Opção cultural
Evento, que reconhece anualmente personalidades de destaque na cena cultural goiana, acontecerá às 9h no Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG)
O documento apresenta estratégias de integração e aperfeiçoamento para o fortalecimento dos Institutos Históricos estaduais
Festival goiano reconhece 42 produções nacionais e internacionais
Entre os destaques inéditos estão “Le Assaggiatrici (As Provadoras de Hitler)”, de Silvio Soldini, e “L’Abbaglio (A Ilusão)”, de Roberto Andò; além de clássicos como “Ladri di Biciclette”
Dom Pedro II atravessou o sertão a cavalo, dormiu em casas de palha, como em Paulo Afonso e nas regiões inóspitas do Nordeste, e esteve junto às tropas brasileiras nos campos da Guerra do Paraguai
O monumento de pedras está localizado na Inglaterra, data da Idade da Pedra e até hoje intriga visitantes, historiadores e cientistas
O canto da mulher sem nome
Daniana Freitas
Todos os dias, eu subia a ladeira úmida da vila, para vender os quitutes que vó fazia e eu levava no surrão. O ano, 1966, 1976, ou 1986, não importa. O que me lembro, tão nítido quanto o dia claro de hoje, o som dos pássaros que acabei de ouvir ou o frescor do vento que senti agora, era dela. A mulher sem nome, que bailava na janela daquele apartamento, no alto do único prédio que existia nas redondezas.
Ali viviam os grã-finos, os bacanas, eu sempre quis entrar lá. Por isso, dava um jeito de passar perto, para olhar, apreciar, sonhar viver em um lugar tão bonito. Aquele edifício era uma antiga novidade, bem distante do barraco quente em que vivia, onde a vida continuava às custas de maços de vela e querosene queimando em latas de óleo.
E ela sempre aparecia na enorme janela, saltando como uma bailarina nas pontas, pulando de um lado a outro – eu via tudo, de longe. Parecia uma fada, colombina, Ceci, era nuvem de calor nos meus amargos secos dias. Ela deveria, de fato, ter uma vida calma, orgulhosa, completa. Podia dançar livremente, tocar o céu com sua leveza, se esticar na janela e abanar os braços como quem se rodopia num palco aberto, o palco do mundo.

Sim, era um palco. Eu, menino calado, fedendo a chulé e dente podre, não sabia para quantos mais ela se apresentava. No fundo, eu imaginava que fosse somente para mim, e era reconfortante pensar que aquela mulher me via também, parado, observando sua facilidade, felicidade, sua exibição diária de leveza e ternura, seus gestos e movimentos cadenciados que brilhavam sobre mim como estrelas de Davi...
Fingindo desinteresse, eu continuava meu caminho, depois que ela se cansava de dançar e fechava as janelas. Na verdade, quem fechava era um homem - talvez seu namorado, que, enciumado pela ‘plateia’ que apreciava e desejava sua vida e sua amada, encerrava o espetáculo bruscamente. Eu o vaiava em silêncio, fazia de conta que ia tacar pedra, dava pirueta invisível; desconfio que era para amenizar a frustração de ter que esperar até amanhã, para vê-la novamente. Todos os dias, eu devia esperar até amanhã.
Um dia, ela começou a cantar. Me rendi à emoção de ouvir o som de sua voz, pela primeira vez, e me ensurdeci para o resto. O barulho que saía de si preenchia toda a minha cabeça, e eu apenas contemplava, extasiado com o abalo de seus braços, de seus pulos, que agora também eram incitados pelo melodioso canto da sereia. O palco lá em cima, e eu cá embaixo – à época, não descreveria esse momento como nada menos que singular. Era uma percepção de unidade, plenitude, retidão. Uma ópera. Arte total. Theatro Mvnicipal (li assim uma vez).

Sonhei com ela por muitas noites. Uma coisa tinha certeza: eu iria me casar com aquele anjo. Trabalharia em dois ou três turnos, vendendo doce, engraxando sapato, entregando jornal, o que pintasse. Daria a ela uma vida de rainha, em um castelo maior que aquele prédio, bem maior, muito maior! Eu precisava bolar um plano: talvez em cinco, ou dez anos, já poderíamos ser felizes juntos. Enfim, bastasse que eu crescesse, trabalhasse muito, e tratasse essas minudências com minha querida, quando fosse certa a oportunidade.
E amanhã eu trouxe a flor. Era perfeita; roubei de um jardim bonito, no caminho para o prédio. Na banca do seu Zé Mathias, vi à frente da magazine, um homem ajoelhado entregando uma rosa para uma donzela, e ela sorria maravilhada. Então, era essa a sensação de amar alguém! Uma flor representava o respeito, a dedicação, o fascínio em conviver com a minha sereia de doce canto. Eu não tinha experiências sobre o deslindado amor, mas compreendi sozinho - através daquela capa de revista - que devíamos florescer, perfumar e observar a quem desejávamos o bem.
Apanhei a mais bonita, sem nenhuma pétala enrugada ou folha enferrujada, jamais. Enferrujados já bastavam meus dentes, que um dia eu consertaria para beijá-la, claro. Também esfreguei os pés na bacia; a vó fez sabão de bola e o cheiro era ruim, mas o pé era pior. Escovei a brilhantina no cabelo, a calça pega-marreco por crescimento do dono, limpei as unhas com a ponta da faca. Finalmente estava pronto, com a flor na mão, para entregar à mulher dos meus sonhos, aquela que bailava em um palco perto do céu. Preparei também uns docinhos, ela ia gostar de adoçar a vida com o meu carinho.
Corri chorando, e me joguei no córrego poluído da vila. Quis me afogar naquele pântano asqueroso, aspirar a lama e me deixar levar para o fundo. Alguém me puxou pelo braço e os cabelos, para que eu não morresse, onde esse menino estava com a cabeça?!
Não falei por uma semana, com ninguém. Até hoje, não souberam o que me deu aquele dia, em que voltei desesperado da rua. A vó deu um salto de susto, quando larguei o bornal com doces pelo chão, o espinho da rosa espetado na mão sangrante, coração saltando no peito e me joguei no córrego. Gritei, gente em cima de mim, tentando me acalmar; minha boca se abria numa dor dolorida, de assombro, de medo, dor de menino homem que não sabe o que fazer. Tudo em mim sacudia, arranhei o rosto com as mãos e espinhos de sangue, para apagar dos olhos a imagem da mulher dos meus sonhos, caída no chão à beira do prédio - tristeza saindo de sua boca, nariz, ouvido, um rosto que já não era rosto. Estranhos confabulando, lastimando, sequer sabiam o seu nome. Ela pulou, disseram. Tão nova.
E hoje, muito tempo se passou. Sei que ela sucumbiu ao medo e ao desgosto de sobreviver naquele maldito prédio, sob a mão covarde que lhe apagava a face no vexame da própria vida; sob a mão covarde que lhe cominava castigo sem sequer um dolo versado. Sua dança não era encanto. Seu canto... não era ópera. Pela janela rogou ajuda, inúmeras e diversas e centenas de vezes, todos os dias. O único que a viu fora um garoto de faltos anos, que a amava sem dizer. E ela nunca soube.
Sua última dança aconteceu no ar, quando se lançou pela janela; uma lágrima escorrida de seu olho esquerdo restou-lhe como única companhia, no fatídico ato. Encerrou assim o espetáculo estúpido que fora sua vida infeliz, onde a beleza dos dias lhe foi tirada, em sua existência ingrata, rainha sem coroa, nem tudo, nem nada.
Comprei o apartamento, nele convivo com a solidão e uma flor, que todos os dias eu trago para ela.
Que ela tivesse paz, naquela época. Descobri seu nome, era Maria.
Penso nas minhas amadas pessoas que repousam em suas arcas eternas, enquanto eu, tecelã de fuso nas mãos, continuo urdindo os fios do novelo das minhas alfaias, olhando estranhos que passam pelas ruas
Nova obra de Aristóteles Drummond reúne artigos publicados em Portugal sobre as relações entre os dois países nos últimos 200 anos. Ele critica pesquisador brasileiro que estuda o sistema escravagista
A angústia apertou o coração de Celestina ao pensar naqueles que não teriam a chance de ver reparada as injustiças. Uma injustiça sem cabimento — como são todas elas, ainda mais em razão da cor da pele
Durante séculos, o temor da morte e do castigo sustentou a ideia do inferno como instrumento de controle espiritual e moral
Ecoava em minha mente a voz da palestrante: “o altruísmo não existe” ... repetidas vezes. Será? Não seria simplesmente desacreditar em uma palavra por não acreditar. Não fazia sentido eliminar um termo tão antigo
O dia 26 de outubro representa uma festa na música brasileira. Festa para um rei negro já entronizado na dimensão do infinito. Milton Nascimento completa 83 anos, se é que o tempo ainda se aplica a quem vive em outra frequência. Talvez Bituca, como é carinhosamente chamado pelos amigos, nem perceba a data com exatidão, imerso no universo silencioso em que as mentes vão se desligando do mundo racional. Mas cada ano de Milton no plano terreno é motivo de celebração, no Brasil e onde quer que sua voz tenha chegado.

Quando o país descobriu Milton, no palco de um festival em 1967, algo mudou para sempre. A música popular brasileira ganhou novos contornos, e o Brasil ganhou uma nova alma sonora. Bituca trouxe consigo um mundo: os trens de Minas transportando melodias impregnadas do lamento africano, do grito latino pela liberdade, do improviso do jazz, da harmonia da bossa nova e da solenidade barroca das igrejas mineiras. Tudo convivendo num mesmo sopro, numa mesma melodia.
A música de Milton é o Brasil visto de dentro. Uma travessia entre o sagrado e o cotidiano, entre o chão vermelho das Geraes e o infinito das estrelas. Sua voz, aguda, terna e andrógina é um instrumento em si, uma espécie de oráculo sonoro que parece vir de outro plano. Poucos artistas no mundo alcançaram essa comunhão entre o humano e o transcendente.

Milton cantou com todos e para todos. Dividiu a cena com gigantes como: Elis Regina, Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, mas seu território musical sempre foi intransponível. É uma geografia própria, de montanhas e nuvens, habitada por irmãos de fé: Fernando Brant, Márcio Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, Lô Borges e Toninho Horta. Juntos, criaram o Clube da Esquina, um dos momentos mais luminosos da história da MPB, um manifesto poético sobre amizade, liberdade e pertencimento.
Hoje, quando o corpo já se curva ao peso do tempo e da doença, o espírito de Milton continua erguido em cada acorde de Travessia, em cada grito de Maria, Maria, em cada saudade de Cais. Ele se despediu dos palcos em 2022, diante de uma multidão emocionada no Mineirão, como quem encerra um ciclo e retorna à sua montanha interior. Mas o silêncio que se segue à sua voz não é vazio, é ressonância.
Milton Nascimento é a prova de que a música não se mede por notas, mas por presenças. A dele é uma das mais intensas que já habitaram a história do Brasil. Aos 83 anos, Milton Nascimento é memória viva de um país que ainda se descobre no espelho da própria canção.
E enquanto houver alguém que ouça “Canção da América” e sinta vontade de abraçar um amigo, Milton continuará existindo, não apenas como artista, mas como verbo: o verbo sentir.
Sugiro ouvir “Cais” é uma das obras mais simbólicas da estética de Milton. É uma canção que parece nascer do silêncio, um convite à escuta interior. A harmonia se move em ondas suaves, com acordes suspensos e transições inesperadas que sugerem a ideia de partida, travessia e retorno, temas recorrentes em sua obra.
Fique atento! Milton canta como quem medita. O timbre etéreo e o controle do vibrato criam uma sensação de transcendência; há um lirismo quase litúrgico. Observe os acordes abertos e as resoluções sutis, eles não buscam o repouso tonal tradicional, mas um equilíbrio flutuante, que espelha o sentido da palavra “cais”: o lugar entre terra e mar, segurança e viagem. O piano dialoga com o baixo e a bateria em textura mínima, mas profundamente expressiva. Cada nota tem peso emocional.
“Para quem quer se soltar, invento o cais...”
O verso inaugural já define a canção como metáfora da liberdade, do recomeço e do acolhimento. E quando ele canta, parece falar de todos nós: dos que partem, dos que ficam, dos que buscam um porto onde repousar a alma. Porque Milton não canta apenas notas: ele acende luzes. E cada vez que sua voz for ouvida, o Brasil se reencontra consigo mesmo, mais sensível, mais humano, mais inteiro.
Ouça “Cais” e deixe que a música de Milton te devolva o que o tempo não conseguiu levar.
Em poesia, venceu “Trapezista Sobre Cama de Faquir”; em prosa, ganhou “Negrinho”, de José Reinaldo Felipe Martins Filho
A cidade ficou cheia de buracos e toda destruída como se tivesse enfrentado uma grande tempestade. As pessoas pareciam tatus dentro dos buracos. Porém nenhuma alma viva restou para contar a verdadeira história
