Ciência não quer inovação, mas encontra assim mesmo
04 setembro 2023 às 18h24
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Um novo estudo intitulado “Quanto vale fazer ciência nova? Os padrões de seletividade no financiamento da Ciência” descobriu que os cientistas com histórico de publicações inovadoras tiveram 31% menos probabilidade de receber financiamento. Isto é, financiadores não gostam de cientistas com histórico de busca por ideias revolucionárias ou disruptivas. A Universidade de Oxford analisou um período de cinco anos do Sinergia, um programa de bolsas da Swiss National Science Foundation, e publicou seus resultados na revista “Science” no dia 29 de outubro.
A princípio, este parece um dado desesperador. Será que quem banca a ciência não quer ouvir verdades incômodas? Há uma conspiração do dinheiro contra informações que podem abalar o sistema? A sociedade quer sufocar descobertas modernas e ousadas por meio da falta de financiamento? Vamos nos estagnar por falta de arrojo dos financiadores?
A resposta para todas essas perguntas é um óbvio não. Há razões excelentes para que a ciência funcione como funciona – buscando testar ideias já estabelecidas, ao invés de tentar descobrir ideias inovadoras. A pesquisa de Charles Ayoubi, Michele Pezzoni e Fabiana Visentin, da Universidade de Oxford, oferece uma excelente oportunidade para explicar por quê.
Parece estranho, mas a Ciência não busca descobertas inovadoras
Segundo o físico, filósofo e historiador da ciência Thomas Kuhn (1922-1996), a maior parte da pesquisa científica consiste em buscar pecinhas de quebra-cabeças. Por seu brilhante livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” (Perspectiva, 324 páginas, tradução de Beatriz Vianna Borina e Nelson Boeira), Thomas Kuhn ficou conhecido como um dos maiores nomes da epistemologia ao confrontar noções comuns do público leigo sobre a atividade de pesquisa, e que muitas vezes são incorporadas pelos próprios cientistas.
Uma dessas ideias comuns é a de que cientistas buscam por descobertas; o momento “eureka!”; a observação de uma anomalia que rompe com todo o conhecimento normal. Esses momentos existem, mas raramente são o objeto da busca das pesquisas, e raramente causam euforia em pesquisadores. Mais frequentemente causam confusão e irritação. Na realidade, a pesquisa que rende resultados muito inesperados é geralmente a raiz de uma grande crise nas áreas do conhecimento impactadas.
A razão é justamente o fato de que, durante a maior parte do tempo, cientistas estão montando um quebra-cabeças. Eles testam diferentes peças (hipóteses) que podem se encaixar em uma lacuna para ajudar a montar a imagem esperada daquele jogo de quebra-cabeças. Se seguirem as regras do jogo, procurando por peças com cores e formatos prováveis para as lacunas (isto é, se os cientistas embasarem-se nos métodos e práticas da ciência em vigor), os resultados vão formar a imagem prevista (vão confirmar o conhecimento previamente acumulado e adicionar robustez à teoria).
Um exemplo concreto: na última descoberta comentada nesta coluna, arqueólogos conduziram uma pesquisa para determinar o ano exato em que vikings estiveram na América. Eles tinham uma expectativa: os artefatos vikings encontrados no Canadá foram datados com radiocarbono e se calculou que foram construídos entre os anos 793 e 1066 da era comum. Assim, buscaram uma peça de quebra-cabeças com formato e cores já esperados para a lacuna no desenho – procuraram por marcas da já conhecida tempestade solar do ano 993 nos anéis de crescimento na árvore. Houve satisfação da expectativa: descobriram que os vikings estiveram no Canadá no ano 1021 – dentro do período esperado; a hipótese foi confirmada.
Em outras palavras, cientistas geralmente não pesquisam novas ideias sobre o funcionamento do mundo, eles procuram por fatos novos que comprovem suas antigas ideias (que comprovem seus paradigmas, para usar a terminologia de Thomas Kuhn). Buscar provas de vikings no Canadá em qualquer período de tempo seria inútil; foi necessário delimitar o período de 793 e 1066 para que se soubesse onde aplicar os esforços – a resposta estava no ano de 993 – e como encontrar essa resposta – a chave estava na botânica e na física de raios cósmicos.
O fim da inovação?
Mas, se a Ciência tenta comprovar entendimentos pré-concebidos, então nunca haverá avanços revolucionários? A resposta é outro não. Realizando um experimento mental, vamos cogitar um cenário em que os arqueólogos do exemplo citado tivessem sido frustrados em suas expectativas, descobrindo uma anomalia.
Suponha que os arqueólogos encontrassem árvores com marcas de tempestades solares em dois anos consecutivos. Isso poderia significar que aquela planta atravessou o evento Miyake, a maior tempestade solar da história e que ocorreu de 774 a 775. Ou seja, teriam encontrado uma resposta fora de suas expectativas.
O que isso significaria? O período esperado de 793 a 1066 foi calculado por intermédio de datação por radiocarbono dos artefatos vikings encontrados no Canadá. Descobrir árvores cortadas por esses artefatos 20 anos antes de sua própria fabricação significaria que a datação por radiocarbono é falha? Talvez a margem de erro da técnica fosse mais grosseira do que imaginávamos e outras pesquisas com radiocarbono teriam de ser reavaliadas.
Caso negativo, se os vikings realmente tivessem acampado na América em 774 e 775, isso poderia significar que os nórdicos navegaram até o distante Canadá antes de se estabelecerem na próxima Islândia, em 830. Isso significaria que a história do país precisaria de ser reescrita.
Talvez tudo não passasse de um engano; talvez associar anéis de crescimento às tempestades solares não funcione. Nesse caso, cientistas teriam de encontrar outra hipótese que esclarecesse por que árvores de todo o mundo registraram níveis inexplicavelmente altos de carbono 14 em seus anéis de crescimento datando de 774 a 775.
Enfim, todas as áreas do conhecimento citadas entrariam em crise. A crise poderia ser resolvida com um adendo à hipótese original, ou com uma verdadeira revolução.
O que fazer sobre o menor financiamento de ideias inovadoras?
Thomas Kuhn ressaltou em “A Estrutura das Revoluções Científicas” um desentendimento do senso comum sobre a prática científica que é ainda mais agressivo para os leigos. Por mais estranho que pareça, o conhecimento científico não é cumulativo. Isto é, revoluções do conhecimento não são construídas pouco a pouco. Na verdade, são fruto de uma dramática mudança na visão de mundo imposta por fatos inexplicáveis para as teorias antigas. Esses fatos inexplicáveis só podem ser descobertos pelo minucioso olhar de quem já espera encontrar algo e por quem sabe como e onde procurar.
Quando olhamos para todas as teorias substituídas na ciência, percebemos que elas não foram ultrapassadas por quem havia se cansado de seus fatos atrasados e resolveu buscar inovação. Os cientistas desde sempre buscam somar seus trabalhos ao arcabouço de conhecimento compartilhado em sua comunidade. Entretanto, eles eventualmente tropeçam em um fato inexplicável e são obrigados então a imaginar todo um novo esquema em que aquela peça de quebra-cabeças se encaixe.
De uma forma curiosa, a pesquisa “Quanto vale fazer ciência nova?”, referida no primeiro parágrafo, faz uma referência a si mesma. Essa pesquisa da Universidade de Oxford não é ela própria uma pesquisa inovadora. Tendo Thomas Kuhn (este, sim, um revolucionário) publicado suas ideias em 1962, o fato de que artigos transformadores são raros na Ciência não é uma novidade. Na prática, a baixa busca por conceitos novos confirma a hipótese já estabelecida de “A Estrutura das Revoluções Científicas”. A ciência não busca inovação, mas a encontra mesmo assim.