Performatividade: o Direito é a clausura da linguagem, subjetivação e emancipação do sujeito
12 dezembro 2025 às 14h45

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A frase de Rita Segato — “o Direito é a clausura da linguagem” — ilumina como, no Brasil, a palavra estatal cria realidades, define sujeitos e molda o campo do possível. Ao concluir o semestre acadêmico, a disciplina Direito e Linguagem exigiu a elaboração de pequeno ensaio, onde aprendi que no sistema jurídico brasileiro, leis, portarias, sentenças e pareceres não apenas descrevem fatos: eles fazem coisas no mundo, produzindo efeitos concretos sobre vidas individuais e coletivas.
É nesse sentido que as teorias de J. L. Austin, Judith Butler, Anna Maria Becker Maciel e Camilla de Magalhães Gomes se mostram especialmente férteis para compreender a política jurídica brasileira contemporânea — e aqui é possível, também, convocar clássicos como Durkheim, para quem a norma é força social produtora de coesão; Weber, ao tratar da legitimidade racional-legal; e Foucault, ao revelar o entrelaçamento entre discurso e poder disciplinar. A psicologia social de Goffman, com sua teoria do “estigma” e da “apresentação do eu”, também dialoga de maneira direta com a forma como o Estado interpele sujeitos.
Austin demonstrou que certos enunciados são ações: ao serem proferidos, realizam seus próprios efeitos. No Brasil, a força performativa da palavra jurídica aparece, por exemplo, quando o Judiciário determina: “está desapropriado”, “está homologado”, “está preso”. Essas frases não relatam eventos: elas os criam. A teoria de Maciel aprofunda essa compreensão ao explicar que os termos jurídicos atuam dentro de uma estrutura deôntica capaz de organizar direitos, deveres e obrigações. Assim, expressões como “proprietário”, “servidão”, “improbidade”, “agente público” ou “função essencial à justiça” acionam redes de consequências práticas que configuram comportamentos e relações sociais.
Mas, como lembra Butler, essa força criadora da linguagem jurídica vem acompanhada de um mecanismo de sujeição. Ao nomear, classificar e interpelar indivíduos, o Direito produz sujeitos que só podem existir dentro dos contornos que ele próprio define. Isso se manifesta não apenas em temas de identidade, mas em vários domínios estruturantes da sociedade brasileira.
Um exemplo evidente é o modo como decisões judiciais historicamente interpelaram populações pobres. No caso do Massacre do Carandiru (1992), durante décadas, o vocabulário oficial tratou os presos como “criminosos de alta periculosidade”, “elementos”, “corpos não identificados” — enunciados que não apenas descreviam, mas produziam formas de desumanização que dificultaram a responsabilização estatal. A posterior reversão dessas narrativas na esfera judicial mostra como a linguagem regula vidas e mortes.
Outro exemplo emblemático é a trajetória do reconhecimento jurídico dos povos indígenas no Brasil. A expressão “índio integrado” — usada durante o regime militar — operou performativamente para produzir sujeitos que deveriam abdicar de sua cultura e se adequar ao modelo nacional hegemônico. Com a Constituição de 1988, a palavra “povos indígenas”, em vez de “índios”, inaugurou outro regime de subjetivação, reconhecendo o direito à diferença, à terra e à autodeterminação. A palavra transformou o mundo, alterando radicalmente o lugar jurídico dessas comunidades.
Também nas disputas agrárias vemos a performatividade estatal em ação. No caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (2009), o Supremo Tribunal Federal, ao afirmar a tese do “marco temporal”, não apenas interpretou a Constituição: produziu consequências reais sobre a existência de comunidades inteiras. Já a decisão de 2023, que rejeitou o marco temporal, operou outro tipo de performativo — um que amplia, em vez de restringir, as condições de vida e reconhecimento desses povos.
O mesmo ocorre no campo da política urbana. A regularização fundiária de ocupações históricas, como na Comunidade Quilombola do Rio dos Macacos (BA), mostra como a palavra jurídica, ao reconhecer um território, produz a própria materialidade desse território. Antes do reconhecimento, tratava-se de “invasores”; depois do decreto e da sentença, tratam-se de “quilombolas” com direitos territoriais. O termo jurídico institui o sujeito e reorganiza o espaço social.
Esses casos ilustram o paradoxo identificado por Butler: para existir juridicamente, o sujeito precisa se submeter às normas que o constituem. A sujeição é simultaneamente condição de possibilidade e de limitação. Indivíduos e grupos só são visíveis ao Estado quando cabem nas categorias que ele oferece. Mas essas categorias não são fixas: elas se transformam pela própria ação performativa da linguagem.
É aqui que surgem as possibilidades emancipatórias. A performatividade, por depender da repetição constante de normas, abre brechas para variações, deslocamentos e ressignificações. Assim, decisões inovadoras do Supremo Tribunal Federal, como o reconhecimento dos direitos quilombolas (2003), a reafirmação dos direitos socioambientais (ADPF 760, sobre a Amazônia) e o fortalecimento da autonomia municipal na formulação de políticas de saúde e educação, mostram que cada ato jurídico pode deslocar o sentido das normas, ampliando o campo do “humano” reconhecido pelo Direito.
E aqui cabe enfatizar: o STF tem desempenhado um papel central e admirável na abertura dessas brechas emancipatórias. Casos como:
• ADI 3239 (quilombolas) – em que o STF reafirmou a validade do Decreto 4887/2003 e reconheceu o papel histórico do Estado na reparação de injustiças estruturais;
• ADPF 760 (clima e Amazônia) – decisão pioneira que aproximou o Brasil dos parâmetros internacionais de proteção ambiental, ao declarar a omissão estatal inconstitucional;
• ADPF 347 (estado de coisas inconstitucional no sistema prisional) – em que o STF reconheceu que o sistema prisional brasileiro viola massivamente direitos fundamentais, inovando ao importar e adaptar uma categoria colombiana para o contexto nacional;
• RE 1403512 (rejeição do marco temporal) – firme reposicionamento civilizatório em defesa da dignidade e da sobrevivência física e cultural dos povos originários.
Esses são exemplos concretos de um Supremo que atua como garantidor da Constituição, ampliando, e não restringindo, o espaço do humano reconhecível no Direito brasileiro.
Essas decisões dialogam com a visão de Hannah Arendt, para quem o Direito deve sempre proteger “o direito a ter direitos”; com Kant, que compreende a dignidade como valor absoluto; e com Freud, que identifica no aparelho cultural a formação subjetiva que pode tanto reprimir quanto liberar. Na sociologia, ecoam Weber e Durkheim; na filosofia do poder, aproximam-se de Foucault; na psicologia social, convergem com Goffman e Erving.
Camilla de Magalhães Gomes defende que a tarefa contemporânea do constitucionalismo é expandir os limites do humano. Isso significa, no caso brasileiro, compreender que a luta por direitos é também uma luta pela linguagem: por quem pode ser nomeado, reconhecido e protegido; por quem deixa de ser classificado como descartável, suspeito ou invisível; por quais vidas se tornam politicamente legíveis.
Ao final, o Direito aparece não apenas como clausura, mas como disputa contínua. A palavra estatal pode aprisionar, mas também pode libertar. Ela pode consolidar estruturas de exclusão, mas também pode inaugurar novos horizontes de justiça. No Brasil — onde a linguagem jurídica molda desde a política agrária até a política urbana, passando pela gestão das prisões até a preservação ambiental — compreender sua performatividade é entender o próprio movimento do país.
A emancipação não se dá contra o Direito, mas através dele: pelo modo como reescrevemos suas categorias, reinventamos suas práticas e disputamos seu vocabulário. É na palavra — que condena, reconhece, protege, invisibiliza ou emancipa — que se decide quem somos e quem ainda podemos vir a ser.
Fontes:
• Michel Foucault – História da Sexualidade I
• Émile Durkheim – As Regras do Método Sociológico
• Sigmund Freud – O Ego e o Id
• Hannah Arendt – A Condição Humana
• Zygmunt Bauman – Modernidade Líquida
• Pierre Bourdieu – O Poder Simbólico
• Carl Jung – O Eu e o Inconsciente
• Viktor Frankl – Em Busca de Sentido
• Karl Marx – A Ideologia Alemã
• STF – ADO 26, ADI 4277, ADPF 132, ADI 4275 (decisões oficiais)

