A situação da Irlanda do Norte e o Brexit
27 março 2019 às 18h53
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O Brexit pode acabar fazendo água, naufragando como o Titanic. Mas, afinal, quem vai pagar pelo estrago feito e quem vai ajudar a recuperar a imagem dos britânicos?
De Stuttgart, Alemanha — Um detalhe difícil nas discussões sobre o Brexit entre Bruxelas e a Grã-Bretanha é a questão da Irlanda do Norte. Bruxelas, cautelosa, por motivos compreensíveis, rejeita exigências britânicas por temer o recomeço (ou continuação) da guerra civil naquela parte do Reino Unido a partir dos anos 60 do século passado, conflito que custou a vida de 3.500 pessoas.
Com o Good Friday Agreement (Acordo de Sexta-Feira Santa), de 10 de abril de 1998, as partes conflitantes, a República da Irlanda, o Reino Unido e os partidos da Irlanda do Norte concordaram em findar a luta armada que durou quase quarenta anos. Aliás poder-se-ia dizer que durou quatro séculos, pois a Irlanda tem um histórico recheado com longas e sangrentas lutas cujas origens remontam à Idade Média.

Em 31 de dezembro de 1600, a rainha Elisabeth I (1533-1603) emitiu um documento real “carte blanche” (carta-branca) com o qual concedeu privilégios a alguns abastados mercadores londrinos para tratar do comércio de especiarias com a Ásia. Esse documento deu origem a English East India Company (EIC), Companhia das Índias Ocidentais, um empreendimento estritamente particular.
Não tardou os mercadores perceberam que, com a carta-branca que tinham em mãos, poderiam realizar algo mais amplo além das limitações do comércio com especiarias, isto é, a conquista de novas terras, política que espanhóis e portugueses já vinham praticando um século antes.
Das nações europeias expansionistas da época (entre as quais encontravam-se também a França e a Holanda), a Inglaterra foi a que obteve maior sucesso. Em três séculos chegou a dominar o maior reino colonial da história, o Império Britânico. Em 1922, ano de sua maior expansão, seus domínios abrangiam 458 milhões de habitantes, na época um quarto da população mundial e cobriam uma área de 33,67 milhões de km², um quarto da superfície terrestre.
As nações europeias da época que se aventuraram aos mares em distintas direções tinham, sem exceção, além de seus objetivos expansionistas, outro atributo comum: eram extremamente brutais e, em regra, isentas de quaisquer valores humanos sempre quando valia defender sua fome expansionista ou impor seus interesses de domínio e exploração.
No que diz respeito ao continente americano basta lembrar a leitura de “Brevísima Relación de la Destruición de las Índias”, do bispo Bartolomeu de Las Casas. Um cartapácio de mais de 500 páginas, enviado ao imperador Carlos V, no qual De Las Casas registra minuciosamente as crueldades cometidas contra nativos nas Américas. Os métodos não eram diferentes em outras regiões onde chegassem os “civilizados” europeus.
No entanto, nenhum povo sofreu tanto e sobretudo tão longamente como os irlandeses sob o jugo de seus conquistadores, seus vizinhos ingleses. A história da Irlanda é uma história de humilhação, submissão, selvageria e violência — que começou no século 12 com a campanha de Henrique II, rei da Inglaterra de 1154 a 1189. Ele invadiu a ilha em 117. Esse ano marca o início do domínio inglês na Irlanda.
A dominação inglesa intensificou-se nos séculos seguintes: explorando, avassalando e escravizando os irlandeses em sua própria terra. No princípio do século 17 deu-se início à povoação planejada na região norte da ilha, com a chegada de colonizadores protestantes da Inglaterra e da Escócia, medida de graves consequências em virtude das violências dos intrusos — que tratavam os irlandeses como vassalos e arbitrariamente apossavam-se de suas propriedades.
Esse procedimento foi motivo de sérios e repetidos conflitos — sempre aplacados cruelmente pelos invasores ingleses que, como em outras regiões do mundo, não costumavam usar luvas de pelica para conseguir seus objetivos.
Esta situação perdurou por séculos, se bem que já em 1798 os irlandeses tentaram um levante para livrar-se do jugo britânico. A tentativa terminou em malogro. Outra rebelião com o mesmo objetivo foi a Revolução da Páscoa, na Semana Santa de 1916, iniciada por militantes republicanos irlandeses. Militarmente também essa tentativa de libertação terminou em fracasso. Politicamente, no entanto, a Revolução da Páscoa é vista por historiadores irlandeses como mudança de rumo nas seculares refregas contra a tirania e as humilhações. Foi a rebelião que abriu caminho para medidas posteriores que, afinal, conduziram a Irlanda à independência.
Uma medida deveras ousada foi posta em prática em janeiro de 1919 quando os irlandeses, sem consultar Londres, instituíram o seu próprio Parlamento. Paralelamente foi criada o Irish Republican Army (IRA, na sigla em inglês), a Armada Republicana Irlandesa —cujo comandante, Michael Collins, de 29 anos, também era membro diretivo da maior agremiação política, o Sinn Féin.
Os irlandeses, acostumados às lutas, partiram para o conflito. Os soldados do IRA, sempre em roupas civis, tinham como alvo membros da polícia e do exército britânico que, em dois anos, até 1921, perdeu 600 homens. O IRA gozava de grande prestígio na população e, por não usarem uniforme, era difícil identificá-los.
O governo em Londres, na impossibilidade de controlar a situação, resolveu dialogar com membros do Parlamento Irlandês —aceitando inclusive a participação de Michael Collins nas gestões que visavam o fim do conflito. Em 6 de dezembro de 1921 foi assinado um acordo que garantiu à Irlanda um governo próprio e um parlamento com todos os poderes legais, inclusive um exército e política externa autárquica.
Mesmo assim, a Irlanda, na luta por liberdade, pagou um alto preço por ter que ceder às exigências britânicas: o direito de uso em três bases marítimas; o controle sobre a constituição irlandesa permanece em Londres; o soberano do Reino Unido também o é da Irlanda. Ademais Londres exige a divisão da Irlanda. Parte da região norte, protestante, é separada do sul e permanece no Reino Unido, medida que repercute até hoje e com um Brexit sem acordo teme-se novas beligerâncias que a União Europeia quer evitar.
O acordo de 6 dezembro de 1921 além de dividir a Irlanda, dividiu ao mesmo tempo população. Uma parte aceitou o acordo; outra refutou-o. Formaram-se duas facções que se digladiaram numa guerra civil, que terminou em 1923, quando os adeptos do acordo, em votação no Parlamento, conseguem um resultado de 64 contra 57. Dois mil mortos e 12 mil oponentes do acordo acabam em prisões. A Irlanda conseguiu a liberdade, mas dividida em Irlanda e Irlanda do Norte. O fato de existir, ainda hoje, uma Irlanda dividida deve-se à centenária política expansionista da Grã-Bretanha.
Nos anos seguintes os conflitos nunca amainaram. Na década de 1960 do século passado voltaram a recrudescer e só terminaram com o Acordo de Sexta-Feira Santa de 10 de abril e 1998. Pelo acordo ficou estabelecido que o governo da Irlanda abstém-se da exigência de reunificação; aceita a reunificação caso a maioria da população da Irlanda do Norte assim o decida; governo e entidades públicas da Irlanda e da Irlanda do Norte devem trabalhar em estreita cooperação; forças paramilitares do IRA, da Ulster Defence Association (UDA) e da Ulster Volunteer Force (UVF) declaram depor armas.
O Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998 foi fundamental para o relacionamento entre as duas Irlandas. Com fronteira aberta, o comércio cresceu e a troca de mercadorias entre ambas as partes foi de proveito recíproco. Desde então reina a paz; não houve atentados, nenhum soldado ou policial perdeu a vida.
No caso de um Brexit sem acordo tudo tornar-se-ia nulo? A fronteira entre as duas partes voltaria a cerrar-se e a Irlanda do Norte permaneceria presa ao Reino Unido — apesar de a população, no plebiscito de 2016, ter decidido permanecer na União Europeia com um resultado de 56% a favor e 44% contra? O objetivo da UE é resguardar a validade do Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998 e garantir o livre trânsito entre as duas Irlandas.
A ilha britânica e a Irlanda, apesar de separadas por mar, têm limites fronteiriços geográficos físicos (como se não existisse mar) já que a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido e assim a ilha britânica (ou Reino Unido) faz divisa com a Irlanda. Dá para entender? Só lendo a frase várias vezes; um mapa à mão facilita a compreensão. Caso único no planeta.
Na Escócia 62% dos eleitores votaram a favor da permanência na União Europeia e, com calma, aguarda o desfecho final em Londres. No Gibraltar, aberração geográfica no flanco sul da Europa criada no século 18, são 96% dos eleitores que preferem permanecer na União Europeia. A Irlanda do Norte poderá unir-se a Irlanda. Um auto-esfacelamento da Grã-Bretanha vislumbra-se no horizonte.
O acordo elaborado por Theresa May com Bruxelas, um calhamaço de 540 páginas, continua sendo refutado pelo Parlamento. Por outro lado, o Parlamento rejeita igualmente um Brexit sem acordo e, ao mesmo tempo, os “brexiteers” recusam um segundo plebiscito, pois sabem que a população (como o a do resto da Europa) fartou-se com as intermináveis discussões. A opinião pública mudou e um novo resultado das urnas não mais lhes seria favorável.
É provável que Theresa “Indestructible” May ainda tenha alguns trunfos em mão. Um deles poderia ser pedir a devolução da carta de separação da Grã-Bretanha entregue em Bruxelas. Seria um exit do Brexit. Neste caso, valeria a pergunta: quem é que paga pelo estrago feito?… e quem é que ajuda a recuperar a imagem dos britânicos cujo “House of Commons” é visto como “Chaos of Commons”?