Lula e Milei, uma relação que só depende do argentino
26 novembro 2023 às 00h01
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Por sua trajetória, que poderia ser contada em vários tomos – se fosse em livros – ou temporadas – se fosse uma série de TV, algo mais contemporâneo –, Luiz Inácio Lula da Silva já pode ser considerado, de alguma forma, o maior político da história do Brasil República. O que está por trás desse “maior” é algo que talvez desperte alguma polêmica. “Maior”, porque mais influente? Mais lendário? Mais carismático? Mais popular? Ou (certamente a opção dos militantes bolsonaristas ou lavajatistas) mais corrupto?
Não importa o viés. Lula, não dá para negar racionalmente, é também o maior animal político da história do Brasil. O conceito não tem nada de novo. Vem de Aristóteles (384-322 a.C.) – e designou primeiramente o ser humano como ser social, na qual um espécime depende dos demais e tem em si, portanto, um caráter carente e imperfeito pela própria natureza. Por isso, busca a comunidade para alcançar algo mais pleno.
Na Grécia Antiga, à comunidade organizada se chamava “pólis”, termo que deu origem à palavra “cidade”. Para o discípulo de Platão, quem vivesse fora da pólis ou era um ser degradado (a que ele chamou de “besta”) ou sobre-humano (no que se refere ao divino).
O animal político, porém, no conceito aristotélico não se aplicaria a todo homem: Aristóteles dizia respeito àqueles que influenciavam, de fato e de alguma forma, no destino da pólis. Esse seria o “cidadão” por excelência, diferente do “habitante”, que moraria na cidade, mas não teria atuação sobre ela. Dessa forma, crianças e idosos, bem como mulheres e escravos, naquela sociedade não seriam mais do que habitantes.
Nesse sentido, pode-se dizer que Lula é um cidadão do mundo. Opina e tenta influenciar nas decisões macro do planeta e é de longe o chefe de Estado nativo que mais alcançou ressonância – não sem ressaltar que, diante da geopolítica global, o Brasil é um país gigante, mas periférico e a América do Sul um continente escanteado, inclusive no desenho consagrado do mapa-múndi.
Como ator político, o poder conciliatório do presidente é indiscutível: conversa com que for preciso e se adequa ao cenário que se impõe. Se seu discurso em alguns momentos pode ter parecido radical, na prática ninguém foi tão maleável na principal cadeira do Palácio do Planalto.
Na definição de Ciro Gomes, seu ex-aliado (hoje, para o pedetista, um arquidesafeto), Lula é um “encantador de serpentes”, expressão utilizada para se referir a alguém de argumento e/ou “approach” extremamente sedutor.
Depois de vencer as eleições e se tornar o primeiro anarcocapitalista a presidir uma grande nação no mundo, o argentino Javier Milei alterou o viés radical com que se dirigia ao futuro colega brasileiro: trocou os termos “comunista” (usado como se fosse insulto), “corrupto”, “presidiário”, “ladrão”, entre outros, por uma declaração de que o petista seria “bem-vindo” a sua posse à frente da Casa Rosada.
Javier Milei, agora eleito para comandar uma Argentina em crise ao mesmo tempo grave e crônica, pode até parecer doido, e talvez até seja, mas não é idiota: sabe que da relação com o Brasil, o maior destinatário de suas exportações e principal parceiro comercial, depende seu próprio futuro político.
Não é com Donald Trump ou Jair Bolsonaro ou com políticos grudados em ambos que Milei terá de lidar para efetivar seu projeto de governo e tentar tirar seus compatriotas do lodaçal socioeconômico em que se encontram. Ou ele entende a realpolitik como única possibilidade ou o fim estará próximo, ainda mais diante da histórica curta paciência dos argentinos com medidas drásticas que ele prometeu tomar.
Aqui se abre uma porta para a passagem de Lula, o animal político e cidadão do mundo que encanta serpentes. Depois da tensão eleitoral, as relações diretas entre o governo de cá e o futuro governo de lá estão em “stand by” – ou quase, já que a declaração de Paulo Pimenta, secretário de Comunicação Social da Presidência sobre a necessidade de um pedido de desculpas por parte de Milei não saiu apenas da cabeça do assessor. Enquanto isso, o Itamaraty segue adotando o pragmatismo que o caracteriza como diplomacia.
Isso já foi confirmado por Celso Amorim, assessor para assuntos internacionais do Planalto e uma espécie de chanceler honorário do petista, dizendo que a diferença ideológica não é impedimento ao avanço da relação, embora possa torná-lo mais trabalhoso. Da mesma forma, o embaixador do Brasil na Argentina, Julio Bitelli, confia no que chamou de “profundidade” da relação bilateral, que seria, na visão dele, capaz de “resistir a qualquer alteração de governo de um país ou de outro”.
De fato, convivendo com Bolsonaro à frente do governo vizinho por mais de três anos, o kirchnerista Alberto Fernández não externou nenhuma dificuldade maior nas relações econômicas, apesar de declarações politicamente agressivas do brasileiro. Também de fato, é bem verdade que não houve progressos na agenda de cooperação entre os dois países.
Se o eleito argentino bravatear em público e deixar a coisa caminhar no privado, vai ficar o dito pelo não dito
O radical da relação da vez então era o “mito”; agora, é o “hermano”. Não que se espere nada diferente de uma extrema direita que ainda considera “comunismo” o capitalismo de Estado e de resultados da China. Assim como os chineses, Lula também não é tão comunista quanto tentam vender os reacionários; também como eles, o petista quer resultados para seu projeto.
Portanto, se o eleito argentino bravatear em público e deixar a coisa caminhar no privado, vai ficar o dito pelo não dito. Em partes, diga-se: ocorre que, se os comandantes das relações exteriores veem uma sequência econômica não tão traumática, é o velho Lula quem está menos diplomático. Quase um octogenário e em seu terceiro mandato, ele não demonstra mais ter tantos pudores na língua nem mais tanta vontade de retribuir com alguma camaradagem os balbucios de que o ataca. Por assim dizer, ele ligou o “dane-se”.
O presidente brasileiro é menos encantador de serpentes do que já foi. Porém, o animal político ainda pulsa. Se houver um sinal verde, a aproximação de Milei será questão de tempo. Afinal, seja um adolescente imaturo ou um governante boquirroto, a radicalidade acaba quando as palavras revoltosas refletem no esvaziamento do bolso.
O Brasil precisa da Argentina, mas a Argentina precisa muito mais do Brasil. Qualquer um que estude as condições de ambos os países sabe disso, quanto mais os governantes. Milei já tem um plano no mínimo arriscadíssimo de fazer a economia de seu país funcionar: dolarização, extinção do Banco Central, privatização geral e irrestrita etc. Não faz sentido, além disso, fechar portas para o vizinho que pode ajudar muito mais do que atrapalhar.
Em outros tempos, bastaria um leve aceno para Lula estar na porta de Milei como um vendedor de enciclopédia. Hoje, aquele Lula mais insistente existe tanto quando esse tipo de profissão. Mas o futuro da relação (e dele próprio) está nas mãos do argentino.