Somente um território de comunidade quilombola foi regularizado em Goiás
24 julho 2024 às 12h47
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Informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mostram que, das 59 comunidades quilombolas registradas na Fundação Cultural Palmares em Goiás, 50 já possuem processos abertos para titulação dos territórios. Apesar do movimento de regularização dos territórios, apenas uma comunidade quilombola finalizou o procedimento, a Comunidade Quilombola Tomás Cardoso, no município de Barro Alto.
Servidores do Incra e membros das comunidades quilombolas colocam parte da culpa pela morosidade nos processos na falta de vontade política. Muitas vezes, a baixa destinação orçamentária compromete as equipes que deveriam atuar nos processos e as indenizações devidas para liberação da terra.
Defensores nacionais e internacionais da causa, apontam para a urgência das titulações dos territórios quilombolas a fim de proteger a biodiversidade, uma agricultura saudável, a preservação ambiental dos biomas brasileiros, além de garantir uma reparação histórica para esses grupos que herdaram as chagas de centenas de anos de escravização do povo preto.
Na voz da especialista
Em entrevista ao Jornal Opção, a responsável pelo serviço quilombola da superintendência do Incra no estado de Goiás, Ludmila Carvalho, compartilha o funcionamento do processo de titulação.
“O processo de regularização dos territórios quilombolas se inicia com a autodefinição das comunidades”, afirma. Esse certificado que reconhece a comunidade quilombola deve vir da Fundação Cultural Palmares. Uma vez que as comunidades tenham conseguido o reconhecimento da Fundação, pode se dar início à titulação dos territórios através do Incra.
Por sua vez, o Incra notifica os órgãos responsáveis do início do processo de titulação. Funai, Ibama, ICMBio, governos do estado e do município onde se encontra a comunidade, a Fundação Palmares e o Ministério do Desenvolvimento Agrário se envolvem no processo.
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Desse ponto em diante, começa a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). “É a peça fundamental dentro desse processo administrativo”, explica Ludmila. O documento contém relatório agronômico, antropológico, levantamento fundiário e cadastramento de famílias, demandando atenção de uma equipe multidisciplinar. “É importante que várias áreas do conhecimento estejam juntas e unidas no sentido de construir um relatório que não deixe dúvidas”, resumiu.
A partir dessa etapa, começa a notificação dos proprietários das fazendas que possam estar dentro do território do quilombo. O Instituto abre espaço para essas pessoas questionarem legalmente a definição do território quilombola e “se o Incra analisar as defesas apresentadas e não estiver em acordo, a gente comunica que vamos continuar tocando o processo de reconhecimento do território”.
Após encerrado o prazo para recursos dos proprietários de terra dentro dos territórios dos quilombos, o RTID é publicado. O Incra abre uma portaria para reconhecimento do território e tem início o processo de emissão de decretos de desapropriação. Nesse ponto, Ludmila chama atenção para interpretações equivocadas da população sobre o processo.
“O Incra não toma essa terra dos proprietários legitimamente constituídos, na verdade, o Incra faz uma desapropriação desses imóveis, indeniza em valor de mercado, e só posteriormente que o Incra destina esse território para a associação quilombola num título coletivo de uso”, explica.
Por fim, a servidora do Incra compartilha dados levantados pela ONG ‘Terra de Direitos’ sobre o processo de titulação desses territórios. “Se a gente continuar nesse mesmo ritmo de regularização de territórios quilombolas, nós necessitaríamos aí de quase 2 mil anos para poder concluir esses processos, e nós temos urgência”, concluiu.
Quando questionada sobre a velocidade do processo, Ludmila afirma: “Nosso país é um dos países com maior concentração de terra nas mãos de poucas pessoas e nós sabemos que nosso Congresso Nacional é composto majoritariamente por parlamentares ligados aos ruralistas, aos fazendeiros e aos detentores de terra”.
Quem vive na pele
Em entrevista ao Jornal Opção, Vercilene Dias, advogada Kalunga e coordenadora da assessoria jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), fala um pouco da realidade nos quilombos e do processo de titulação. “Para as comunidades é essencial que garanta a titulação para elas acessarem todos os recursos naturais”, afirmou ao explicar a dificuldade de garantir produção de alimento suficiente em meio a conflitos por terras com fazendeiros dentro do limite do quilombo.
Para a advogada, a titulação é caminho para efetivação de direitos e uma forma de trazer os serviços públicos garantidos pelo Estado até essas comunidades, sem, contudo, perder a identidade cultural própria do quilombo.
Quando questionada sobre a lentidão nos processos de titulação, a especialista é categórica ao afirmar que falta “vontade política”. “Hoje, o processo de titulação das terras quilombolas é uma garantia constitucional”, afirmou logo antes de complementar dizendo que “no entanto esse direito foi muito burocratizado e exige vários processos”.
A burocratização do processo, somada à falta de orçamento específico para a titulação, gera filas de espera de anos. Atrasos surgem por falta de verba para indenizações, órgãos ligados à Reforma Agrária sucateados e com poucos servidores, processos por parte dos fazendeiros atuantes no território e lentidão nos procedimentos para liberação de títulos por parte do estado são alguns dos empecilhos mais comuns encontrados, segundo a advogada.
“O governo estadual não tem tido essa boa vontade, ou não tem garantido esse direito”, exemplificou parte dos entraves no caso Kalunga. Apesar dos esforços contínuos que já duram décadas, os resultados estão longe do desejado. “As comunidades quilombolas estão muito cansadas de fazer reuniões e de ouvir as mesmas promessas”, afirmou desesperançosa.
“Para gente, é importante que o estado, que os governos, se preocupem com as comunidades, que garantam esse direito de acessar o Sistema de Saúde, educação de qualidade, que tenham uma fonte de renda”, finalizou.