Dizer que eles chegaram de mansinho seria muita condescendência. Mas, ainda em 2014, aquela turma radicalizada em meio às multidões de verde e amarelo era ainda relativamente pequena. De toda forma, já chamavam a atenção pela distopia que traziam consigo: viam comunismo em tudo que não fosse espelho do próprio reacionarismo, sentiam saudades do regime militar e, por isso, já naquele tempo estendiam faixas pedindo uma urgente “intervenção constitucional” das Forças Armadas, para tirar Dilma Rousseff e o PT do poder.

Ainda não sabíamos, mas ali, por aquele tempo, nascia o bolsonarismo. No início, essas pessoas apoiavam Aécio Neves (PSDB), o nome que poderia derrotar a petista naquela eleição. O mineiro perdeu por pouco, o que atiçou ainda mais o bando. A partir do inconformismo de Aécio – um fracassado que não aceitou democraticamente a derrota e se pôs a sabotar o futuro governo antes mesmo de ele se iniciar – e com a ajuda preciosa do presidente da Câmara dos Deputados e então futuro presidiário, Eduardo Cunha, os bolsonaristas foram às ruas para tirar Dilma.

As manifestações pelo impeachment forçando uma pedalada onde não existiu crime de responsabilidade tiveram êxito. Dilma Rousseff foi afastada da cadeira presidencial em abril de 2016, para não mais voltar. O PT estava fora, mas era pouco para esse povo. Era preciso achar alguém realmente conectado com seu corolário de perigosas sandices. E foi assim que o bolsonarismo encontrou Jair Bolsonaro.

É isto mesmo: o bolsonarismo é anterior a quem o batizou, porque o deputado improdutivo que viraria presidente apenas se encaixou perfeitamente a uma ideia que vagava pelos ares. E uma ideia, é preciso dizer, que não vai acabar simplesmente com o eventual fim do mandato de Bolsonaro, caso não consiga a reeleição. Essa gente radicalizada se multiplicou e está mostrando, cada vez mais, que veio para ficar.

E o que tem aparecido não é coisa boa. Como apareceu em Aparecida do Norte (SP), no feriado religioso nacional mais importante para os católicos. Bolsonaro, na sanha de aproveitar qualquer evento em que possa usar Deus como garoto-propaganda para sua campanha por mais quatro anos (pelo menos) de governo, foi até o Santuário-Basílica de Nossa Senhora Aparecida na quarta-feira, 12.

Obviamente, como líder de massas inegável que é, carreou – termo bem ajustado ao caso, diga-se – uma massa que mais apropriadamente poderia ser chamada de “horda”. Confirmando o que já tinha ocorrido em terras britânicas no dia do funeral da rainha Elizabeth II, os bolsonaristas provaram que não respeitam ritos tradicionais nem qualquer sacralidade. Conflagraram o dia mais conturbado da história do feriado da Padroeira, desrespeitando a contrição católica.

A data santa para os católicos foi, enfim, vítima de um tipo novo de doença social: o hooliganismo patriota

Entre outras ocorrências: vaiaram a homilia (sermão) do arcebispo Dom Orlando Brandes por ele falar que era preciso impedir que as crianças passem fome (como se cuidar dos famintos fosse uma pauta “petista” ou “comunista”, e não cristã); puseram para correr, aos gritos, um homem que estava com uma camisa vermelha com o já conhecido bordão “a nossa bandeira (que, creio, achem que é só deles) jamais será vermelha!”; cercaram equipes de TV locais, uma da própria Basílica, e gritaram “Globolixo” para os profissionais, enquanto os acusavam de serem “comunistas”; enquanto isso, um senhor de meia idade para frente gritava “Lula ladrão!” em frente à câmera do cinegrafista da equipe, segurando uma caneca com uma foto de Bolsonaro cheia de bebida e uma lata de cerveja.

A data santa para os católicos foi, enfim, vítima de um tipo novo de doença social: o hooliganismo patriota. Não dava mais para saber se estavam em uma celebração religiosa ou em um corredor da Oktoberfest. A celebração religiosa se transformou em uma micareta sem noção, confusa como o cérebro de um terraplanista. Só havia uma certeza: o idolatrado do dia, daquele e de todos os dessa turma, era Jair Messias Bolsonaro. Jesus poderia pegar uma vaga de coadjuvante se não o atrapalhasse com algumas parábolas inconvenientes.

Depois de parecer se tratar de um grupo político, o bolsonarismo, de fato, está se aproximando muito mais do que seria uma seita cristã herético-teocrática que se apropria, no entanto, de maneiras e modos muito usuais de torcidas organizadas.

Este é exatamente o “modus operandi” que ocorreu em Aparecida do Norte: fustigar os opositores ou, na falta deles, quem estiver de vermelho ou carregando uma câmera ou microfone, sempre de modo acintoso, aos berros e em bando.

Assusta especialmente como tratam a imprensa. É como se os profissionais da comunicação fossem os responsáveis pela linha editorial do veículo que os desagrada. São, no entanto, apenas trabalhadores que ali servem como bois de piranha para a sanha que os hooligans da política tupiniquim têm de esganarem os donos da Rede Globo ou da “Folha de S.Paulo”.

Não há a mínima chance de que esse povo simplesmente vá para casa dormir resignado na noite do dia 30, caso as urnas confirmem a vitória do petista Lula. Probabilidade muito maior é de que eles promovam arruaças País afora, o que não está descartado – muito pelo contrário – mesmo em caso de vitória de seu “mito”.

É difícil admitir, mas aquele grupo de meia dúzia de pessoas piradas que colocava faixas em pontes pedindo a volta da ditadura no já longínquo 2014 cresceu bastante. São cidadãos que tinham uma vida normal, com amigos e parentes, mas, por algum aspecto que só a psicanálise saberia explicar, viraram a chave para um tipo particular de fanatismo que, no íntimo doméstico, ou trouxe a família para junto da loucura ou cindiu completamente a casa.

Claro, Bolsonaro teve mais de 50 milhões de votos cuja parcela majoritária não se comporta assim. É como no estádio lotado, em que uma minoria os de vândalos atacam torcedores adversários ao fim dos clássicos de futebol. Mas essa minoria, além de fazer um grande estrago por onde passa, está avançando em número.

Sim, o bolsonarismo é uma realidade que veio para ficar muito além do mandato– ou dos mandatos – daquele que o nomeou. Seja qual for o resultado das urnas, teremos de lidar com isso.