Da fala de Eco às fezes de Musk vem a emergência de regular as redes sociais
16 abril 2023 às 00h14
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Em 2015, o filósofo, semiólogo e escritor Umberto Eco, já nos estertores de sua vida – ele morreria no ano seguinte –, deixou para a sociedade contemporânea uma declaração em princípio vista como arrogante, mas que, passados apenas alguns anos, deveria servir como mantra para as mais variadas situações atuais.
Ele recebia, então, o título de doutor “honoris causa” da Universidade de Turim, na Itália. Na ocasião, ele disse:
— As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis que antes falavam apenas em um bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram imediatamente calados, enquanto agora eles têm o mesmo direito à palavra de um vencedor do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade. (…) O grande problema da internet é que, antes, eram os intelectuais que tinham a responsabilidade de lembrar aos cidadãos que nem tudo é política, que há coisas como o amor, a arte, a beleza, a família. Hoje, esse papel foi assumido pelos usuários da internet, que pensam que o fato de ter acesso a informações lhes dá o direito de julgar.”
Praticamente oito anos depois, a fala aparentemente soberba de Eco se tornou uma sábia e sombria profecia, emitida quando os algoritmos das chamadas “big techs” – as megacorporações que controlam as grandes redes sociais e os dados de bilhões de seres humanos ao redor do globo – estavam ainda em operação rudimentar. Hoje, já se sabe que não é coincidência nem mágica falar de um tema periférico qualquer e logo ver o celular ser lotado de publicidades referentes ao assunto.
Se a internet conseguiu, pelas redes sociais e aplicativos de conversação, reunir os idiotas, por que não conseguiria juntar maníacos? Ou criminosos? Ou servir ao crime organizado? Pior, ao terrorismo?
Talvez o exemplo mais bizarro conhecido do mundo virtual remonta a 2001, nos primórdios da rede mundial de computadores, quando o Google era um recém-nascido. É a tenebrosa história do encontro dos alemães Bernd Brandes e Armin Meiwes.
Armin nasceu em Essen, no oeste da Alemanha, em 1961, e trabalhou como técnico em computação antes de se tornar jardineiro. Bernd nasceu ao norte, em Hannover, no mesmo ano. Sabe-se que estudou engenharia da computação na Universidade de Hannover. E que era um homem solteiro que com interesse incomum em canibalismo. Isso o unia a Armin na internet, que havia procurado um voluntário para ser morto e literalmente comido.
O meio? Um fórum na internet dedicado ao tema. Brandes topou ser a refeição de Armin, que o convidou para sua casa em Rotenburg, a 110 quilômetros de Hannover. Bernd consentiu na filmagem da amputação de seu pênis por Armin, que, também com sua permissão, posteriormente o matou e consumiu parte de seu corpo. O cabinal foi preso em dezembro de 2002 e condenado a prisão perpétua, que cumpre desde janeiro de 2004.
Bernd não era um criminoso. Apenas um indivíduo com interesses incomuns e que encontrou outro que compartilhava ideias extremas similares. Não fosse a internet, apesar de morarem no mesmo país, talvez nunca se encontrassem. Foi um dos primeiros casos a levantar questões práticas sobre a ética da internet e a responsabilidade de plataformas sobre seus serviços online.
Na semana passada, o Ministério da Justiça, buscando dialogar com as empresas que controlam as redes sociais depois de vários episódios de ataques a escolas – dois deles com mortes –, chamou representantes das grandes plataformas para uma conversa em Brasília.
A advogada do Twitter no Brasil causou espanto até mesmo nos com representantes das outras companhias, ao defender que um perfil com fotos de assassinos envolvidos em massacres em escolas não fere a política de uso da rede, que se tornou um bibelô nas mãos do bilionário Elon Musk.
O magnata, desde que a adquiriu, em outubro de 2022, vem implantando uma série de políticas que desfiguraram o sentido original do Twitter e, pior, mudou as regras de moderação de conteúdo, muito mais permissivas agora em relação a conteúdos extremistas. À imprensa, ele adotou uma resposta padrão para questionamentos que recebe: um emoji de fezes, provando a miséria estrutural que consome o ser humano que não tem nada além de dinheiro.
O que o governo quer? Apenas que se minimize o encontro de gente com o mesmo pensamento funesto para se encorajarem mutuamente pelas redes sociais
O episódio com a advogada de Musk foi tratado pela equipe ministerial como um incidente “bizarro”. O titular da Justiça, Flávio Dino, quer que as plataformas digitais ampliem o monitoramento do conteúdo extremista e hostil em seus domínios. Só no Twitter, o governo rastreou 511 contas com apologia a violência e discurso de ódio. À Justiça, foi pedida a remoção de pelo menos 431 perfis responsáveis por conteúdos relacionados a ataques contra escolas, bem como foram cumpridos mandados de busca e apreensão.
O que o governo quer? Apenas que se minimize o encontro de gente com o mesmo pensamento funesto para se encorajarem mutuamente pelas redes sociais. No Twitter, por exemplo, é possível que um perfil se feche para um grupo seleto e interaja apenas com eles, de modo que ideias criminosas podem ser largamente compartilhadas “sem censura”. O grave é que a própria plataforma se rogue o “direito” de não tolher esses canais porque, segundo as regras que eles próprios fixaram, não estão ferindo sua “política de uso”.
Ora, acima de qualquer política de uso está a Constituição e todo o arcabouço – para usar uma expressão que voltou à moda – legal de um país. Elon Musk sabe que basta que o Planalto recorra à Justiça para que as providências tenham de ser tomadas. Mas o que ele quer, mirando para estas terras como quem olha para um mato no fundo do quintal da casa, é realmente causar polêmica para, lá adiante, alegar perseguição, censura, castração da liberdade de expressão.
É preciso, portanto, repetir à exaustão, como ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como Alexandre de Moraes, e outros nomes da imprensa e do Direito: liberdade de expressão não é liberdade para cometer ou propagar crimes. E, em um momento tão delicado como o atual, em que grupos estão se aproveitando de uma sequência de ações homicidas para provocar uma onda, é imperioso que medidas enérgicas sejam tomadas.
E, já que as redes não parecem tão dispostas assim a apertarem o cerco, a força-tarefa precisa vir dos três Poderes. Depois de resistirem juntos à recente tentativa de golpe, é hora de Executivo, Legislativo e Judiciário se reunirem para nova empreitada unificada: a regulação das redes sociais.
Está claro que a questão passa ao largo de qualquer discussão sobre liberdade e que falar em censura é tergiversar para convertidos a um extremismo que, até o momento, só falou em armas como meio de defender professores, funcionários e alunos de centenas de milhares de estabelecimentos de ensino. O socorro que a educação precisa deve vir das leis civis, não da lei da selva.