Quem tem mais de 30 anos com certeza se recorda da propaganda daquela bolacha – ou biscoito, para cariocas: Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Na época, era uma criativa forma que a publicidade brasileira arranjava para recriar o velho dilema sobre quem teria vindo primeiro, o ovo ou a galinha.

A primeira peça foi criada em 1984 e começava com uma frase de impacto: “Um grande mistério da humanidade: Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? A pergunta era tão intrigante que a revista Superinteressante, na época, procurou diversos profissionais da comunicação para tecer comentários sobre o dilema levantado pela campanha.

O idealizador da propaganda foi o publicitário Enio Mainardi e sua criação fez com que, a partir daquele momento, a marca se destacasse no segmento de biscoitos – ou bolachas – no Brasil. Tostines virou referência.

Mas como um pacote de bolachas – é assim que mais se usa em Goiás – se estatela assim, no meio de uma coluna de política?

É que, ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL), foi sendo levantada uma hipótese em princípio conspiratória, mas que, por conta da sequência de eventos, especialmente dos últimos – especialmente envolvendo o imbróglio das urnas eletrônicas –, vem se mostrando cada vez mais plausível: foi Bolsonaro quem trouxe de volta os militares ou foram os militares que “criaram” Bolsonaro para voltar ao poder?

O ponto zero dessas suspeitas poderia vir do agradecimento enigmático “ma non tropo” que Bolsonaro dirige ao general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército desde a gestão de Dilma Rousseff (PT), em 2015, passando por todo o período de Michel Temer (PMDB) e entregando o comando a Edson Pujol nos primeiros dias de governo do capitão. Era o dia 2 de seu governo e o recém-empossado se dirige assim ao general, já em cadeira de rodas por conta de uma doença degenerativa: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.”

Talvez um observador mais arguto voltaria ainda alguns anos no tempo. Na verdade, Bolsonaro iniciou sua campanha para concorrer à Presidência assim que foi reeleito deputado federal para o que seria seu sétimo mandato, em 2014. E, como nenhum outro político, ganhou livre trânsito nos quartéis e em outros eventos das forças militares. Era presença constante em formaturas de cadetes e festejos diversos da caserna.

Em setembro de 2015, ocupando o cargo de chefe do Comando Militar do Sul, general Hamilton Mourão, fez críticas severas à presidente Dilma, ao proferir uma palestra. Antes já havia incentivado homenagens ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército que havia falecido dias antes. Dois anos depois, o mesmo Mourão defendeu intervenção militar no Brasil. O comandante do Exército já era Villas Bôas e o presidente já era Temer. O general descartou puni-lo e o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, falou em resolução interna do problema. O pivô do problema virou vice na chapa de Bolsonaro e ambos foram eleitos em 2018.

O fato é que, durante os quatro anos, Bolsonaro foi uma espécie de “queridinho” dos quartéis. Embora, por regimento, não possa se fazer política nem haver apoio político dentro das unidades militares, o fato é que ele era recebido com os gritos de “mito, mito!” e posava para fotos com centenas de militares e seus familiares. Tudo com o aval, ou ao menos com vistas grossas, dos comandantes.

Primeiro, de figura folclórico-bizarra da política nacional, Bolsonaro virou azarão da corrida eleitoral. No fim de 2016, já tinha 8% das intenções de voto; em meados de 2017, de azarão passava a ser concorrente viável, com mais de 15% nas pesquisas.

A barreira parecia uma só: Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente que, na época, já estava condenado em primeira instância pelo juiz Sergio Moro, mas que “teimava” em não cair do patamar de 30% da preferência dos eleitores. Por isso, as postagens de Villas Bôas às vésperas de o STF julgar o habeas-corpus de Lula tenham tido como maior beneficiário exatamente Bolsonaro.

O que se seguiu foi Lula, ainda, liderando as pesquisas dentro da cela que ocupava na sede da Polícia Federal de Curitiba. Mas já se sabia, então, que ele não poderia concorrer, por um processo que, anos depois, se provaria totalmente viciado, com seu principal condutor, o juiz Moro, julgado incompetente e, pior, parcial.

Os militares fizeram de tudo para pôr o capitão da reserva no comando do País ou só deram uma ‘mãozinha’?

Bolsonaro venceu o primeiro turno com ampla vantagem sobre Fernando Haddad, o que confirmou no duelo final. Montou uma Esplanada dos Ministérios com tantos militares em cargos civis como nunca houvera nem mesmo durante a ditadura. Que estamos vivendo a situação distópica de um governo militar não há dúvida. A pergunta é outra.

A questão que fica e incomoda, depois de tanto tempo e de declarações como a que Bolsonaro fez ao general, o agradecendo efusivamente: os militares fizeram de tudo para pôr o capitão da reserva no comando do País ou só deram uma “mãozinha”?

Mas talvez isso não importe nem incomode tanto hoje quanto outra pergunta, que diz respeito às próximas semanas e aos próximos meses: os militares farão de tudo para reconduzir o capitão da reserva ao comando do País?

O primeiro teste já está em andamento: é o trato que os militares estão dando à questão das urnas eletrônicas junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Criou-se uma guerra fria entre o comando das Forças Armadas e a presidência da Casa, ainda sob Edson Fachin – que será substituído na terça-feira, 16, por Alexandre de Moraes –, causada em grande parte pela ênfase do Ministério da Defesa em atender as demandas de Bolsonaro.

Já houve uma série de vexames aos olhos de uma opinião pública neutra, como o pedido “urgentíssimo” para acesso ao código-fonte das urnas, o que, no entanto, já está liberado para consulta e inspeção há quase um ano. Atendido a questão “urgente” pelo TSE, descobre-se um coronel que fiscalizava o processo eleitoral, mas nas redes estava jogando fake news sobre tudo aquilo ali. O Exército ainda se achou no direito de sair chateado da questão, pelo fato de o tribunal não ter comunicado o desligamento, que foi sumário, do militar.

Ainda haverá o 7 de Setembro, do qual o fato de ser o bicentenário da Independência virou detalhe em vista do chamamento com potencial golpista que Bolsonaro fez a seus patriotas. Depois disso, quase um mês até as urnas, que precisarão das Forças Armadas para o que fazem de melhor – sua excelência em logística para transporte e entrega do precioso material das eleições.

Se tudo correr bem e da maneira correta, quem sabe, o efeito Tostines sobre a relação entre presidente e militares possa virar só uma pergunta fútil na mesa de bar.