Em um mundo em que as incertezas da economia trazem instabilidade mesmo às maiores democracias, governantes de extrema-direita, nas últimas décadas, passaram a ter, também por isso, cada vez mais ascendência e respaldo da população e dos colégios eleitorais das nações. Não foi diferente no Brasil.

Com a crise política acumulada por uma série de escândalos de corrupção e a crise econômica de uma recessão contratada pelo governo de Dilma Rousseff (PT), veio a tempestade perfeita para surgir um “outsider” messiânico que fosse “contra tudo que está aí”. Jair Bolsonaro foi o sujeito certo na hora fatal para suprir as ansiedades básicas da maior parte do eleitorado. E, nessa janela de oportunidade, conquistou um mandato improvável, mas legítimo – a despeito da fábrica de fake news e de seu passado antidemocrata.

Teve tudo nas mãos para estabelecer mais um regime autoritário do século 21 – como na Venezuela, Rússia, Turquia e Hungria –, em que o poder não se toma nem se mantém com tanques nas ruas, mas por meio de mentiras nas redes sociais; não há necessidade de militares tomarem o poder, apenas de encher a Suprema Corte de magistrados aliados.

Por que Bolsonaro está a um passo de ser derrotado, mesmo com a faca, o queijo e a máquina pública nas mãos? Por causa de seus próprios erros. Esta coluna lista abaixo dez situações em que o presidente fez a coisa errada, eleitoralmente falando.

01

Montagem do ministério

Para atender sua base mais extremista, Bolsonaro colocou no primeiro escalão nomes completamente ineptos para exercer qualquer função pública, quanto mais no mais alto nível. Uns saíram em pouco tempo, como foi o caso de Vélez Rodrigues, do Ministério da Educação, mas seus sucessores pouco ajudaram ou muito pioraram a situação – casos de Abraham Weintraub, que saiu fugido do País para não ser preso, depois de atacar o Supremo Tribunal Federal (STF); e do pastor Milton Ribeiro, que ficará eternizado pelo escândalo do MEC que envolveu religiosos, propinas e barras de ouro; outros ficaram mais tempo, como foram Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), mas também desserviram bastante.

02

Incentivo a manifestações golpistas

Em nenhum momento, o presidente buscou desautorizar os protestos que seus apoiadores sempre fizeram contra os demais Poderes. No governo, isso ocorreu desde o primeiro semestre de 2019, mesmo antes de qualquer ação do Legislativo ou do Judiciário que impusesse qualquer revés ao Planalto. A primeira manifestação, ainda em março daquele ano, surgiu como uma ação articulada para desgastar o então presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (então no DEM). Muitas outras viriam (e, infelizmente, talvez virão).

03

A “gripezinha”

Há um provérbio do coaching (ou que por ele poderia ser muito bem aproveitado) segundo o qual crises sempre geram grandes oportunidades. A pandemia do novo coronavírus foi um desafio a todos os líderes mundiais, que tiveram nela também uma forma de aumentar a própria popularidade. Bastava fazer o certo, o simples: cuidar das pessoas. Mas Bolsonaro preferiu seguir seu mestre Donald Trump: ambos minimizaram a doença e a tacharam de “gripezinha” ou coisas semelhantes. O presidente dos EUA, no entanto, corrigiria a rota meses depois, bancando com muito dinheiro estatal pesquisas de remédios e vacinas. Já o mandatário brasileiro se aprofundou nas declarações negacionistas.

04

Troca de ministros da Saúde

A Covid-19 exige vários tópicos aqui porque seu transcorrer foi crucial no autodesgaste de Bolsonaro. Quando Luiz Henrique Mandetta se viu diante do desafio de, como ministro da Saúde, ter o desafio de enfrentar a pandemia, ele fez o que deveria, como médico e ocupante do cargo: preparou estudos, montou uma articulação com todos os secretários estaduais de Saúde, passou a trabalhar de forma intensiva com sua equipe e estabeleceu coletivas diárias para prestar esclarecimentos sobre o andamento da pandemia. Sempre com o colete do SUS, Mandetta ganhou a simpatia da população aflita, que buscava conforto e orientação em alguma autoridade – um papel a que o presidente já se mostrava nada disposto a encarnar. Com orientações técnicas e discurso didático, o ministro ganhava visibilidade. Bolsonaro se sentiu ao mesmo tempo desafiado e enciumado. Inacreditavelmente, começou a desautorizar o trabalho correto do auxiliar. Tentou “fritá-lo” a ponto de ele pedir demissão. Não conseguiu, e teve de bancar o desgaste. Chamou para o cargo outro médico, Nelson Teich, que teve passagem relâmpago ao também não aceitar o ineficaz tratamento precoce que o governo queria implantar como solução para combater a Covid. Bolsonaro, então, achou um general, Eduardo Pazuello, disposto a fazer o serviço sujo de ministro da Saúde “obediente”. A CPI do Senado e a descoberta de vários escândalos abriria um rombo político ainda maior para Bolsonaro.

05

“Lockdown” e briga com governadores

Outro ponto de desgaste durante a pandemia foi com os governadores e o STF. Este, na versão de Bolsonaro, teria lhe tirado os poderes de atuar no combate à pandemia (o que houve, na verdade, foi a decisão de que as três esferas – federal, estadual e municipal – poderiam implantar medidas, mas valeriam sempre as mais restritivas); aqueles, exatamente por implantarem as medidas restritivas necessárias para conter a contaminação, mas que Bolsonaro condenava, porque prejudicariam a economia. Em toda a pandemia, o fechamento total do comércio se deu por poucas semanas e o “lockdown” (com proibição da circulação de pessoas, a não ser para serviços essenciais) só ocorreu em pouquíssimos municípios. Mas, até hoje, Bolsonaro chama todo o processo de “lockdown” e o culpa pelo desemprego e a crise em geral.

06

Descaso com a vacinação

O Brasil é culturalmente “amigo” da vacinação em massa. Campanhas de imunização do País lideradas pelo SUS viraram “cases” de sucesso mundial. Foi contra esse costume nacional que, em meio à pior pandemia dos últimos cem anos, Bolsonaro resolveu se insurgir. Questionou imunizantes; comprou briga política com o governador João Doria, de São Paulo, que produzia a Coronavac; disse que não compraria vacina porque o fabricante não se responsabilizava pelo produto. No fim, teve de adquirir, obviamente, mas atrasou o processo em 45 dias quando o País chegava ao pico de contaminação, o que pode ter elevado o número de mortes em pelo menos 100 mil brasileiros. Talvez o maior de seus atos de irresponsabilidade e falta de empatia. No fim de 2021, comprou briga novamente ao questionar a vacinação infantil e garantindo que sua filha, Laura, então com 9 anos, não se vacinaria.

07

Acordo com o Centrão

Para evitar a abertura de um processo de impeachment por conta de seus desmandos durante a pandemia, Jair Bolsonaro se viu obrigado a fechar acordo com o Centrão, um grupo de partidos cujos parlamentares fazem com naturalidade a política do “é dando que se recebe”: dão votos e recebem cargos. No caso do governo atual, ganharam também praticamente todo o orçamento de presente, incluindo aí as emendas de relator, o chamado “orçamento secreto”. A adesão ao Centrão foi a maior traição de Bolsonaro à sua base mais radical.

08

Contra urnas eletrônicas e pelo voto impresso

Bolsonaro critica as urnas eletrônicas mesmo antes de ter sido eleito. Diz até hoje que, não fosse uma suposta fraude, teria vencido em 2018 ainda no primeiro turno. Sua obsessão fez a Câmara dos Deputados a levar a plenário, em agosto do ano passado, uma proposta de implantação do voto impresso, que acabou derrotada. O acordo com Arthur Lira (pP-AL), presidente da Casa, era encerrar o caso. Claro que não adiantou. A pressão de Bolsonaro sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), inclusive por meio de militares, continua e no mês passado o presidente chamou embaixadores do mundo inteiro para uma reunião em que denunciou fraudes que nunca existiram no sistema eleitoral eletrônico.

09

Os 7 de setembro

Por dois anos seguidos, Bolsonaro fez da celebração da Independência um megacomício para si próprio. Em 2021, a concentração quase levou a uma invasão do STF, alvo das mais pesadas críticas do presidente naquele momento. A reação da Corte no “day after”, fez Bolsonaro escrever uma carta de desculpas, tendo o ex-presidente Michel Temer como “ghost-writer”. Em 2022, abafou o Bicentenário da Independência com abuso de poder político para gritar sobre si mesmo, a plenos pulmões: “Imbrochável, imbrochável, imbrochável!”.

10

Sigilos de cem anos

Jair Bolsonaro usou como ninguém um artifício presente em texto sancionado pela petista Dilma em 2011: o sigilo de até cem anos previsto na Lei de Acesso à Informação (LAI), que, a critério do presidente, pode ser imposto quando considerar que a publicidade dos dados viole a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de uma pessoa. No governo atual, houve, até o momento, nove sigilos, de cartão de imunização pessoal até contratos sobre aquisição de vacina.

Todos os casos, em maior ou menor grau, desgastaram Jair Bolsonaro diante da opinião pública em geral, embora, na maioria, fossem do agrado de seu eleitorado cativo. Hoje, as pesquisas mostram que o presidente conseguiu, de fato, formar uma base sólida. O problema é que é uma base tão sólida que não consegue se expandir, por conta de sua alta rejeição. Um caso clássico de autossabotagem à própria pretensão eleitoral.