Uma tia nada convencional
16 janeiro 2016 às 16h15

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Conheça a baiana que tem chamado atenção nas redes sociais com seus vídeos divertidos sobre situações não tão divertidas assim…

Sabe aquela amiga que sempre te dá os conselhos certos quando você mais precisa? Aquela que te fala a verdade, acima de tudo, mas sem te magoar? Entende sua dor, só que dá aquele choque de realidade nos momentos mais complicados? Que te estende a mão mesmo distante?
Muita gente tem essa pessoa especial por perto. Muita gente, não. E é justamente pensando nesses “descompreendidos”, que não têm aquele “pessoal” para lhes ajudar nos tempos de “apuro”, que a jornalista baiana Maíra Azevedo criou a Tia Má.
Em vídeos curtos, de dois a três minutos em média, ela trata de assuntos do cotidiano, como relacionamentos, trabalho e até sexo. De dentro do seu carro e com um humor incomparável, Tia Má aconselha seus “sobrinhos” (apelido dado ao público) a, por exemplo, não mexer no celular do parceiro, pagar suas dívidas, parar de querer educar o filho dos outros e aceitar a diversidade.
A personagem tem ganhado grande repercussão nas redes sociais: em menos de dois meses, a página oficial no Facebook já tem quase 30 mil curtidas. Inclusive, Maíra Azevedo foi eleita pelo blog Blogueiras Negras como uma das 25 negras mais influentes da web em 2015.
Em entrevista ao Jornal Opção, a jornalista — com seu sotaque baiano inconfundível — comentou o sucesso da Tia Má e revelou um pouco de sua história. Tudo começou como uma brincadeira de Facebook e acabou virando algo sério. Mas nem tanto. Maíra garante que não ganha, e não tem interesse em ganhar, um real com a página.
A simplicidade dos vídeos, a linguagem popular — com direito a gírias da periferia de Salvador — e temas que abrangem todo o tipo de gente é a fórmula que conquistou fãs pelo Brasil e o mundo.
Confira:
Como nasceu a Tia Má?
Fiz isso de forma espontânea. Eu sou muito bem humorada, vira e mexe minhas amigas me pedem conselhos, pois sou muito prática, acho que a vida é prática. Sempre falo, isso é uma máxima da minha vida, trato as pessoas como gosto de ser tratada.
Assim, eu trabalho no A Tarde [um dos maiores grupos de mídia do Nordeste], também sou assessora de imprensa, me viro. No meu Facebook pessoal, tenho cinco mil amigos, entrevisto muita gente, e aí um dia, um cara que nem conheço, veio me cantar pelo chat. Primeiro, me chamou de morena. Eu sou negona, tenho orgulho de ser preta, sou super bem resolvida com minha raça. Depois disso, escreveu “boniteza”, então eu fiquei super desinteressada e pensei comigo mesma: “Poxa! Quando for ‘queixar’ [dar em cima de, flertar com] alguém, a pessoa tem que pelo menos conhecer o outro. Tenho que escrever sobre isso”. Escrevi a dica da Tia Má no meu Face e meus amigos adoraram, a galera se divertiu e pediu mais.
Continuei fazendo os textos e, um dia, resolvi gravar um vídeo no carro. São temas que todos passamos, aquela “descompreendida” da história que eu conto um dia fui eu. Criei a Tia Má, meu alter-ego, para falar de coisas que aconteceram comigo, como minha própria consciência, e que acontecem com outras pessoas.
Hoje, gravo um vídeo por dia e os temas nunca se repetem, mesmo que tenham histórias semelhantes. Esse meu jeito despreendido vem da minha família, que é super engraçada. Olha, você me desculpa mas eu não sou uma pessoa linear, estou aqui falando de uma coisa e acabo me lembrando de outra (risos).
A história da Tia Má foi algo muito casual, meus amigos começaram a me pedir para criar uma página com as dicas da Tia Má, mas eu nunca quis, eu pensava que não tinha tempo para aquilo e não queria me comprometer com postar sempre. Um dia, um colega aqui do jornal se sentou do meu lado e me fez criar a página. Em um dia foram 500 curtidas. Eu achava que era gente demais.
A personagem tem um jeito muito peculiar, uma linguagem muito divertida.
Sim! Eu uso muito gírias da periferia de Salvador. “Bê”, por exemplo, significa amor, bebê. Mas, só pobre quem usa e o pessoal daqui ridiculariza muito isso. Como eu circulo entre esses dois lados, até pela minha profissão, gosto de usar. As pessoas criticam só porque é da periferia e eu não concordo com isso. Temos que começar a respeitar.
Assim, sempre tive uma vida muito boa, tenho carro, casa própria, me considero de classe média, mas moro em bairro popular. Trabalho para cuidar do meu filho.
Os videos são toscos, gravados do meu celular mesmo, pois não quero perder a naturalidade. Qual o diferencial de gravar no carro? Eu tenho outro timing. A ideia é que seja uma coisa rápida, que seja o tempo que o semáforo ou engarrafamento durar. Eu estudo, gosto de ler, me informar, você sabe como é jornalista.
Você tem filho? É casada?
Tenho um filho de sete anos. Um lindo. E tenho sim um “pessoal”, uma “merenda” (risos). Nós moramos juntos e ele é completamente diferente de mim. Muito calado, na dele, e eu desbocada demais.
Meu filho é muito inteligente, me apoia muito. Foi ele quem me contou que eu era uma “youtuber” [pessoa que grava e compartilha vídeos periodicamente no Youtube]. Ele me dá muitas ideias.
Como surgem os temas para os vídeos?
Esse de olhar o celular do parceiro [vídeo em que Tia Má fala sobre pessoas que mexem no celular do parceiro], eu já vivi isso, eu fui essa descompreendida. A verdade é que na maioria das vezes, quando você começa a desconfiar, já sabe que a relação está terminando, que não está legal. Pegar o celular para olhar é algo que só vai te magoar. Você já sente o que está acontecendo.
Não estou dizendo para aceitar traição. Não é tampar o sol com a peneira, mas resolver a situação. Porque, assim, a gente sabe que muita gente vai lá, mexe, descobre o que não quer e aí? E agora? Me diz o que vai fazer.
Acho que os problemas de relacionamento são os mesmos. Eu falo sobre isso. Não sou uma mulher convencional.
Isso assusta alguns homens?
Sim. Alguns já me falaram que sou “independente demais”. Mas, uma coisa que descobri é que se o cara deixa de ficar comigo porque sou independente ele não merece estar comigo. Não sou única, a maioria das mulheres de hoje estudam mais, tem uma melhor formação, ganham mais, e alguns homens usam isso como argumento para não fixar relacionamento. O que é muito perverso.
Discurso de que mulher assusta porque é independente demais é horrível. Já até tentei disfarçar uma vez com um cara, tentei me conter. Mas, não sei ser discreta. Coisas que as pessoas “esperam”, eu não faço.
Meu namorado agora é muito diferente, nos conhecemos há 5 anos e começamos a namorar há pouco. Ele me respeita muito. É um companheiro. Gosta do meu jeito, sabe que sou sincera.
Sinceridade desde sempre. Eu até procuro segurar onda de vez em quando. Sou tida como masculinizada, porque vários comportamentos que são atribuidos a homens eu tenho. Por exemplo, se o cara me chamar de gostosa no meio da rua, eu paro e digo: “Sou gostosa, e aí? Acha que porque me chamou de gostosa eu vou querer ficar contigo?”.
Você já foi confrontada na internet?
Já! Uma vez um cara veio me dizer que eu era mal amada, que eu era mal comida, dizendo que eu estava esculhambando homens nos meus vídeos. Não é isso. Eu defendo homens e mulheres, mas é que acontece algo que me deixa “p da vida”: para alguns homens, todos os problemas de mulher se resumem à falta de pinto. E isso é um absurdo. Muitas mulheres são impedidas de galgar espaços maiores por causa do machismo.
E ataques pessoais?
Sim. São sempre pessoais, Só que eu tive uma criação familiar que me fortaleceu muito. Eu tinha tudo para ser para baixo, sou gorda, nordestina, mulher, mãe solteira e preta. Mas nada disso me abala. Minha auto-estima é muito alta. Claro que sei que sou uma exceção, não sou louca, o racismo existe. Vim ao mundo acumulando preconceitos (risos). Só faltou ser gay.
Mas, falando nisso, eu convivo muito com gays, tenho vários amigos. Me lembrei de um vídeo que eu gravei falando justamente de uma situação relacionada aos homossexuais. Tem umas pessoas que dizem assim: “Eu adoro gays, mas não quero que meu filho seja. Não quero que ele sofra”. O que é isso? Não quero que ele sofra? Você se incomodar que alguém seja igual a alguém que você ama? Eu tenho meu filho e vou aceitá-lo como ele for.

Você parece ser muito segura.
Eu sou segura, sim. Mas morro de ciúmes do meu namorado. Super seguro a onda porque ele é muito bonito, é modelo, alto. Acontece também da gente sair e ele ter mais ciúmes que eu, acontece. Segurança é sedutora, saber que aquela pessoa quer estar contigo é afrodisíaco. Mas é importante dizer que eu só descobri essas coisas depois de ter passado por muita coisa. De ter mexido no celular. De ter dado escândalo.
Uma coisa eu digo: ninguém pode ser mais importante que eu mesma. As pessoas precisam saber disso!
E é por isso que você fez o canal?
Olhe, sou muito bem humorada, já tinha muito tempo que eu me preocupava com as mulheres, comecei a ver que tem muita gente que fica mal em relacionamentos por achar que é incapaz de viver só, que estão em relacionamentos abusivos… Quando se socializa a dor, quando compartilhamos, é uma oportunidade de melhorar. É terapêutico. A intenção é esssa mesma. As pessoas, muitas vezes, têm vergonha… Quem vai falar que está na desgrama? Que tá em um relacionamento desgramento?
Quando se fala sobre essas coisas de uma maneira leve, as pessoas se identifcicam, e acho que é por isso que deu certo. Faço porque gosto. Não ganho um real com a página e nem quero. Já vieram me sugerir que faça vinheta, profissionalize. Não quero não.
O que te motiva?
A satisfação de ver o povo me reconhecendo e se identificando. As pessoas já me chamam na rua: uma menina (até postei a foto dela) me encontrou no aeroporto e me abraçou tão forte, me dizendo que meus vídeos a tocam. Me agradeceu muito com os olhos cheios de lágrimas. Fiquei super tocada e sinto que preciso continuar fazendo.
Grava mais de uma vez os vídeos?
Não. Na maior parte do tempo é o primeiro que vai! O que acontece é que, às vezes, quando estou gravando sobre um determinado tema, eu acabo pensando em outra coisa. Os insights são todos do momento. Acontece de eu parar de gravar no meio. Não faço texto, não faço nada. Tudo é inspiração da hora.
Você conhece (assiste a) outros Youtubers?
Menino, eu nunca fui Youtuber (risos). Não conheço nada, não sabia de nada disso. Meu filho é que me disse que eu era Youtuber, eu não sabia, via falar de blogueiras e tal. Ele me dá dicas. Tem dia que eu mando ele sair de perto porque ele não é normal, inteligente demais.
Seu namorado não é o pai, né?
Não.
Tem contato?
Somos amigos. Conversamos, somos companheiros. Temos um filho juntos, poxa. Não dá para ser inimigo do pai do meu filho, eu me preocupo muito com ele.
Tem vontade de seguir a carreira como youtuber?
Não. Eu não sou atriz, não sou humorista. Sou jornalista. Sempre quis fazer um programa que não ofenda as pessoas. Não ridicularizo ninguém, você pode ver. Eu brinco com a dor, eu costumo não criticar nem o suposto algoz… Principalmente, porque a visão de quem é algoz é relativa.
Há assuntos que você se recusa a falar?
Você nunca vai ver Tia Má falando de política. Não é porque eu, Maíra, não tenho uma posição sobre o assunto, mas é porque prefiro não falar sobre isso. Vivemos um momento violento, perverso no País. Ou você come arroz ou você come feijão. E só pode ser um ou o outro.
Já me pediram para falar de política, se eu falo algo que não seja o que algumas pessoas querem ouvir, vão me detonar. Meu problema não é ter críticas, eu tenho costas largas e duras, meu problema é que as pessoas não vão prestar atenção no que eu quero dizer de verdade, me rotulando de “comedora de arroz ou de feijão”. Não quero isso. O que eu quero é trabalhar auto-estima.
Você é sucesso (risos).
Olha só, eu faço questão de mostrar que não quero status de celebridade. Na verdade, eu detesto o que nós, jornalistas, fazemos com algumas pessoas tornando-as deuses intocáveis. Celebridade é um bando de babaca, pedindo para que demos alguma nota sobre eles e depois a gente quer pedir algo e eles não querem mais dar.
Eu já me achava de sucesso antes da Tia Má. Sou jornalista, como sempre quis ser desde meus 11 anos. Queria ter um filho homem e tenho. Sempre fui muito de sucesso. Eu sempre fui a pessoa que deu certo.
Mas e com relação ao preconceito? Você diz que sofreu muito.
A maioria da população brasileira é negra, e, infelizmente, está sempre nas castas menos abastadas. Sempre fui classe média, mas é preciso dizer que ser preto não é sinônimo de igualdade. Cresci nas décadas de 1980 e 1990, em uma bairro da periferia de Salvador. No entanto, minha casa era muito grande. Tive televisão no quarto, linha telefônica, vídeo-cassete. Era privilegiada.
Só que isso não me impediu de sofrer preconceito. Quando era criança, na escola, sofri todo tipo de bullying. Era chamada de preta, cabelo duro. No dia 13 de maio [quando se comemora o Dia da Abolição da Escravatura], os colegas faziam piada comigo, me diziam para agradecer a Princesa Isabel. E acho que o bichinho da consciência me pegou desde cedo. Sabe o que me incomodava? É, na Bahia, ter apenas cinco negros em toda a escola. Isso me incomodava.
E hoje em dia?
O racismo existe. Tanto existe que te conto uma história assustadora. Fui buscar meu filho na escola e, graças a Deus, consigo bancar uma instituição de ensino boa para ele, em um bairro nobre, etc. Bom, não tinha acabado a aula ainda e, como mãe babona que sou, decidi ir lá para vê-lo pela janela. Esperando meu filho sair, uma mãe de um colega veio conversar comigo. Aí ela falava da dificuldade que é hoje em dia de se encontrar uma empregada doméstica. Eu disse que entendia e conversamos muito sobre vários assuntos.
De repente, ela vira e diz: “Ta aí! Gostei de você! Queria alguém como ti na minha casa. Pago o quanto você quiser! Não precisa trabalhar no fim de semana”. Eu logo respondi: “Arrasou! Se você pagar o piso de jornalista mais as diferenças que eu recebo, podemos pensar no assunto”. Claro que ela se assustou. Eu lhe disse que era mãe de um aluno e não empregada doméstica como ela estava pensando.
Não foi ofensivo para mim, porque acho que toda profissão é digna, mas o que me ofendeu foi o fato dela achar que, por eu ser preta, só poderia ser aquilo. Tentando limitar o que eu posso ser, ou não. Essas coisas me motivam a ir mais além, estudar mais, conquistar mais.
Alguns seres humanos falam em “vitimização”…
Não se pode negar a história. Se você entende um pouquinho da história do Brasil sabe que isso é verdade. Mulheres tinham que pagar dote para se casar, negros eram vendidos… São cento e poucos anos de fim da escravidão. Não é questão de vitimizar, é entender história e perceber que as mudanças demoram. A história é mais forte que a realidade.
Sempre tive tudo, sou uma exceção. E fico puta quando dizem que sou esforçada… Eu não sou esforçada, eu sou capaz. Tiram da gente negra nossa intelectualidade, nossa capacidade. As pessoas tentam me reduzir, eu sei falar sobre política, economia, moda, mas faço vídeos da Tia Má falando como na periferia, porque acredito que, quando se faz um discurso intelectualóide, o cara que está abaixo não se sente contemplado.
Lavo minhas roupas em uma lavanderia. Quando chego lá, as lavadeiras me gritam, brincam comigo, opinam sobre os vídeos. Aquelas mulheres que não têm a vida como a minha se sentem representadas. Eu me preocupo muito com isso.
Agora, a pergunta crucial: Ivete ou Cláudia Leitte?
Eu sou mais Margareth Menezes e Marcia Short [da Banda Mel]. São as duas rainhas do axé aqui da Bahia para mim.
Ivete Sangalo é muito esperta, Cláudia Leitte é muito educada. Já as entrevistei muitas vezes… Ivete é muito natural, usa linguajar do povo baiano, Ivete é tipo Tia Má, fala como na periferia. É a periferia falando. Ivete não vai para periferia, mas ela fala o que a galera de Cajazeira [bairro da periferia de Salvador] fala.
Você já recebeu elogios de famosos?
Sim! De Lázaro Ramos, que botou na página dele um vídeo meu, e Bernardo Falconi, que me elogiou via Facebook.
Onde estão seus “sobrinhos”?
Menino! Em todo o Brasil. Mas tem na Alemanha, Espanha, Rússia, Portugal e até Japão.
Conheça o canal da Tia Má no Youtube!