Escolha de Zanin: a República precisa parar de piorar

25 junho 2023 às 00h00

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Não há nada que se dizer sobre Cristiano Zanin como operador do Direito: foi extremamente zeloso de seu cliente mais famoso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e sempre conduziu um caso que envolvia o clamor público de ambos os lados ideológicos dentro do melhor que há na cartilha dos melhores advogados criminalistas.
Também não se pode falar que não tenha uma reputação ilibada: discreto em sua vida pessoal, a cena mais conhecida dele fora de tribunais e salas de audiência é dentro de um banheiro de aeroporto, em que permanece impávido ao ataque irascível de um militante de direita que o intimida com palavrões e ameaças enquanto o filma.
Durantes audiências que desafiavam os nervos diante de um juiz que já havia publicamente assumido um lado entre as partes envolvidas, Zanin manteve a fleuma necessária para bem conduzir seu ofício. Fez tudo o que foi possível, dentro dos instrumentos e manobras legais que tinha em mãos, para proteger os interesses do réu. A condenação do então ex-presidente, ele sabia, eram favas contadas num jogo de cartas marcadas. Ora, o próprio Lula disse a Sergio Moro: “O senhor está condenado a me condenar”.
Não era o caso de a Operação Lava Jato servir para fazer justiça, mas justiçamento. Zanin e Lula e todos os mais próximos sabiam disso. E apostavam no tempo, tido como senhor da razão, para que os fatos ficassem mais nítidos. E as coisas foram virando a partir da libertação do petista em novembro de 2019, após 580 dias de reclusão na sede da Polícia Federal de Curitiba – onde, por nenhum dia, o acampamento da militância petista deixou de lhe fazer vigília.
Depois, veio a Vaza Jato, com a divulgação do conteúdo das conversas, via Telegram, dos “filhos de Januário” – os procuradores da República que trabalhavam na força-tarefa – entre si e com o então juiz responsável por julgar os processos. Um hacker de Araraquara entregou tudo nas mãos da equipe do site “The Intercept Brasil”. O ano já era 2019 e o “então juiz” tinha virado ministro da Justiça do presidente a quem ajudara a eleger ao condenar Lula e fazer outros servicinhos sujos – como o vazamento da delação de Antonio Palocci às vésperas da eleição de 2018. Era o tempo fazendo seu trabalho.
O estadunidense Glenn Greenwald, editor do “Intercept”, também virou notícia: ganhou as primeiras páginas de todos os veículos com o conteúdo devastador que, aos poucos, foi deglutido, mesmo que a contragosto, pela grande imprensa, ainda bastante caída de paixão pelo lavajatismo.
Em março de 2021, outra vitória do tempo: por decisão monocrática, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou todas as condenações de Lula, entendendo que a 13ª Vara Federal, onde grassou a “República de Curitiba”, não era o juízo competente para processar e julgar o ex-presidente. Ou seja, os casos não deveriam estar com Sergio Moro. No mesmo mês, a segunda turma do Supremo declarou, baseada inclusive nas conversas vazadas pelo hacker, que Sergio Moro era suspeito para julgar o ex-presidente.
Por fim, a estocada final se deu com sessões do pleno do STF, em duas votações. Na primeira, por 8 a 3, confirmaram a decisão de Fachin sobre a anulação dos processos de Lula; na segunda, por 7 a 4, ratificaram a suspeição de Moro para julgá-los. Zanin praticamente encerrava ali sua missão direta com o cliente Lula, ao menos nas questões mais imediatas.
A vitória eleitoral do petista, em outubro de 2022, trouxe de novo os holofotes para o advogado. A leitura que se fazia era de que obviamente ele deveria estar em algum lugar na equipe de governo. Não foi o que o presidente quis. Ele fez “melhor” – no caso, em termos de “premiação” para Zanin: o indicou para o STF, na vaga aberta pela aposentadoria compulsória de Ricardo Lewandowski.
Na quarta-feira, 21, o Senado Federal sabatinou o candidato à nobre cadeira do primeiro escalão do Judiciário. Entre os que arguiram Cristiano Zanin estava o agora senador Sergio Moro (UB-PR), numa prova de que o tempo muda realmente as coisas (e as pessoas) de lugar. O reencontro foi civilizado de ambas as partes e relativamente tranquilo diante da expectativa de tensões, o que se estendia de Moro para o restante dos senadores da oposição. O indicado de Lula acabou sendo aprovado com 58 votos a favor diante de apenas 18 contra – a maior amplitude de escrutínio desde Luís Roberto Barroso, também advogado de origem, escolhido por Dilma para a cadeira que Carlos Ayres Britto deixava, em 2013.
Tudo muito “civilizado”, “tranquilo”, mas sob as águas aparentemente quietas de toda a conjuntura pesa algo preocupante: ao escolher seu advogado pessoal, Lula deu um passo a mais na deterioração das instituições, o que é lamentável.
Havia vários outros nomes que preencheriam os requisitos e seriam tão ou mais adequados ao cargo e, ao mesmo tempo, tão ou mais progressistas do que o próprio Zanin
Entende-se, porém, o lado do presidente: Zanin é a testemunha mais próxima do “lawfare” por que ele passou. E quase um ano e meio de cadeia por causa de julgamentos parciais deixam cicatrizes. Lula não fez nada ilegal diante do que havia em curso: ele pode alegar que a relação com seu agora ex-advogado e novo ministro do STF era estritamente profissional e que o indicado preenche todos os requisitos para o cargo. A sabatina no Senado e a anuência de praticamente todos os futuros colegas de Corte não deixam o mandatário sozinho nessa.
Mas o fato é que havia vários outros nomes que preencheriam os requisitos e seriam tão ou mais adequados ao cargo e, ao mesmo tempo, tão ou mais progressistas do que o próprio Zanin. Para citar apenas um entre vários, o reconhecido jurista Lenio Streck, também professor com doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), advogado constitucionalista e ex-procurador de justiça. Streck, de 67 anos, integra o grupo Prerrogativas, que via em Lula a opção democrática diante do risco da reeleição de um sujeito de extrema-direita nada afeito à institucionalidade e que, como se previra, se mostrou totalmente despreparado para a função.
Mas Lula queria um amigo, alguém em quem pudesse confiar em todos os momentos. Nesse sentido, talvez se estivéssemos ainda no absolutismo, o presidente estaria plenamente correto na escolha. Mas não é o que se espera de um regime republicano e de alguém que está no cargo também para mover para cima o nível democrático.
No entanto, como esta coluna já escreveu em edição anterior, Lula se cansou de fazer o tipo “certinho”. Seu próximo passo é não acolher, para a Procuradoria-Geral da República (PGR), o nome da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), divulgada no mesmo dia em que Zanin ganhou sinal verde do Senado.
Lula está pragmático como nunca. A idade e as experiências parecem ter lhe tirado a necessidade de fazer mesuras e ele quer os menores empecilhos possíveis para seus intentos. Um deles é conquistar apoio suficiente para um governo estável e que entregue o que prometeu – e que não é pouco –, a ponto de fazer seu sucessor ou de fazer-se reeleito.
Ainda que tudo isso dê certo, a conduta de Lula até este momento não ajudou a despiorar as instituições da República. Espera-se sua contribuição positiva ao longo dos três anos e meio de mandato que terá pela frente – resta 87,5% do tempo total.
No STF, estará o amigo Zanin. A questão incômoda é que, como disse um colega, durante uma discussão sobre o assunto num grupo de conversação de WhatsApp, ficou parecendo que Lula só tinha um amigo para isso. E um amigo a quem pagava não cervejas, mas honorários.