Opção cultural

Encontramos 5074 resultados
WhatsApp Image 2025-11-27 at 12.47.07
CULTURA
“O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório: o avesso de uma nação — breve ensaio

No encontro do “Clube do Livro da UBE”, de 27 de novembro de 2025, sob a direção do Presidente, professor Ademir Luiz, a discussão de O Avesso da Pele demonstrará o quanto esse romance continua atual e necessário. Na qualidade de articulista e como pesquisador que estudou a obra no âmbito da disciplina Direito e Linguagem no IDP — elaboramos uma resenha crítica à guisa de leitura complementar — sinto-me compelido a oferecer uma análise mais densa: não apenas da narrativa, mas das tensões entre literatura, memória, racismo estrutural e o papel formativo da linguagem.

Publicado em 2020 e laureado com o Prêmio Jabuti de 2021, O Avesso da Pele narra a trajetória de uma família negra em Porto Alegre, pelo olhar de Pedro — narrador e filho de Henrique (professor) — que tenta reconstruir a vida do pai após seu assassinato numa abordagem policial. A narrativa se faz por meio de memórias, lacunas, objetos, relatos de conviventes — ao mesmo tempo que atravessa o luto, a negritude, as fraturas existenciais e os traumas que marcam não apenas uma pessoa, mas uma herança para gerações. A narrativa é estruturada de modo inusitado e potente: a voz narrativa, muitas vezes em segunda pessoa, convoca o leitor a habitar o lugar do pai — Henrique — ou a mergulhar no avesso da pele, essa parte invisível da identidade, atravessada pela história e pelo preconceito.

Embora o luto e a relação familiar — pai/filho — sejam eixos centrais, o livro denuncia com clareza a persistência do racismo estrutural no Brasil contemporâneo. A desconfiança às pessoas negras, o medo da autoridade policial, a objetificação dos corpos negros — todos esses elementos permeiam a trama como aspectos cotidianos da negritude. A figura de Henrique, professor de escola pública, também denuncia o colapso do sistema educacional e a dureza de ensinar em espaços marcados pela desigualdade, pobreza, racismo e descaso institucional. Mais do que expor o sofrimento, Tenório (via Pedro) aponta a literatura, a memória e o afeto como ferramentas de resistência. A reconstrução da trajetória paterna é também um esforço de ressignificar a negritude — não apenas como marca de dor, mas como herança identitária e de ancestralidade.

A força de O Avesso da Pele não está apenas no que é narrado, mas em como: há momentos em que o autor confere à linguagem uma dimensão poética, intensa, capaz de traduzir o trauma, o sentimento de perda, a busca por presença e a dor existencial. Por exemplo: “Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. … Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir.” Esse fragmento revela a ambivalência entre ausência e presença, perda e memória, dor e redenção — elementos que fazem da obra muito mais do que denúncia: fazem dela um lamento e uma esperança coletiva.

Na resenha, agora articulada, percebi que a escolha narrativa — fragmentada, carregada de memórias, lacunas, silêncio — é uma estratégia estética coerente com a temática: reconstruir o pai é também reconstruir uma identidade marcada por silêncios, apagamentos e violência. A linguagem poética e disforme dialoga com as fissuras da história. Além disso, a obra revela o risco de reduzir sujeitos negros a estereótipos, violência, criminalidade — algo que a sociedade frequentemente naturaliza, mas que a literatura de Tenório escancara em sua brutalidade e persistência. Por outro lado, a aposta na afetividade — na memória, no amor, no luto — não cai numa sentimentalidade vazia: ela articula uma crítica social que pede não só empatia individual, mas transformações estruturais — na educação, na memória nacional, na consciência racial.

Desde sua publicação, O Avesso da Pele alcançou destaque: além do Prêmio Jabuti, foi finalista de premiações importantes. Contudo, a obra foi alvo de controvérsias: em 2024, entrou na mira de setores conservadores que alegaram haver “linguagem inadequada” e cenas sexualizadas — o que levou, em alguns estados, à retirada do livro do ambiente escolar. Esse episódio revela que o incômodo provocado não está na suposta “vulgaridade” da linguagem ou da sexualidade, mas no desconforto que a literatura causa ao expor a violência racial, estrutural — aquilo que muitos prefeririam manter invisível. Como observa o autor: “é curioso como palavras de baixo calão e atos sexuais causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras.”

Reconhece-se em O Avesso da Pele um instrumento poderoso de reflexão sobre a negritude, a violência institucional e a memória histórica brasileira. A obra é um apelo humano, um convite à empatia, um alerta. Para o campo jurídico e social, o romance põe em cena a urgência da visibilidade: das vítimas, das suas histórias, dos corpos e das memórias que o Estado — direta ou indireta — tem apagado. No contexto de debates sobre violência policial, racismo estrutural e direitos humanos, o livro funciona como um documento literário e moral. Para a linguagem, a obra demonstra que o português — essa língua nacional marcada por heranças coloniais — pode se tornar veículo de reparação simbólica, de denúncia, de memória. A segunda pessoa do narrador, a fragmentação temporal e o luto expressado em linguagem intensa e poética tornam a leitura um ato de reconstrução identitária. Para a memória social, o romance contribui para desfazer o mito da “democracia racial” e expõe a persistência das feridas abertas no corpo da nação — feridas que muitas vezes se chamam “cor da pele”.

Em um Brasil que constantemente tenta apagar ou minimizar a dor de sua população negra — seja por meio da negação, seja por omissão institucional — O Avesso da Pele surge como um grito literário: dolorido, urgente, necessário. A obra não é mero exercício ficcional ou memorialismo íntimo. Ela é um testemunho, um legado e uma convocação. Para lembrar, para sentir, para resistir. Para fazer com que o “avesso” deixe de ser escondido — e se torne visível, reconhecido, reconhecível. Talvez essa seja a mais profunda função da literatura: dar voz aos silenciados; transformar feridas em memória coletiva; e, sobretudo, nos obrigar a encarar o avesso da pele — e, com ele, o avesso da história.

WhatsApp Image 2025-11-26 at 01.14.00
RELIGIÃO
Spinoza, Kardec e a Natureza de Deus: a fronteira entre Panteísmo e Panenteísmo e a visão da cosmologia moderna

É fundamental ressaltar que os dados que sustentam a existência da matéria escura e da energia escura têm fontes reais e são baseados em rigorosas observações astronômicas e cosmológicas

WhatsApp Image 2025-11-25 at 13.08.09
LIVROS
Ideias para adiar o fim do mundo

O caminho para "adiar o fim do mundo" – tanto o ecológico quanto o psíquico – passa, necessariamente, por restaurar a qualidade de nossos vínculos

WhatsApp Image 2025-11-25 at 09.21.18
CULTURA
Bienal de Música Brasileira Contemporânea: 50 anos de futuro

Bienal de Música Brasileira Contemporânea é um deles. Criada em 1975 por Edino Krieger e Myrian Dauelsberg, ela chega em 2025 à sua 26ª edição e celebra 50 anos ininterruptos de existência

WhatsApp Image 2025-11-21 at 17.08.00
Literatura
A poesia oculta do Cerrado: “Na Terra dos Mãe-da-Lua” e o legado do prof. Altair Sales Barbosa

Lançamento desta obra será realizado pelo Instituto Altair Sales e pelo Centro Universitário Araguaia (UniAraguaia) no dia 28 de novembro, no IHGG

meu-bolo-favorito-foto-hamid-janipour
Crítica
Delicado e marcante, iraniano ‘Meu Bolo Favorito’ reencontra a doçura da vida em meio à escuridão

Dirigido por Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, filme mostra de forma doce e singela o poder da busca pelo amor contra as adversidades da vida. Uma obra para se aplaudir de pé

Gabriela Ariza Naves Foto Divulgação 867
LITERATURA
Livro de Gabriela Ariza se inscreve na linhagem dos textos que tratam o imaginário como método

A narrativa, em primeira pessoa, adensa-se gradualmente: começa como memória sensorial da infância — sombras, medos, o céu antes de dormir — e avança em direção a um pensamento mais analítico

Violência contra as mulheres 78833
Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Leonardo Teixeira (13)

A casa ficou. Branca por fora, vazia por dentro. Uma carcaça que já não engole pássaros, mas sussurra histórias de fuga pelas frestas

Dostoiévski foto grande 866
LITERATURA
O Grande Inquisidor, de Dostoiévski: liberdade, poder e o drama da condição humana

O Grande Inquisidor se coloca entre os textos mais extraordinários da literatura mundial. Não apenas porque revela a genialidade de Dostoiévski, e sim porque continua a nos interpelar

Julio Cortázar 555 Foto Reprodução
7 poemas de Julio Cortázar em tradução de Roberson Guimarães

As traduções de Roberson Guimarães capturam, com precisão milimétrica, o ritmo — a musicalidade — da poesia de Cortázar. Percebe-se, de cara, a perícia

Tigela grande 1
CONTOS
Faleceu a tigela!

Deixar de lado expressões de significado preciso para nós, falantes da língua portuguesa, e substituí-las por estrangeirismos pernósticos, é incompreensível para mim

WhatsApp Image 2025-11-21 at 06.46.13
Sempre vêm outras moscas no lugar das exterminadas

Quando o Estado passa a medir sua eficiência pelo total de mortos produzidos por seu aparato policial, a própria fronteira moral é lançada à lata de lixo

space-4984262_1280
CRÔNICA
Uma Viagem no Silêncio do Espaço

Ver a Terra de fora é testemunhar uma ironia cósmica. Enquanto aqui discutimos fronteiras com a mesma obstinação de quem desenha linhas na areia, lá de cima elas não existem.

maior parte das propostas, com 11 menções, refere-se e a instituições de ensino e visam estabelecer a obrigatoriedade do estudo da Bíblia na grade curricular escolar
Noites Brancas: a eterna melancolia de um sonhador em São Petersburgo

Protagonista da obra, o "Sonhador", é a perfeita alegoria da alma que prefere a segurança estéril da fantasia à incerteza vital da realidade

WhatsApp Image 2025-11-18 at 14.49.26
ERUDITO
Francisco Mignone: quando o piano se torna a memória viva do Brasil

Cada vez que sua música volta à cena, algo em nós se reergue, como se recordasse, com certa surpresa, que há uma brasilidade possível, erudita, refinada e, ao mesmo tempo, absolutamente nossa