Por Gyovana Carneiro
Há algo de profundamente simbólico em ver uma ópera nascer em Belém, às margens do maior rio do planeta. Enquanto o mundo se reúne na COP-30 para discutir o futuro da Terra, o Theatro da Paz abre suas portas para uma criação que é mais que espetáculo, é um rito de conciliação entre arte e natureza.

Baseada no poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, a nova ópera de Gilberto Gil, Aldo Brizzi e Paulo Coelho, intitulada I-Juca Pirama, Aquele que deve morrer, traz à cena um guerreiro tupi que canta diante da morte e um Brasil que tenta cantar diante do colapso ambiental. No palco, a voz do povo Huni kuin se une ao Coro Carlos Gomes e à Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, sob a regência do maestro e compositor italiano Brizzi.
O libreto de Coelho alterna tempos, o do mito e o da modernidade, fundindo o ritual indígena e a tragédia contemporânea: uma jornalista entrevista um “Juca” moderno entre cinzas e fumaça, e o que era canto de morte transforma-se em hino de resistência.

Antes da ópera, Gil surge em vídeo gravado na Amazônia, ao lado de Paulo Coelho, que encarna Gonçalves Dias como “Espírito da Terra”. A música composta em parceria com Brizzi é uma fusão de elementos afro-brasileiros, indígenas e eruditos.
A direção cênica busca a harmonia entre tradição e futuro: os figurinos, criados por Bu’ú Kennedy, artista Tukano do Alto Rio Negro, utilizam fibras naturais e pigmentos ancestrais; a renda da estreia será revertida em apoio às comunidades indígenas da Vila Dom Bosco, no Alto Rio Tiquié. Brizzi afirma:
É uma ópera popular no verdadeiro sentido da palavra,uma ópera para o tempo presente.
A ópera teve sua estreia em 10 de novembro de 2025, encerrando o XXIV Festival de Ópera do Theatro da Paz. Em cena, Jean William (I-Juca), Graça Reis, Irma Ferreira, Milla Franco e Josehr Santos conduziram o público por 75 minutos de música e mito, entre o som dos instrumentos e o rumor da floresta.
No poema de Gonçalves Dias, o velho Timbira termina dizendo: “Meninos, eu vi.”
E talvez nós também possamos dizer sobre uma arte que ainda ousa cantar diante da destruição, que escutamos, que revoluciona ao som de uma floresta que não se cala: “Meninos, eu vi.”
Para compreender a linguagem híbrida dessa nova criação, vamos recordar outra ópera de Gil & Brizzi, estreada em 2024 na Sala São Paulo: Amor Azul. Ali, Gilberto Gil interpreta Jayadeva/Vishnu, ao lado da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo e do Coro Acadêmico da OSESP, sob regência de Brizzi. A obra propõe o encontro entre o canto popular e o canto lírico, entre os ritmos afro-brasileiros e o misticismo indiano, um diálogo entre a pulsação da Bahia e o sopro do Oriente.
No vídeo abaixo, fique atento ao eixo espiritual da obra: os timbres orquestrais, transparentes que envolvem a voz de Gil com uma aura meditativa; a percussão marca o chão brasileiro, enquanto os modos hindustânicos abrem um espaço de suspensão do tempo. Observe como a voz de Gil se move com naturalidade sobre o tecido sinfônico, não há contraste, mas convivência. A música cresce em ondas, com coros que lembram mantras e cordas que respiram como vento tropical. É o mesmo gesto estético que agora se renova em I-Juca Pirama: a fusão entre o popular e o sagrado, o erudito e o ancestral.
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Nascido Salomão Borges Filho, em 10 de janeiro de 1952, Lô era o sexto de 11 irmãos
O dia 26 de outubro representa uma festa na música brasileira. Festa para um rei negro já entronizado na dimensão do infinito. Milton Nascimento completa 83 anos, se é que o tempo ainda se aplica a quem vive em outra frequência. Talvez Bituca, como é carinhosamente chamado pelos amigos, nem perceba a data com exatidão, imerso no universo silencioso em que as mentes vão se desligando do mundo racional. Mas cada ano de Milton no plano terreno é motivo de celebração, no Brasil e onde quer que sua voz tenha chegado.

Quando o país descobriu Milton, no palco de um festival em 1967, algo mudou para sempre. A música popular brasileira ganhou novos contornos, e o Brasil ganhou uma nova alma sonora. Bituca trouxe consigo um mundo: os trens de Minas transportando melodias impregnadas do lamento africano, do grito latino pela liberdade, do improviso do jazz, da harmonia da bossa nova e da solenidade barroca das igrejas mineiras. Tudo convivendo num mesmo sopro, numa mesma melodia.
A música de Milton é o Brasil visto de dentro. Uma travessia entre o sagrado e o cotidiano, entre o chão vermelho das Geraes e o infinito das estrelas. Sua voz, aguda, terna e andrógina é um instrumento em si, uma espécie de oráculo sonoro que parece vir de outro plano. Poucos artistas no mundo alcançaram essa comunhão entre o humano e o transcendente.

Milton cantou com todos e para todos. Dividiu a cena com gigantes como: Elis Regina, Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, mas seu território musical sempre foi intransponível. É uma geografia própria, de montanhas e nuvens, habitada por irmãos de fé: Fernando Brant, Márcio Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, Lô Borges e Toninho Horta. Juntos, criaram o Clube da Esquina, um dos momentos mais luminosos da história da MPB, um manifesto poético sobre amizade, liberdade e pertencimento.
Hoje, quando o corpo já se curva ao peso do tempo e da doença, o espírito de Milton continua erguido em cada acorde de Travessia, em cada grito de Maria, Maria, em cada saudade de Cais. Ele se despediu dos palcos em 2022, diante de uma multidão emocionada no Mineirão, como quem encerra um ciclo e retorna à sua montanha interior. Mas o silêncio que se segue à sua voz não é vazio, é ressonância.
Milton Nascimento é a prova de que a música não se mede por notas, mas por presenças. A dele é uma das mais intensas que já habitaram a história do Brasil. Aos 83 anos, Milton Nascimento é memória viva de um país que ainda se descobre no espelho da própria canção.
E enquanto houver alguém que ouça “Canção da América” e sinta vontade de abraçar um amigo, Milton continuará existindo, não apenas como artista, mas como verbo: o verbo sentir.
Sugiro ouvir “Cais” é uma das obras mais simbólicas da estética de Milton. É uma canção que parece nascer do silêncio, um convite à escuta interior. A harmonia se move em ondas suaves, com acordes suspensos e transições inesperadas que sugerem a ideia de partida, travessia e retorno, temas recorrentes em sua obra.
Fique atento! Milton canta como quem medita. O timbre etéreo e o controle do vibrato criam uma sensação de transcendência; há um lirismo quase litúrgico. Observe os acordes abertos e as resoluções sutis, eles não buscam o repouso tonal tradicional, mas um equilíbrio flutuante, que espelha o sentido da palavra “cais”: o lugar entre terra e mar, segurança e viagem. O piano dialoga com o baixo e a bateria em textura mínima, mas profundamente expressiva. Cada nota tem peso emocional.
“Para quem quer se soltar, invento o cais...”
O verso inaugural já define a canção como metáfora da liberdade, do recomeço e do acolhimento. E quando ele canta, parece falar de todos nós: dos que partem, dos que ficam, dos que buscam um porto onde repousar a alma. Porque Milton não canta apenas notas: ele acende luzes. E cada vez que sua voz for ouvida, o Brasil se reencontra consigo mesmo, mais sensível, mais humano, mais inteiro.
Ouça “Cais” e deixe que a música de Milton te devolva o que o tempo não conseguiu levar.
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