É um paradoxo: sentimos o imperativo moral de descartar qualquer argumento racista, mas o moralismo é um fundamento fraco, fértil para a ignorância sobre questões raciais. Ao mesmo tempo se diz que não devemos “dar palco” para o preconceito, ou seja, simplesmente explicar a razão pela qual uma ideia racista está errada significa propagá-la, pois isso daria mais uma oportunidade para o racismo converter ingênuos ao ódio. 

O deputado federal goiano Gustavo Gayer (PL) associou no “3 Irmãos Podcast” os africanos a pessoas com quociente de inteligência (QI) baixo, e afirmou os moradores de países da África não teriam “capacidade cognitiva” para viver em um regime democrático. Como consequência, se a Procuradoria-Geral da República decidir, o parlamentar vai responder a inquérito perante o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo crime de racismo. 

É importante que, se Gayer cometeu um crime, seja responsabilizado. Mas é ainda mais importante ainda esclarecer a sombra lançada no 3 Irmãos Podcast. A dúvida continua sendo compartilhada e seduzindo – não pelo mérito do argumento, mas pela forma de vítima que o parlamentar soube assumir. Gayer faz parte de um grupo que alega ser judicialmente perseguido e agora ganhou mais um pretexto para se dizer injustiçado.

Nesse caso, a forma do discurso distrai do conteúdo racista, e o conteúdo mal explicado atrai os confusos. Ou seja, existem pessoas que não compreendem bem o assunto, mas veem a África pobre e cheia de países autocráticos, e veem a justiça punindo o parlamentar que aponta para esse fato. Essas pessoas chegam à conclusão de que a punição de Gayer (se vier) será exagerada, de que não se pode mais falar a verdade neste país, etc etc. 

Sem mais delongas: por que a África não colonizou a Europa? Foi por incapacidade cognitiva dos africanos? Não, não foi. No clássico e brilhante livro de divulgação científica “Armas, germes e aço”, o geógrafo Jared Diamond explica que diversos fatores justificam o avanço da civilização como ela ocorreu. 

  1. As civilizações do Crescente Fértil (hoje Iraque, Turquia, Síria, Líbano, Israel e Palestina) começaram na frente. Essa região do mundo teve acesso a um incrível conjunto de vegetais nutritivos e fáceis de domesticar. Eram cereais (trigo einkorn, trigo emmer e cevada); leguminosas (lentilha, ervilha, grão-de-bico e ervilhaca); e uma cultura oleaginosa e fibrosa (linho ou linhaça). 
  1. A Europa e Ásia puderam espalhar essas culturas vegetais pelo fato de que o eixo desses continentes é mais latitudinal, quer dizer, existem dezenas de milhares de quilômetros da Espanha até a Coréia. Isso é importante porque, nessa faixa do globo, a incidência solar é parecida e as plantas que foram domesticadas em um local conseguem se adaptar bem a outro. Já na África, que é mais longitudinal, poucos quilômetros significam mudança de deserto para selva para deserto novamente, de forma que é difícil cultivar vegetais do norte no sul e vice-versa.
  1. Fora da Europa e Ásia, o único animal domesticável era a lhama, que ficava restrita a uma parte dos Andes. Além de ajudar na economia, viver junto com cães, gatos, cavalos, ovelhas, cabras, porcos e gado fez com que vírus e bactérias que se hospedavam nesses animais circulassem também entre os humanos, gerando neles a resistência imunológica. Esse fator explica o fato de a varíola ter sido mortal para os indígenas, mas não para os europeus que a levaram para a América.

Apesar de toda essa vantagem, pela maior parte da história a Europa foi um continente “atrasado”. Por oito séculos, teve partes de seu território ocupado por árabes, persas, mongóis, e pelo menos duas vezes teve metade de sua população dizimada por epidemias. 

Em sua coluna na Folha, o grande divulgador da Ciência Reinaldo José Lopes lembrou de um trecho cômico dos escritos de Said al-Andalusi (1029-1070), magistrado que vivia na Espanha muçulmana da Idade Média. Ele escreve assim sobre os nativos da Europa: “Seus humores são grosseiros e seus ventres, impudicos. Assim, falta-lhes agudeza de compreensão e clareza de inteligência, e eles são sobrepujados pela ignorância, obtusidade, falta de discernimento e estupidez.” 

No futuro, os africanos poderão ler o que Gayer falou com os mesmos olhos condescendentes que lemos as impressões de al-Andalusi hoje.