Helmut Schmidt – A Alemanha, a Europa e o mundo perdem um grande estadista
19 dezembro 2015 às 09h57

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O mais lembrado político alemão após a 2ª Guerra Mundial faleceu em 10 de novembro passado, aos 96 anos

Helmut Schmidt, quinto chanceler da República Federal da Alemanha, o mais lembrado político alemão após a 2ª Guerra Mundial, faleceu em 10 de novembro passado, em Hamburgo, sua cidade natal, aos 96 anos de idade. Foi chefe de governo da coalizão social-liberal de 1974 até 1982 tendo sucedido a Willy Brandt (1913-1992) que abdicara ao se tornar público que seu secretário particular, Günter Guillaume, era agente secreto da República Democrática Alemã (a Alemanha comunista).
Helmut Schmidt tomou parte ativa na 2ª Guerra Mundial. Há 74 anos, em junho de 1941, como jovem oficial do exército alemão, a “Wehrmacht”, Schmidt participou da Operação Barabarossa, a invasão da União Soviética, onde viveu temporariamente o drama das trincheiras do cerco de Leningrado (hoje São Petersburgo) de setembro de 1941 até janeiro de 1944.
Ferido durante o cerco, repatriado à Alemanha foi incorporado ao Ministério da Aeronáutica e designado para participar, como observador, do simulacro processo do Tribunal Popular dos homens do atentado contra Hitler em 20 de julho de 1944. Inconformado com a postura arrogante do juiz, Helmut Schmidt pediu a seu general superior que o dispensasse do encargo.
Em dezembro de 1944 foi escalado para a Frente Ocidental onde não poupou críticas pessoais contra Hermann Göring, chefe da Força Aérea Alemã, e contra o regime nazista em geral. Acusado, deveria responder a processo. Livrou-se com o apoio de dois generais que cuidaram de transferí-lo seguidamente de um lugar e de um posto a outro. Capturado, no norte da Alemanha, pelo exército britânico em abril de 1945, foi transferido a um campo de prisioneiros de guerra na Bélgica e liberado em agosto do mesmo ano.
Terminada a guerra, Helmut Schmidt, com 27 anos de idade, regressou a sua cidade natal, Hamburgo, que encontrara em escombros, com a insígnia de tenente-coronel da reserva. Filiou-se ao Partido Social Democrático, influenciado por Hans Bohnenkamp (1893-1977), pedagogo e professor universitário, que conhecera enquanto prisioneiro britânico na Bélgica.
Inscreveu-se na Universidade de Hamburgo em Ciências Políticas e Econômicas, onde obteve diploma em 1949. Nasceu aí o seu interesse pelas teorias de John Maynard Keynes (1883-1946), de Max Weber (1864-1920), de Karl Popper (1902-1994) e de Immanuel Kant (1724-1804). Em conversas com amigos costumava mencioná-los com largas citações e, durante sua longa vida, nunca deixou de aprofundar-se em suas teorias.
Findos os estudos trabalhou, até 1953, na Secretaria de Economia e Trânsito de Hamburgo, uma cidade- estado, como responsável pela Diretoria de Trânsito. Foi aí quenasceu seu interesse pela política. Foi nesta época que Schmidt descobriu seu talento redacional. Muito cedo começou a escrever artigos que costumavam ser publicados em vários jornais alemães.
Em 2008 explicou os motivos para seu engajamento político: “Ambição é um termo que eu não usaria para minha pessoa. Obviamente eu almejava por reconhecimento público, mas a força estimuladora tinha outros motivos e era típica de minha geração: voltamos da guerra onde passamos por muita miséria e todos estávamos decididos a dar a nossa contribuição para que aqueles pavorosos acontecimentos nunca mais se repetissem na Alemanha. Foi esta, e só esta, a força estimuladora”.
Entre 1953 a 1962 e de 1965 a 1987 Helmut Schmidt foi membro o Parlamento Alemão, onde ocupou alta funções dentro do Partido Social Democrático, o SPD, na sigla em alemão. Simultaneamente, de fevereiro de 1958 até novembro de 1961 foi membro do Parlamento Europeu.
Até nesta altura Schmidt era um político com excelente atuação parlamentar, mas de projeção nacional menos reconhecida. Curioso é que sua projeção nacional começou com uma catástrofe: de dezembro de 1961 a 14 dezembro de 1965 Schmidt era senador de Segurança Pública em Hamburgo (como cidade-Estado os secretários municipais têm o título de senador).
Na noite de inverno de 16 a 17 de fevereiro de 1962, o norte da Alemanha foi atingido por uma inundação. A cidade de Hamburgo, situada na confluência de vários rios, com o rompimento de vários diques, confrontou-se com uma catástrofe diluviana. Helmut Schmidt, responsável pela ordem pública, não hesitou. Demonstrou aí sua capacidade organizadora que lhe trouxe prestígio, respeito e popularidade em toda a nação. Coordenou os diversos órgãos entre polícia, serviços de salvamento, proteção à catástrofe e serviço técnico de resgate, Cruz Vermelha e demais instituições.
Valeu-se de seus bons contatos com o Exército e a OTAN para pedir o auxílio de soldados, helicópteros, pequenos barcos que pudessem entrar pelas ruas inundadas; pediu apoio da Holanda, Bélgica e Luxemburgo sem que tivesse legitimação para isso. Com tal medida inusitada Schmidt salvou milhares de vidas e tornou-se personagem de respeito nacional. Mais tarde disse: “Naqueles dias não liguei no que prescrevia a Constituição. Aprendi na guerra a tomar decisões rápidas para salvar a própria vida e a de companheiros de luta”.
Em 1969 o Partido Social Democrático venceu as eleições. Willi Brandt tornou-se chanceler e Helmut Schmidt assumiu o Ministério de Defesa. Neste período reduziu o serviço militar de 18 para 15 meses e criou duas universidades militares, uma em Hamburgo, outra em Munique. Em julho de 1972 assumiu os superministérios das finanças e da economia.
Com a demissão de Willy Brandt, Helmut Schmidt foi eleito chanceler em 16 de maio de 1974. Na época, não só a Alemanha, mas o mundo se confrontava com a recessão econômica em consequências da primeira crise de petróleo dos anos 70, que a Alemanha, já sob o comando do chanceler Schmidt, suportou melhor do que muitas outras nações.
Paralelamente a Alemanha se confrontava com uma onda de terrorismo interno. As manifestações estudantis de 1968 ainda continuavam vivas e os grupos Baader-Meinhof e a RAF, Fração do Exército Vermelho, aterrorizavam a Alemanha. Atentados, sequestros, extorsões, ataques a bancos, embaixadas e outras instituições, assassinato de políticos, magistrados, representantes da indústria, e o ataque à delegação de desportistas israelenses por terroristas palestinos durante os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, alarmaram a nação e inquietaram autoridades.
Muitos destes episódios estavam envolvidos com extorsões várias: pagamento de resgate, libertação de camaradas presos, publicação de manifestos. Helmut Schmidt foi intransingente mas fiel a seu próprio credo: O Estado não deve deixar-se extorquir”.
Helmut Schmidt dominava à perfeição a arte da retórica. São inesquecíveis seus discursos e debates como parlamentar e como chanceler no Parlamento Alemão. Era brilhante em revidar aos apartes em seus discursos. Dependendo da situação podiam ser tanto ferinos como sibilinos, sempre com o vocabulário adequado mas certeiros para desarvorar ou desnortear o adversário. Essa sua habilidade deu-lhe o apelido de “Schmidt Schnauze” o que em tradução coloquial poderia corresponder a “Schmidt Focinho”.
Schmidt foi, sem dúvida, o político alemão intelectualmente mais abrangente entre os demais políticos do pós-guerra que cultivava amizades. Entre os amigos mais chegados encontram-se homens tão diversos como Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, cuja amizade durou mais de 60 anos; Valéry Giscard d’Estaing, ex-presidente da França; Lee Kuan Yew (1923-2015), ex-primeiro-ministro de Singapur; George Shultz, ex-ministro das Relações Exteriores dos Estados Unidos; Muhammad Anwar Al Sadat (1918-1981), ex-presidente do Egito; bem como Deng Xiaoping (1904-1997), que liderou a China praticamente de 1979 a 1997.
Era exímio pianista que chegou a dar um concerto de Mozart com a Orquestra Sinfônica de Londres.
Junto com Valéry Giscard d’Estaing deu início aos encontros dos chefes de Estado e chefes de governo que começaram com o G-5, depois G-7, G-8 e atualmente o G-20. Teve grande atuação nos tratados SALT I e II (Strategig Arms Limitation Talks). Da mesma forma foi Helmut Schmidt o homem que se empenhou para a instituição do Forum Econômico Mundial que tem lugar anualmente em Davos, na Suíça. Sobre Deng Xiaoping Helmut Schmidt comentou ter sido o político mais inteligente do século 20. “Ele me explicou o Confucionismo enquanto que Muhammad Anwar Al Sadat, explicou-me o Alcorão”.
Após abandonar a política dedicou-se ao jornalismo. Tornou-se co-editor do renomado semanário “Die Zeit”, no qual publicou centenas de artigos e participava das reuniões da redação quando já ultrapassava os 90 anos de idade. É autor de mais de 40 obras, a maioria das quais publicadas após retirar-se da vida pública.
Sua correspondência com chefes de Estado, historiadores, jornalistas, escritores, partidários políticos e oposicionistas é um manancial abrangente. Historiadores terão anos de trabalho para analisar e pesquisar o legado por ele deixado. Os alemães o viam como a “consciência da nação”. Um de seus lemas: “Política sem consciência tende à criminalidade. Vejo a política como ação pragmática a serviço de objetivos morais”.
O governo alemão despediu-se do grande estadista em 23 de novembro passado em cerimônia oficial realizada em Hamburgo. Estiveram presentes autoridades europeias e mundias, representantes políticos de todos os partidos, intelectuais e amigos. Um dos três oradores oficiais foi seu amigo de mais de seis décadas, Henry Kissinger, que em discurso muito emocional, entre outras afirmações, disse: “Helmut Schmidt foi uma espécie de consciência mundial”.
Lotti Schmidt, sua mulher, morreu em outubro de 2010. Ao sentir os grilhões da morte escreveu-lhe um bilhete que o esposo carregou em seu bolso durante os anos que lhe sobraram: “Já vou indo. Te espero”. Lotti esperou cinco anos.