Lucas Bastos de Souza

Especial para o Jornal Opção

Javier Gerardo Milei, de 53 anos, venceu as eleições na Argentina no dia 19 de novembro deste ano. O economista, eleito com aproximadamente 55,7% dos votos, derrotou o peronista Sergio Massa, ministro da Economia e candidato da situação.

Indicar o ministro da Economia do governo não foi, obviamente, um ato de inteligência política por parte do partido governista, o Unión por la Patria, que foi derrotado em 20 das 23 províncias (Estados). A terceira colocada na disputa, Patricia Bullrich, e o ex-presidente Mauricio Macri apoiaram Milei no segundo turno.

A excentricidade de Milei, que será empossado no domingo, 10, é indubitavelmente um fator que faz com que este texto seja um dos mais complexos e paradoxalmente fáceis que já escrevi — o que me obrigou a rasgar todos os rascunhos que fiz até esta versão.

Primeiro, ao ser anedótico: Javier Milei foi vocalista em uma banda cover de Rolling Stones, foi reprovado em teste psicotécnico, autointitula-se professor de sexo tântrico, brigou com o Papa (ou o Sumo Pontífice) Francisco e afirma tomar suas decisões políticas conversando com seus cachorros com a ajuda de uma médium interespécies — que diz se comunicar também com moscas e com o coronavírus.

Mauricio MacrI: uma segunda presidência indireta? | Foto: Reprodução

Além disso, há a história de que seu cão e Javier se conheceram em vidas passadas, quando o candidato eleito era um gladiador no Coliseu romano e seu cão era, na verdade, um leão e ambos deveriam duelar. Surge nesta história, digna de uma crônica, El Único (forma que Milei refere-se a Deus), que intervém e diz a ambos que não lutem, pois serão aliados no futuro.

Definitivamente, é um currículo minimamente peculiar. Ao tratar do ser não tão anedótico, Milei se considera um “liberal libertário […]; filosoficamente, um anarquista de mercado”, além de minarquista e de ter realizado um estágio durante sua juventude no Banco Central da Argentina — instituição que sugeriu extinguir durante a campanha.

Ante tantas informações exóticas, o caminho mais simples seria o caminho do deboche e da ironia com a figura caricata que Milei é — estratégia empregada pelo partido governista que, ainda assim, foi derrotado. Contudo, parte-se dos motivos que conduziram Milei à eleição comparando-o ao caso brasileiro.

Tal como no caso brasileiro, Javier Milei tornou-se uma figura popular seguindo uma trajetória análoga a Jair Bolsonaro: falando absurdos em programas vinculados na televisão aberta. Aqui, faz-se uma ligeira pausa, pois este é o único vínculo que posso defender fidedignamente que une, de fato, a trajetória de Milei e a de Bolsonaro, já comparados à exaustão. Enquanto Bolsonaro preconizava o “acabar com tudo isso que está aí” e, possivelmente, desconhece literatura (ou o significado da palavra), Milei, por sua vez, e por mais surreal que seja, é um intelectual, com o aviso imediato que a intelectualidade não implica necessariamente em serenidade e equilíbrio mental.

A base eleitoral de Milei é preponderantemente composta por homens jovens e parcelas da população que estão insatisfeitas com a trajetória econômica no país. Logo, ratifico a afirmação: lançar uma chapa encabeçada pelo ministro da Economia de um país que possui inflação acumulada de 138,3% em 12 meses (auferida em outubro deste ano) é um erro — devidamente punido pelo voto popular.

A formação de Javier em economia e adesão a vertentes do pensamento anárquico possibilitam que a Argentina se torne uma espécie de experimento político meta-anarquista, com enfoque na palavra “possibilitam”.

Não julgo intelectualmente prudente dizer que Milei é um candidato de ultradireita por propor um Estado extremamente reduzido. Abandonando o diagrama “esquerda-direita”, as propostas de Milei transitam entre as pautas ditas conservadoras e progressistas, como o apoio ao aborto de gestação, dolarização da economia argentina, legalização de armas e de entorpecentes. Se eu me imaginar como um dito conservador brasileiro, pró-armas, mas antidrogas e contra o aborto, estaria confuso. Igualmente, se me considerasse um social-democrata progressista brasileiro, estaria igualmente confuso com a permissividade de armas e a dolarização da economia (que implica na dependência financeira dos Estados Unidos), mesmo defendendo pautas como o supracitado aborto e descriminalização e legalização de entorpecentes.

Pessoalmente, vi alguns coleguinhas (forma cordial a referir-me a outros articulistas e pesquisadores) comemorando a vitória de Milei como um ponto de virada na política e na história. Afinal, desconheço qualquer presidente dito libertário ser eleito.

Enquanto isso, pessoas ditas adeptas ao liberalismo à moda brasileira (digo, fascistoide) também comemoraram. De fato, não é usual notar derrotas no campo peronista. Contudo, a ânsia – ou desespero – por mudança dos eleitores argentinos eleva Javier Milei ao cargo máximo no país, com um discurso que preconiza o enfraquecimento das chamadas “castas”, ou elites políticas e econômicas para simplificar. O discurso inflamado de Milei, que afirmou que, caso eleito, não faria negócios com países considerados por ele “comunistas” conquistou parte significativa do movimento chamado de extrema-direita na maioria dos veículos de mídia – que me reservo o direito de chamar de extrema burrice. Os ataques aos principais parceiros comerciais da argentina, como China e Brasil, ultrapassaram a retórica diplomática obtusa, com Milei chamando Lula de “comunista corrupto”, além de acenos ao inelegível Bolsonaro e a Donald Trump.

Para além, Milei chegou a ameaçar retirar a Argentina do Mercosul e cortar laços comerciais com China e Brasil. Atendo-se apenas ao Mercosul, deixo que os números expressem o que penso: o PIB argentino é de 487,2 bilhões de dólares. O brasileiro é de 1,6 trilhão de dólares (3,3 vezes superior ao argentino). O Brasil também responde por 72% do PIB do Mercosul. Bem… Se a decisão é romper laços comerciais com o Brasil, eu diria que, no mínimo, é uma decisão estúpida.

Diana Mondino, indicada para ministra das Relações Exteriores por Milei, buscou moderar o discurso do candidato – ou está sabotando o copo de Milei com altas doses de Lexotan e Rivotril. Uma vez encerrado o pleito, Xi Jinping e Lula congratularam Javier Milei pela eleição. Xi, por sua vez, enviou uma carta à Milei, que fotografou e repostou no Twitter, que me recuso a chamar de “X”. Tenho a impressão de que a carta de Xi Jinping é uma forma inteligente de evitar que Milei desligasse o telefone na cara dele.

Diana Mondino também convidou os dois líderes para a posse de Milei, que, por si, convidou Bolsonaro e Trump de imediato. Apesar de Lula ser tricampeão em conciliação, não creio que seja razoável comparecer à posse sem receber um pedido público de desculpas. Nem só de vaselina é feita a diplomacia – a saber, muito bem tocada por Mauro Vieira no Itamaraty. O reconhecimento da eleição de Milei por Lula foi acompanhado da fala contundente, por parte do presidente brasileiro: “Eu não tenho que gostar do presidente do Chile, da Argentina, da Venezuela. Ele não tem que ser meu amigo. Ele tem que ser presidente do país dele, eu tenho que ser presidente do meu país. Nós temos que ter política de Estado brasileira e ele do Estado dele […]”.

Ademais, contrariando a expectativa da virada histórica que ouvi dos coleguinhas, Milei é, de fato, um libertário. Contudo, política é uma arte que Milei não domina, pelo menos por ora. Preferi atrasar meu texto em uma semana, pois era óbvio que Javier Milei iria, necessariamente, alterar seu discurso e recuar em múltiplas pautas. Em uma semana, ocorreu exatamente o que eu esperava: recuos. O apoio de Patricia Bullrich e, principalmente, Mauricio Macri possui um preço, afinal, é assim que se faz política.

Por fim, no último dia 29, Milei indicou quem será seu ministro da Economia: Luis Caputo, ex-ministro das Finanças no governo macrista e ex-presidente do Banco Central da Argentina. O significado das movimentações no tabuleiro da política argentina, a meu ver, são de que Milei “ganhou, mas não levou”. Provavelmente, o sonho liberal-libertário e anarquista de mercado de Javier Milei está fadado a ser um segundo regime de Mauricio Macri, restando aguardar a posse e acompanhar a condução política no país vizinho para novas conclusões.

Lucas Bastos de Souza é economista, engenheiro, programador e integrou o Centro de Pesquisas Econômicas da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (CPE/PUC-GO) entre 2018 e 2023.