridades envolvidas, e a foto histórica com todos os governadores, no dia seguinte, correram o mundo em forma de manual sobre como um estadista deve se portar em momentos de crises internas agudas.
A segunda observação é menos evidente, menos positiva, mas igualmente pertinente. Lula, ao contrário de seu antecessor, faz questão de estar e se mostrar presente em encontros com líderes globais e em cúpulas internacionais. A mescla entre sua autoestima elevada e a grande popularidade mundial, inclusive, o leva por vezes a extrapolar e se achar blindado a críticas. E é aqui que o bicho pega.
Vencida localmente a vergonha planetária pelo capitólio tupiniquim, o presidente caiu no mundo. Foi à Argentina, ao Uruguai, aos Estados Unidos, à China, aos Emirados Árabes Unidos, a Portugal, à França, em viagens bilaterais. Por fim, esteve como convidado à cúpula do G7, o grupo dos países mais ricos. O Brasil, na maior parte, gostou: afinal, fazia tempo que a Nação não era representada à altura.
Mas tudo tem sempre um porém. Em mais de um momento, Lula deu declarações temerárias contra parceiros comerciais importantes, como os Estados Unidos e a União Europeia. Por outro lado, pesou o saco de bondades para outro, a China, e, de certo modo, não se mostrou tão duro como se esperava para condenar a má obra de Vladimir Putin no continente europeu.
Poderia se dizer que o brasileiro, como líder mundial consolidado que é, tem legitimidade para mostrar lado. E é verdade. A questão é que Lula, desde janeiro, não deve dizer apenas o que pensa, mas condizer seu discurso ao que seja melhor para o País que governa. Então, fica a pergunta: em um momento no qual se agrava a guerra fria – que faz tempo não é uma “possibilidade”, mas fato concreto – entre Washington e Pequim, é produtivo para quem tem uma bandeira de diplomacia tradicionalmente não alinhada fazer declarações que alfinetem ou mesmo critiquem abertamente um dos lados?
Da mesma forma que considerou ao se imiscuir no conflito entre Israel e Palestina, duas décadas atrás, Lula também acha que pode ser decisivo agora para pôr fim à guerra da Rússia contra a Ucrânia, onde a parte-alvo usa a Otan e por ela é usada numa “proxy war” – (expressão em inglês que significa algo como “guerra por procuração”), em que o país participante recebe apoio total de uma força militar que, em tese, não está diretamente lançando mísseis e avançando com tanques.
Não tem nada mais “guerra fria” do que isso; a diferença é desta vez, do outro lado da fronteira, está a maior potência nuclear. O jogo jogado é muito pesado, as lideranças ocidentais estão desgastadas internamente e, como consequência, o mundo vive o momento mais tenso do século 21.
Se lá fora Lula pouco pode fazer – ou se pode, não dessa forma –, internamente ele pode quase tudo por si mesmo. Seu terceiro governo é, de longe, o mais politicamente desafiador que já enfrentou. Tem uma oposição mais do que xiita, literalmente golpista, que não se importaria de destruir o Brasil se esse fosse o preço de tirá-lo da Presidência.
Isso é uma incômoda pedra no sapato do Planalto, mas ainda assim não é a maior. É que no comando do Congresso está o Centrão, e no comando do Centrão, Arthur Lira. O presidente da Câmara dos Deputados tenta fazer com Lula o que o ex-presidente da Casa (e agora também ex-presidiário) Eduardo Cunha não conseguiu com Dilma Rousseff (PT): submeter o Executivo a um fatiamento que agrade ao grande miolo fisiologista que impregna o Parlamento.
Dilma, ao não se submeter, perdeu o mandato. Se se submetesse, perderia o comando. Essa é a navalha sobre o fio da qual o governo Lula caminha no momento. Quando Lira diz que falta “articulação” ou “diálogo” ao Planalto, está puxando da manga a velha carta da chantagem política, um procedimento que afetou todos os governantes submetidos ao presidencialismo de coalizão. Com o fim da “lua de mel”, tudo mais escancarado.
Embora se diga que o Congresso Nacional é formado por uma maioria de direita e seja muito mais conservador do que progressista, ele continua em essência o mesmo de sempre desde os anos 80: a fisiologia prevalece e é preciso “dar para receber”.
Não dá para Lula reclamar. Ele sabia que seria assim, porque assim já era em seus governos anteriores – embora o problema tenha escalado muito desde então, a cada nome que o seguiu no Executivo. Por consequência, o petista-mor sabe também que o “problema” de Lira não é com os ministros articuladores Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (Casa Civil).
Tem uma terceira coisa que Lula sabe, mas está fazendo de conta que não: o governo só vai andar de fato se ele estiver ativo nessa dinâmica, como fez para salvar seu ministério na quarta-feira, 31. Com tudo a ponto de estar perdido na Câmara, ele pegou o telefone, abriu seu gabinete, recebeu lideranças dos partidos. Terá de ser assim, porque esse pessoal não aceita falar com intermediário.
A votação foi muito bem sucedida. Em tese, seria também significativa, já que teve um placar folgado – como aliás foi, o do arcabouço fiscal – de 337 a 125. Mas o alerta mais adequado foi dada por um deputado antipetista, Kim Kataguiri (UB-SP), quando classificou a manobra como “vitória de Pirro”, expressão em alusão ao general grego que venceu uma batalha na Itália à custa de esfacelar seu exército e teria dito “mais uma vitória dessas e estou acabado”.
Se cuidar dos problemas internos, que são muitos, em vez de dar atenção aos problemas lá fora – que são importantes, mas não estão a seu alcance –, Lula pode conquistar algo que não se vê, de verdade, pelo menos a uma década: governança, de fato. Até porque, como chanceler, Lula tem se mostrado um bom presidente.