Virtualização das relações chega a Saúde por meio da telemedicina, mas modelo ainda requer debate
31 maio 2020 às 12h23

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Médicos concordam com caráter positivo dos atendimentos remotos durante pandemia, mas falam da desconfiguração da relação médico-paciente, que passa, fundamentalmente, pelo contato físico
Entre previsões negativas ou não, a sociedade começa a calcular quais serão as mudanças permanentes a serem deixadas pela pandemia. Apesar do cenário ainda nebuloso, alguns elementos se tornam norteadores quando se quer olhar para a sociedade pós-Covid-19. As novas dinâmicas impostas pela necessidade de isolamento social passam, fundamentalmente, pela virtualização dos relacionamentos, que chega à Saúde através da telemedicina.
Discutido há mais de década, o modelo de atendimento médico mediado por tecnologias da informação e telecomunicações ganhou maior atenção nos últimos três anos, quando chegou a ter, no início de 2019, regulamentação proferida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Apesar disso, cerca de um mês depois foi revogada, já que ainda tinha delimitações não muito claras, voltando a ser rediscutida.
Foi só em março deste ano, em caráter excepcional, que o CFM voltou a autorizar atendimentos médicos de forma virtual. Com regras ainda em discussão, a regulamentação provisória serve ao setor como grande teste do modelo, abrindo discussões sobre elementos como aplicabilidade e efetividade, propiciando ajustes e balanços, o que pode acelerar ou freá-lo.
Em Goiás, o Hospital Estadual Alberto Rassi (HGG) trabalha com o modelo desde o mês de março, registrando quase 1800 atendimentos até a segunda semana de maio. Para o diretor técnico da unidade, o médico Durval Pedroso, essa é uma oportunidade para que o CFM proponha um modelo de regulamentação, podendo, como adianta Durval, garantir acesso seguro aos pacientes.
Regras
Conforme explica o diretor técnico do HGG, o que existia antes da regulamentação vigente era a autorização do uso das plataformas por profissionais para troca de entendimentos sobre casos, o que já era chamado de telemedicina. “Um médico que está no interior atendendo paciente e precisa discutir com um especialista determinada situação, por exemplo”, explica Durval.

O que mudou a partir das novas diretrizes alcançou a teleconsulta, contato mediado por tecnologias entre médico e paciente, esse sim, mais polêmico e ainda debatido.
O texto da regulamentação permite atendimento por vídeo, telefone e ou outros meios para promover orientações e avaliação de exames, detalha Durval Pedroso, que faz destaque fundamental: só há permissão para esse modelo para fins de continuidade de tratamento.
Confira a lista de modalidades autorizadas
“A primeira vez que você vai ver um paciente é impossível fazer por telemedicina, porque o exame físico é fundamental. É o momento que o médico toca no paciente, escuta, afere dados vitais. Isso ainda não é possível à distância. Mas aquele paciente que o médico já acompanha como portadores de doenças crônicas dentre os que não podem ficar desassistidos nesse momento”, segue explicando.
Alternativa
O médico ortopedista Rodolfo Cambota é um dos profissionais que aderiram o teleatendimento. A regulamentação, segundo ele, mesmo que provisória, atendente demanda antiga da classe. Afirma que o modelo facilita o acesso médico em situações de menor gravidade durante o distanciamento social, mas, assim como o diretor do HGG, faz alerta.

“Nem tudo pode ser resolvido remotamente e a falta do exame físico limita as ações do médico”, defende o especialista, que acrescenta: “Resta maior clareza na definição das ferramentas disponíveis e adequadas ao atendimento, além das atribuições tanto do paciente quanto do médico diante desta nova tecnologia”.
Sobre os riscos de adoção dos atendimentos remotos como caminho que se limita ao foco em economia, o ortopedista diz que é fundamental entender o modelo como alternativa mais segura e ou mais confortável, mas não como possibilidade de atendimento mais barato. “Consultar remotamente não pode significar menos atenção ou dedicação ao paciente. E carregamos ainda mais responsabilidades nesse método se compararmos com a consulta tradicional”, defende.
Relação médico–paciente
O médico oftalmologista Carlos Eduardo Pereira também destaca que o modelo de atendimento é positivo durante o período de isolamento, acrescentando ainda a capacidade de atender populações distantes. Apesar disso, o oftalmologista é mais duro e crítico ao teleatendimento, e diz que “é tirar o elemento humanizado da medicina”.
“A tecnologia avança muito mais rápido que a legislação e as discussões de como devemos usar as novas ferramentas, o assunto ainda é controverso e só está autorizado em caráter excepcional durante a pandemia”, afirma o médico sobre a atual regulamentação.

Conforme defende o especialista, a telemedicina deveria ser usada apenas em caráter consultivo entre colegas médicos. “O uso da ferramenta dessa forma desfigura a relação médico paciente de uma maneira que nem médicos nem pacientes estão preparados. É uma figura nova que não pode substituir a consulta e o contato humanizado”, acrescenta.
“A telemedicina não pode nunca ser a primeira opção de relacionamento médico paciente, ela pode ser uma ferramenta para tirar uma dúvida ou para manter o contato mais estreito entre as partes, mas o relacionamento presencial é a base da medicina. A medicina não pode ser tratada como um negócio que busca exclusivamente o lucro. O fundamental é o bem-estar do paciente e para tanto devemos primar pela qualidade”, segue defendendo o médico Carlos Eduardo.
Pensar o futuro
Mesmo sob dúvidas, que devem mover densas discussões sobre o assunto, os três médicos ouvidos pela reportagem concordam que a telemedicina sai fortalecida após a pandemia. O diretor do HGG conta que a direção já avalia plataformas de interconexão de prontuários, buscando aprimorar os atendimento.
“Pensar na pós-pandemia uma possibilidade de acesso, principalmente para um paciente que muitas vezes vem de 400 quilômetros, 300, 600 do interior para passar por uma avaliação que poderia ser feita remotamente”, afirma Durval Pedroso.
O médico ortopedista Rodolfo Cambota diz que esse é um caminho sem volta para a classe médica. “As consultas de retorno que ocorrem alguns dias após o atendimento presencial, geralmente para entrega de exames e definição do tratamento, serão frequentemente substituídos por atendimentos por teleconsulta”, acredita o Rodolfo.
O oftalmologista Carlos Eduardo Pereira também acredita no fortalecimento do modelo, mas chama atenção para a necessidade do que define como “uso adequado”. “O Raio-X é uma ótima ferramenta, mas não substitui o ortopedista, a inteligência artificial não vai aposentar o médico. O contato humano também não pode ser desfigurado ao ponto de nos contentarmos em ser atendidos por uma tela sem o toque humanizado”, finaliza.