Por que conhecer o verdadeiro Big Brother
18 abril 2014 às 12h51

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“1984”, de George Orwell, oferece uma visão atormentadora dos rumos políticos do mundo e uma reflexão de vanguarda sobre a condição humana e a possibilidade de desumanização da contemporaneidade

Jocelito Zalla
Especial para o Jornal Opção
A disseminação pelo mundo de reality shows no formato Big Brother, idealizado pela produtora holandesa Endemol, parece ter fixado alguns sentidos à obra literária que inspirara o programa. No célebre “1984”, do escritor britânico George Orwell (nascido Arthur Eric Blair, em 1903; falecido em 1950, poucos meses após a publicação do livro), uma sociedade totalitária e extremamente hierárquica impunha a grande parte da população uma vigilância constante, por meio de aparelhos que hoje nos lembrariam algo entre o televisor com acesso à rede e o computador pessoal com câmera integrada: ao mesmo tempo em que se assistia à programação oficial do partido/governo, tudo o que o espectador fazia era visto e controlado por meio das “teletelas”. Esse mundo imaginário passou a ser reproduzido em pequena escala nos estúdios de televisão, colocando o público no lugar do voyeur que acompanha milimetricamente a ação do alvo de observação. Mas o livro de Orwell, redigido nos anos iniciais da chamada Guerra Fria, no pós-Segunda Guerra Mundial, nos oferece muito mais do que um alerta contra a perda da privacidade no mundo contemporâneo. É um tratado sobre o passado, a verdade e, consequentemente, sobre a viabilidade do conhecimento histórico.
Nessa imaginativa lição de História, você não encontrará correspondência direta entre os fatos narrados e a trajetória política do século 20, mas uma engenhosa alegoria sobre os perigos do totalitarismo, de direita ou de esquerda, baseada nas impressões pessoais de Orwell sobre as experiências fascista e, principalmente, soviética, contra as quais lutara. Há na obra descrições impressionantes sobre os rumos da Revolução Russa e a ascensão de Hitler nos anos 1930, mas você também aprenderá muito sobre a História com “h” maiúsculo, a disciplina que escrutina e recompõe o passado e o presente pela análise dos vestígios materiais e documentos escritos.
Na sociedade da potência Oceânia, que englobaria as Américas e o antigo Império Inglês, o passado não tem espaço para existência senão no estrito presente. A cada novo lance de guerra (Oceânia se encontrava em permanente conflito ora com a Eurásia, Europa continental absorvida pela Rússia, ora com a Lestásia, que unia o mundo oriental), a cada novo resultado da economia planificada, a cada nova orientação do núcleo do partido e seu chefe político, o Grande Irmão, todos os jornais, revistas e documentos escritos precisariam ser reescritos e reimpressos para se adequar à realidade, num trabalho constante e incansável de falsificação da história. Mas tudo se passaria como se, na verdade, a realidade nunca mudasse, pois os novos registros do passado garantiriam a perenidade do último momento no tempo. Se o partido prometera produzir 100 mil pares de sapatos, mas obtivera 50 mil, os registros eram refeitos para adequar a meta ao resultado ou, num lance brilhante de propaganda ideológica, a meta era reduzida a número muito inferior, para demonstrar a superioridade do regime e a eficiência do partido, que conseguira, sim, ultrapassar o número esperado.
No espectro da política profissional, a referência à adulteração do passado promovida pelo stalinismo é clara. Personagens de importância reconhecida na revolução e na liderança do partido poderiam ter sua existência negada, no mundo concreto e simbólico. As vítimas dos expurgos não somente sofriam com a tortura, os julgamentos públicos e as penas exemplares, mas tinham todo e qualquer vestígio de sua passagem pelo mundo meticulosamente apagado, a não ser quando sua existência possuía potencial uso político para os líderes do partido. Esse era o caso do Emannuel Goldstein, antagonista do Grande Irmão, revolucionário de primeira hora banido de Oceânia pela oposição aos rumos do Socing (abreviação de Socialismo Inglês, um sistema, ao contrário do que o nome indica, avesso às ideias socialistas do entresséculo 19-20). Exilada, a personagem continuaria a conspirar contra o sistema, se tornando um alvo que unia as massas contra a heresia, um inimigo interno que exigia o esforço coletivo contínuo pela revolução, contra o mínimo risco de dissidência. Aqui encontramos uma óbvia referência ao tratamento dado a Trotski no regime soviético, mas a alegoria facilmente se adaptaria a qualquer contexto de fundamentalismo político ou paranoia social, em que se constroem alteridades caricaturais para justificar as ações dos donos do poder local (como o perigoso comunista inimigo da família e da pátria, no Ocidente da Guerra Fria, o burguês degenerado inimigo do povo, nas sociedades soviéticas do mesmo período, ou o terrorista islâmico inimigo da liberdade nos EUA pós-11 de setembro).
O texto de Orwell é, portanto um lúcido exercício de compreensão e denúncia dos mecanismos oficiais de manipulação do passado, por meio da exacerbação de uma lógica presente na Europa totalitária que conhecera. Vale lembrar que só a partir dos anos 1970, com o programa de pesquisa de Pierre Nora sobre os “lugares de memória” e outras iniciativas historiográficas, como a subsequente análise da invenção de tradições, capitaneada por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, tais mecanismos, em sociedades mais fechadas ou mais abertas, ocuparam espaço privilegiado nos estudos históricos. O livro de Orwell nos oferece, portanto, uma reflexão de vanguarda sobre os usos políticos do passado.
Mas seu consistente olhar histórico não para por aí. O grande dilema do protagonista, Winston Smith, membro subalterno do partido, se inicia após refletir sobre os abusos de memória que era obrigado a cometer, no irônico Ministério da Verdade. Enquanto o partido negava a existência da realidade fora da consciência humana, Smith se apegava aos documentos que precisara adulterar para defender a ideia de que existe um mundo real factível e um passado apreensível pelos vestígios deixados. Orwell parece antecipar o debate sobre documento e referente que assolaria a moderna historiografia após o chamado giro linguístico. Smith não é um positivista crônico (o que o tornaria uma peça inverossímil na arquitetura da narrativa), tem consciência da relatividade das informações, mas nega a equiparação, em termos de verdade, de qualquer discurso sobre o passado, ancorado nos mesmos índices de realidade que sustentam o ofício do historiador: a fonte de época e sua crítica, o que se equivale à intensiva contraposição de dados. É quase impossível atacar o Socing porque já não existem parâmetros sociais de comparação disponíveis. Em certo momento do livro, Smith é declarado o último homem da Oceânia, o que implicava ser ele próprio o vestígio final de um sistema de pensamento que há muito ruíra. Nesse mundo imaginado, Smith nos parece ser também o último historiador.
A essa altura, o leitor deve estar se perguntando: “1894” é, então, um livro de estrito interesse histórico? Como dito acima, a complexidade da obra não permite resumi-la a uma intenção, argumento ou, mesmo, frente de luta. É um alerta contra a reificação e a naturalização do poder. É uma visão atormentadora dos rumos políticos do mundo em que Orwell viveu, não concretizados, mas bastante palpáveis. É uma reflexão sobre a condição humana e a possibilidade de desumanização da contemporaneidade. E muito mais. Sua riqueza enquanto fonte de pensamento se encontra na gama ampla e diversa de questões que suscita. Uma possível visada de historiadores sobre a obra deve-se ao hoje objeto em comum e às engenhosas análises produzidas pela ficção de Orwell, profícua em revelar detalhes assustadores de realidade.
Em texto crítico que acompanha a última edição brasileira do livro, Ben Pimlott discrimina as fraquezas literárias da obra, como o enredo simples e a superficialidade das personagens.
Mas reconhece no tramado do pano de fundo a razão que torna o livro admirável e o faz atravessar as décadas, superando em muito o fatídico 1984 escolhido para a distopia. Aí se encontram os problemas que também (ou ainda) nos acompanham, e que tomam a atenção de nossos historiadores e cientistas sociais. Em 2014, ano em as eleições no Brasil prometem uma gigantesca arena de propaganda política, na qual batalhas discursivas entre as forças em oposição relativizarão fatos, números e até mesmo trajetórias, talvez esses problemas nos sejam ainda mais caros. Não é, portanto, somente o voyeurismo latente, a confusão entre vida pública e privada — ocasionada, entre outros fatores, pela disseminação das redes sociais e dos shows de realidade — ou a voga da espionagem virtual operada pela nossa grande potência que podem encontrar pontos de confluência com o mundo orwelliano e, consequentemente, oferecer interesse para novos leitores, especializados ou não.
Jocelito Zalla é professor. Doutorando em História pela UFRJ.
via Revista Bula