*Fred Le Blue Assis

A estrutura social excludente e concentradora no Brasil pode ser percebida em todas as áreas, sobretudo, no campo da música. Reconhecido na Europa e EUA, o músico brasileiro costuma não ter um tratamento digno em seu próprio país. Apesar de alguns nome da MPB serem objeto de culto de imortalização em vida e ganhar fortunas com direitos autorais, a música comercial costuma ser trabalhada por rádios, gravadoras e formadores de opinião, por meio das revezamentos de modismos de verão que privilegiam esse ou aquele estilo popular regional.

Ao Estado cabe o papel de intervir para fomentar a arte subterrânea, mas por meio políticas culturais, que longe de propiciar a inclusão social, legitima a formação de grupos aristocráticos que monopolizam os recursos das Leis de Fomento.

Com o advento das novas tecnologias e redes sociais, muitos artistas tem conseguido furar a fila da peneira e criar um canal direto com os fãs e ter seus 15 segundos de fama no tik tok, mas, amiúde, por meio de canções rasteiras pouco e edificantes. Haverá justiça para música brasileira ou ela está fadada a ser o paraíso de Reis do Gado como Gusttavo Lima, que comprou uma fazenda  milhionária no Mato Grosso cobrando cachês de pequenas prefeituras no país, que deixam de investir na cultura local para fazer  propaganda oficial com shows de grandes celebrridades?

Direiro Autoral e as Plataformas de Streaming

No tocante a Lei do Direito Autoral de 1998, acredito ser ela incipiente desde o princípio, primeiramente, porque não é seguida em sua integridade. A fiscalização dos direitos de execução pública musical se dá por meio de amostragens e de denúncias, não havendo um rigor técnico no controle de veiculação dos fonogramas em todas as rádios e na reprodução das obras em todos os shows, mormente, nos rincões no Brasil, que tem, apesar disso, a música, como um elemento de primeira necessidade.

O esvaziamento político da CPI do ECAD de 2012, que acabou sendo acusada também de fazer lobby para grandes corporações de comunicação, interessadas em flexibilizar os recolhimento dos direitos autorais, que já são escassos, não diminui o fato de que esse sistema de gestão coletiva por associações representativas de classe precisa ser aprimorado, ainda mais, com a abertura de um novo horizonte de negócio com o mercado digital, em que se ampliam as possibilidades de ganho, mas também de desvios.

Enquantos as plataformas de streaming, como Spotfy, remuneram os novos artistas indiretamente, exigindo que o artista seja mediado por uma agregadora de música, que funciona como uma editora do fonograma, em questão, que fica parte do valor referente aos direitos autorais, os grandes, por vezes, não recebem nada, somente as gravadoras, por não haver um consenso jurídico se os contratos antigos dos discos já gravados, tem validade para o meio digital. Nesse sentido, é bem-vinda a audiência pública convocada pela deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA), tendo como pauta, a proposta de alteração da lei de direitos autorais que não determina o registro dos músicos e arranjadores de uma determinada gravação musical nos cadastros internacionais, impossibilitando o pagamento dos direitos a esses artistas. 


No caso da música, as rádios virtuais parecem ser uma mídia que se disseminou bastante, mas não teve a devida atenção dos órgãos arrecadadores de direitos autorais. Mas são as plataformas de streaming, que, apesar de terem permitido um avanço inédito de visibilidade e distribuição de conteúdo cultural no mundo, tendem ser as grandes vilãs, por causa da baixa remuneração, haja vista, que as legislações sobre direitos autorais em vários países, ainda estão sendo adaptadas para esse novo cenário de digitalização da vida e da música.

Uma primeira forma de readequação para facilitar a vida dos detentores de direitos autorais, seria eliminar a necessidade de intermediários de gestão coletiva e privada na veiculação física (associação de músicos) e digital (agregadoras de música) para receber pagamentos, respectivamente, já que aumentar os valores, por livre iniciativa, eles não irão fazer, quase sempre, preferindo em reduzir sistematicamente.

Os sete gigantões ( Abramus, Amar, Assim, Sbacem, Sicam, Socimpro e UBC) que comandam o ECAD, por escolherem seu presidente, deveriam se restringir a sua atuação como associação consultiva e reivindicatória, deixando os compositores e músicos votarem diretamente também, o que iria permitir maior sintonia entre as demandas da classe com a os gestores, que acabam atuando com corporativismo, em defesa mais das suas associações, que estão, cada vez, mais ricas. Para se ter uma ideia de riqueza dessas entidades, que se confundem com a miséria da maioria dos seus sócios filiados, a UBC, atualmente, tem cacife para atrair para o cargo de CEO, Marcelo Castello Branco, o ex-Presidente da Universal Music Brasil, Cone Sul e Península Ibérica e da EMI Music Brasil / América do Sul e Central.

Apesar da reoxigenação financeira da indústria e mesmo das associações, com o advento do mercado digital, pouco investimento tem sido feito, no sentido de criar um mercado de arte atual mais inclusivo, pautando o cenário com artistas geracionais que não conseguem sobreviver no tempo veloz da internet e das gravadoras, que, cada vez mais, esperam o êxito virtual de um artista, para só assim, assinar contrato.

As associações, com dinheiro em caixa, poderiam lançar novos e esquecidos artistas, a partir de estúdios próprios, mas, no máximo, tem apoiado saudosismos imobilizadores da velha guarda e medalhões da MPB e da indústria, como no caso, do programa Papo com Clê, em parceria com a UBC. 

No caso das obras visuais e sonoras digitais, é preciso que as plataformas de produção de conteúdo audiovisual assuma também o ônus sobre a utilização de obras protegidas, mesmo que incidentais, em filmes e vídeos independentes de seus usuários, que apesar de serem detectáveis e bloqueáveis pela plataforma, não são remuneradas por ela.

Acredito que o Youtube e o Vimeo deveriam ser responsabilizados pelo pagamento dos direitos das obras utilizadas pelos usuários como faz o Spotfy, por exemplo. Um incremento expressivo de receita poderia advir dessa obrigatoriedade, haja vista, que os autores desses vídeos, em sua maioria com pouca visualização, não são acionados judicialmente pelos representantes de determinado autor de obra protegida violada, e seguem sendo exibidos sem remuneração alguma para os mesmos.

ECAD e a desigualdade social dos músicos no Brasil

Os valores recebidos com Direitos Autorais representam uma média pouco fidedigna, por amostragem, dos fonogramas e músicas reproduzidos em escala nacional, em meios físicos e digitais. Se um artista for muito expressivo em uma determinada região e no segmento off-line, por vezes, distantes dos grandes centros urbanos, certamente, o seu sustento será mais a venda “pirata” do seu próprio disco em shows, como ocorre com o tecnobrega em Belém, do que os direitos autorais.

Cabe ressalvar que alguns artistas polêmicos por serem contemporizadores, por vezes, incentivam no meio digital o compartilhamento gratuito ou precificação flexivel de mp3 como o Teatro Mágico e o Radiohead, respectivamente, mas como isca de uma estratégia de marketing cultural de relacionamentos, visando a fidelização de uma base de fãs, ávidos pela tríade shows, merchan e discografia.


A distribuição do ECAD é tão desigual quanto a estrutura social e regional brasileira.
Existe um lobby das associações, sediadas no Sudeste, que dependem da quantidade de artistas e medalhões que ela recruta, para ter poder de barganha para cobrar mais esses ou aqueles grupos de artistas, devidamente representados. Na verdade, o meio musical é o mais sindicalizado de todos, porque para além de protestar e até para receber  sua remuneração mensal devida, ele precisa de intermediários.

Apesar dessa tutela absurda, os benefícios para a categoria não chegam na ponta da linha. Acredito que as tecnologias digitais, permitem hoje criar sistemas de chip musical para que cada fonograma replicado em qualquer mídia digital possa ser rastreável, assim como fazem seguradoras com carros de grande valor aquisitivo. Resta saber se as gravadoras e associações têm interesse em gastar com Inteligência Artificial e Internet das “Canções” para garantir essa verba extra para eles e para os artistas. 

Mesmo que o Ecad funcionasse com 100 por cento de eficácia no controle, arrecadação e distribuição, ainda haveria o problema do jabá que compromete a igualdade de oportunidades de veiculação nas concessionárias de rádio, cujas concessões são públicas. O que, talvez, só pudesse ser corrigido com a obrigatoriedade de lei de cotas de música não comercial e regional na programação de rádio no Brasil.

Política cultural e leis de Incentivo

Apesar de ser contra o foco das políticas culturais serem Fundos de Cultura e Lei de Incentivo Fiscal, quando, na verdade, deveriam ser a criação de um cenário cultural sustentável, por meio da formação e fomento à uma economia criativa, acredito que elas são necessários em alguns casos, mas não como muletas para artistas veteranos que se tornam quase funcionários públicos camuflados.

Contrário a essa tendência, a Lei Aldir Blanc, Paulo Gustavo e Sérgio Mamberti têm permitido pela primeira vez, que os recursos cheguem para artistas de cidades pequenas e grandes periferias, bem como, em alguns Estados, e que a utilização desses recursos, possam ser utilizados para pagamentos de contas pessoais (água, luz, aluguel, telefone e internet). Mas a lógica, no geral e na essência, do fomento cultural ainda é seletiva, incorrendo em muitas injustiças analíticas.

Ao meu ver, não se deve comparar um projeto artístico com outro, o que é diferente de dizer que a crítica de arte não é válida, mas, sim, que não se deve fazer crítica de arte prévia, com base em currículos e clippings. Qualquer arte, compatível com a cultura de paz, ao contrário da maioria das músicas sertanejas atuais, é bem-vinda, em um país, em que há privações ao direito à cultura, sendo a miséria cultural tão grande quanto a alimentícia.

E, quando, são os artistas que passam fome, a situação se torna ainda mais calamitosa, porque eles acabam sendo cooptados pelo populismo clientalista de esquerda ou de direita, que utilizam das políticas culturais como estratégia de barganha e dominação política. Ao meu ver, os editais públicos deveriam ter fluxo contínuo e ser desburocratizados, sem necessidade de tantos documentos cadastrais, assinaturas prévias e planilhas detalhadas.

A prestação de contas deveria ser capciosa somente no sentido de que a entrega do produto cultural ao público escolhido seja realizada, de preferência, sempre sendo documentado nas mídias digitais, para garantir que nem só a elite cultural tenha acesso às obras em auditórios e cinemas, quase sempre inacessíveis para a população de baixa renda.

Existe uma criminalização da arte, quando se supõe que a utilização dos recursos do edital para a sobrevivência do artista é crime, como se artista tivesse que viver de luz. Exigir deles, que arquem com o ônus das contrapartidas sociais dos projetos é também uma distorção que deveria ser revista pelos editais públicos, que partem do pressuposto, de que o Estado faz filantropia ao investir em cultura.

Fazer arte no Brasil já é a própria contrapartida social vitalícia, não havendo nenhum edital que possa superar as adversidades e os preconceitos advindos dessa profissão, eminentemente política, em um país ainda semianalfabeto para temas como a cultura e a educação. Mas, de nada adianta investir em arte, se não houver público.

Por isso, a importância da formação de plateia e leitores, mesmo que os remunerando para ir aos eventos, haja vista, que muitos deles, sobretudo, os gratuitos, apresentam o drama da baixa adesão, talvez, porque muitos grupos de artistas, ilhados em suas estufas de criação purista, custeado pelo Estado perverso, por vezes, perderam a conexão com a realidade social, sendo incapaz de traduzir o inconsciente coletivo do momento histórico vivido. Em um cenário ideal, o aumento da demanda por consumo de arte e criatividade, é que irá criar um mercado de economia criativa produtivo e lucrativo, devendo o Estado atuar como mentor de novas tendências, e salvaguardador de velhos saberes (patrimônio).

Cultura brasileira e o papel da arte na democracia brasileira

A criação de políticas públicas culturais que apontem para a emancipação antipaternalista dos artistas, em relação a suas famílias e ao Estado, pode ser uma estratégia para garantir a liberdade de expressão democrática e que a arte não seja utilizada como propaganda política subliminar. Aportes entre cultura e ciência, visando mudanças de padrões ecológicos-mentais insustentáveis, também podem ser instrumentos para permitir uma maior divulgação cultural e científica capaz de fortalecer ambas os campos de ataques negacionistas e polarizadores, que tendem a associar a arte, mormente, como trincheiras do marxismo cultural.

Os artistas são os seres humanos do presente, que nos conectam com os do passado e do futuro, para, “caminhando e cantando”, apontar para os caminhos já percorridos e  desbravar as trilhas ainda não desbravadas e, por isso, deveriam ser vistos, com base no fetichismo de iluminação sagrada, como sujeitos abnegados e abençoados com dons e, que, por isso, não necessitam de bens materiais e vida biológicas, mas como trabalhadores em prol do ócio criativo alheio, que, necessitam de remuneração justa para que não seja interrompidos seu processos criativos, porque é a evolução criadora da espécie que se perde quando um artista desiste do ofício.

Por meio de documentários etnográficos produzidos com o Movimento ARTEtetura e HUMANismo, tenho tentado conclamar a sociedade e a classe artística goiana e brasileira para importância de pensar o artista e o agente cultural como possíveis planejadores urbanos da cidade de ontem e de hoje através da cultura do amanhã, e, que devem ter assento, inclusive, em todas as Comissões Municipais, Estaduais e Federais de todas as políticas públicas sociais, culturais, esportivas, urbanas, ambientais, sanitárias, tecnológicas e científicas.

Tal proposta promoveria uma inclusão pela porta da frente, em complemento às atuais políticas de descentralização cultural por meio do empoderamento dos territórios expressivos locais através dos Pontões e Pontos de Cultura nas periferias (criado na gestão Min. Gilberto Gil), que, apesar de prementes, e de serem responsáveis pela benéfica revolução na escuta e produção musical brasileira, que o hip-hop, funk e o trap estão fazendo, sem sobrenomes e padrinhos artísticos, tendem, amiúde, a reproduzir o estigmas sociorraciais, porque o enfoque prioritário de determinados estilos musicais, considerados mais genuínos (“nativos”) e politizados para determinada localidade, mas que, sejam passíveis de serem estigmatizados negativamente por membros da elite e por formadores de opinião, podem reforçar preconceitos contra determinados grupos sociais.

O caos global generalizado urbano favorece o surgimento de uma visão humanizada e eclética da cidade e cybercity, capaz de despertar os cidadãos para uma vida ativa convidativa à alteridade antropológica em escalas múltiplas, que permita uma reconquista psicossocial do espaço e da esfera pública através de um imaginário urbano e uma paisagem cultural menos culturalista e localista. Sem prejuízo do pressuposto do lugar de fala e do sentido de pertencimento comunitário, a abertura humana para à transregionalidade e à interterritorialidade artística e espacial, pode favorecer o surgimento de um policentrismo polivalente ecoplanetário, compatível com o panorama alarmante das consequências globais da mudança climática para equilíbrio ecológica e a biodiversidade, inclusive, o que nos faz conceber o correlato contrário da máxima de Tolstói: se queres proteger o local, cante a aldeia global.

Produção cultural e música autoral na Era visual e digital

Após ter sido baterista de bandas como Acid Jam, 062, Nascoxa e Pai do Mato, comecei a gravar minhas músicas autorais. O que no Brasil significa que você terá que, como nos ônibus de Santa Teresa no Rio, motorista e produtor. Quando morei no Rio de 2006 a 2016, era o ápice da crise fonográfica no país, razão pela qual as majors pararam de apostar em novos talentos. Comecei a atuar como produtor cultural em 2009, já na esteira da era visual pós MTV e digital pré instagram, para lançar e divulgar meu primeiro filme musical rockoperístico (“VERNISOUND: FormiGáVWea Mundo Novo”), que contou com a participação da banda SuperCordas e Dr. Silvana.

Em 2021, após término do doutorado em Planejamento Urbano na UFRJ, pude realizar o filme de ópera-rock “LUA & ANA: lunáticas operetas do Vale da Lua para a SuperLua” durante a pandemia, quando fui contemplado com a Lei Aldir Blanc, que foi o primeiro edital que permitiu democratizar, de fato, o acesso à política pública cultural no Brasil, que sempre se pautou por critérios de portfólio de aprovações anteriores em projetos culturais, o que influenciou a lógica dos certames públicos em Goiás que tem apresentado modalidades específicas para artistas estreantes.

Apesar desses avanços importantes, percebo haver ainda uma tendência de especialização nas diferentes linguagens, que dificulta o acesso à fomento por projetos que sejam interartísticos e hipertextuais, com uso de uma ou mais formas de expressão estética, bem como, os que tenham propostas sustentáveis, focados nos territórios locais, como áreas de maior vulnerabilidade socioambiental.

Fred Le Blue Assis é doutor em Planejamento Urbano UFRJ e Pós doutor em Artes pela UFMG