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Foram os paulistas que reivindicaram o dia da Independência por 7 de setembro. Mas, de início, outras datas históricas que não se passaram em São Paulo tinham muito apelo e potencial para marcar o “divórcio” entre a Colônia, o Brasil, e a Metrópole, Portugal.

A consolidação do 7 de setembro como dia da Independência do Brasil na memória coletiva não foi um processo imediato e unânime. Houve uma disputa de datas até que se chegou a um consenso em 1823.

Muito se falava que o “Grito do Ipiranga” deu-se no meio do nada, onde não havia ninguém, já que nem mesmo paulistas do século 19 sabiam onde ficava o riacho que o príncipe dom Pedro, por muito tempo, insistiu em chamar de “Piranga” e não “Ipiranga”. Na época, se escrevia com “y” e não “i”.

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Pedra fundamental do Museu Paulista, óleo sobre tela/1882 | Imagem: José Rosael e Hélio Nobre

O brado retumbante — frise-se: o microfone ainda não havia sido inventado — à beira do Ipiranga foi escutado por apenas 36 homens que compunham a comitiva do futuro imperador.

Somente quando com Pedro retorna ao Rio de Janeiro é que se dá início às celebrações que vão culminar em 12 de outubro de 1822 — que, além de ser o dia do seu aniversário, foi escolhido por ele como a data de sua aclamação como imperador e defensor perpétuo do Brasil.

Somente em primeiro de dezembro de 1822 Pedro foi coroado no Rio de Janeiro. A data, escolhida por Pedro, coincide com o dia da coroação do rei de Portugal, dom João IV, que iniciou a dinastia dos Bragança no comando da coroa portuguesa em 1640, ano da Restauração.

Museu do Ipiranga em 1890 abandonado
Museu do Ipiranga em 1890: abandonado | Foto: Reprodução

Durante 60 anos, Portugal foi subjugado pela Espanha católica. Esta, por mais de meio século — exatos sessenta anos —, governou os dois países, durante a chamada União Ibérica.

Até a oficialização do 7 de setembro como data oficial da Independência do Brasil, em 1823, muito se discutiu se o 12 de outubro ou 1º de dezembro tinham relevância. Até que a força econômica da província de São Paulo falou mais alto e os paulistas, que procuravam estabelecer protagonismo na história do Brasil, convenceram o já então imperador Dom Pedro I que o “Grito do Ipiranga” marcava o momento exato da separação “litigiosa” entre Brasil e Portugal. Foi um pedido do Barão de Iguape.

Assim, a data acabou se cristalizando após a aprovação do imperador — que deu a licença para o início da construção do Monumento Comemorativo da Independência no Sítio do Ipiranga.

Prédio inacabado mas declarado pronto pelo governo republicano em 1889
Prédio inacabado mas declarado pronto pelo governo republicano — em 1889 | Foto: Reprodução

Em 22 de setembro de 1824, o visconde de Congonhas do Campo, presidente da província de São Paulo, propõe ao governo imperial a construção do Monumento do Ipiranga não às margens do riacho — que ficava muito longe da cidade —, e sim no centro de São Paulo.

O imperador não permite a mudança do local e exige em decreto que o monumento seja erguido no Ipiranga. Então, no dia 12 de outubro de 1825, aniversário de dom Pedro I, é demarcado o local com a colocação de uma pedra fundamental.

Em 13 de julho de 1826 iniciam-se as obras que acabam não sendo concluídas por falta de recursos financeiros. O local é abandonado e todo o material de construção colocado ali, como madeiras e pedras, desaparece — assim como a pedra fundamental.

1893 o prédio é transferido para o Estado de São Paulo
O prédio é transferido para o Estado de São Paulo em 1893 | Foto: Reprodução

Após dez anos, de 1836 a 1841, tanto a Câmara dos Deputados como a Assembleia Provincial de São Paulo incluem em seus regimentos e orçamentos cotas para a construção do monumento, mas as verbas desaparecem misteriosamente. Mesmo tendo sido registradas em atas.

Apenas em 1855 o assunto volta à tona, quando o presidente da província de São Paulo, coronel Saraiva, nomeia uma comissão destinada a reativar os planos para erguer o Monumento da Independência. Durante vários anos passa-se a recolher impostos que seriam destinados, especificamente, às obras que não avançam no riacho. Porque todo recolhimento foi desviado para as contas dos nobres que eram membros da comissão.

Somente em 1869 é estabelecida uma Comissão Central, presidida pelo senador visconde do Bom Retiro. A tentativa também falhou.

1897 iniciam as obras de jardinagem Museu do Ipiranga
Em 1897 foram iniciadas as obras de jardinagem Museu do Ipiranga | Foto: Reprodução

Seis anos depois, em 1875 — 53 anos depois do Grito do Ipiranga —, uma nova Comissão Central nomeia comissões provinciais e municipais para a arrecadação de fundos privados, de norte ao sul do país, para a viabilização da retomada das obras do Monumento do Ipiranga.

Uma ação intrigante, porque, no mesmo ano, a tal comissão já havia liberado verbas públicas para o mesmo objetivo.

Até que em 1876, um ano depois, a Comissão Provincial do Monumento do Ipiranga resolve lançar um concurso para a escolha de um projeto a ser estabelecido às margens do riacho.

1919 os jardins são entregues
Os jardins são entregues em 1919 | Foto: Reprodução

Diversos projetos foram enviados, mas nenhum foi selecionado e o resultado acaba não sendo divulgado. As comissões são desfeitas e as verbas, mais uma vez, desaparecem.

Então, no dia 6 de abril de 1877, é promulgada uma lei nacional. A lei das loterias do Ipiranga. Assim, foi criado um bilhete de loteria para financiar o monumento.

No entanto, os nobres deputados e senadores que atuavam no Rio de Janeiro, “preocupadíssimos” com a educação no país, derrubam a lei que criou a loteria e promulgam uma nova lei que destina a arrecadação das loterias para a educação primária e não ao monumento.

Cinco anos depois, em 1882, uma expedição saiu em busca do local exato onde Pedro I havia proferido seu brado retumbante.

Inauguração do museu em 1922
Inauguração do museu em 1922 | Foto: Reprodução

Teoricamente, a procura deveria acontecer às margens plácidas do Ipiranga. Mas já se passaram 60 anos desde que o então príncipe “berrou” por ali, e as margens já não eram tão plácidas.

O Ipiranga, que era um rio, virou um riacho cheio de fezes humanas e animais, pisoteado por tropeiros que chegavam em São Paulo. Era tanto barro que se tornou impossível saber onde “o sol da liberdade “havia brilhado no céu da pátria”, em 1822.

A história do cocô histórico de d. Pedro I

Foi então que um dos membros da Comissão do Monumento do Ipiranga, lembrando-se do fato inusitado que ocorreu naquele dia 7 de setembro, quando Pedro parou ali para se “aliviar” — devido a um forte desarranjo intestinal —, pediu que todos passassem a procurar por um coprólito ou um cocô fossilizado.

Museu do Ipiranga hoje um marco turístico de São Paulo
Museu do Ipiranga é um marco turístico de São Paulo | Foto: Reprodução

A comissão entendeu que as fezes fossilizadas do imperador indicariam o local exato do “Grito do Ipiranga”. Horas depois, viu-se uma “pedra” peculiar, um tanto enrolada e cheia de curvas. Então chegaram à conclusão de que aquele local, onde Pedro atendeu um chamado da natureza, era o ponto exato que tanto procuravam. O enigma do cocô imperial estava resolvido.

No dia 10 de novembro de 1882, no local foi colocada a pedra fundamental do Monumento do Ipiranga, com grande solenidade. Anunciou-se que o projeto seria de um engenheiro italiano que morava no Rio de Janeiro, Thomázio Gaudência Bezzi. Em apenas dez dias após a indicação, ele entrega o projeto do Monumento à Comissão Central.

Só que, dois meses depois, a mesma comissão resolve fazer modificações no projeto. Mesmo enfurecido, Bezzi aceita as alterações. O Monumento é modificado — aumentando ainda mais os gastos para sua construção.

Vista do Ipiranga por Edmund Pink em 1823 Foto Museu de Arte de São Paulo 0l
Vista do Ipiranga por Edmund Pink, em 1823 | Foto: Museu de Arte de São Paulo

Finalmente, no dia 25 de março de 1885, as obras são reiniciadas a partir do projeto de Bezzi.

No dia 14 de julho de 1886, a comissão do monumento contrata o artista Pedro Américo para pintar um quadro histórico e comemorativo da Proclamação da Independência.

Pedro Américo assina um contrato de três anos e recebe 30 contos de réis — que, na época, era uma fortuna.

Já de início a comissão repassa a Pedro Américo 6 contos de réis para as pesquisas e atividades de preparação. Mas o pintor e a comissão entendem que uma tela tão importante não poderia ser feita no Brasil. Então ele embarca para Florença, na Itália, berço do Renascimento.

Foi em Florença que o quadro mais icônico e mentiroso — retrata o suposto momento da Independência do Brasil — foi pintado.

Paisagem do Campo do Ipiranga óleo sobre tela de Antônio Parreiras ok1
Paisagem do Campo do Ipiranga, óleo sobre tela de Antônio Parreiras | Foto: Reprodução

O artista termina a obra antes dos três anos previstos. Em 8 de abril de 1888 o envia para São Paulo.

Pouco depois, a Princesa Isabel, filha de d. Pedro II, assina a Lei Áurea — que liberta os escravizados.

A Abolição da Escravatura acaba levando à queda do Império, no ano seguinte, em 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República. Trata-se do primeiro golpe militar da República.

As obras do museu imperial são dadas como encerradas em 1890 e o prédio palaciano fica inacabado numa escola federal.

O quadro de Pedro de Américo, com oito metros de comprimento e quatro de largura, é enrolado e fica apodrecendo nos porões do Museu do Ipiranga.

O prédio é declarado propriedade do Estado de São Paulo somente em 1893. O governo decide que ali será instalado o Museu do Estado de São Paulo.

A Independência, vista como um ato puramente monárquico, é deixada de lado e o lugar recebe o nome de Museu Paulista. Durante quatro anos permanece fechado.

Em 1897, o governo aprova o ajardinamento em estilo francês — bem na frente do prédio, em estilo neoclássico. Mas assim como o prédio, o jardim demora a ficar pronto, e somente em 1909 é entregue.

Mesmo assim, o prédio do agora Museu Paulista permanece fechado. Até que em 1919 Afonso Taunay assume a direção do Museu com a missão de torná-lo a referência para a história de São Paulo.

A história seria, por assim dizer, reinventada por Taunay, que transforma em heróis os portugueses sertanistas que 300 anos antes se embrenharam pelo país a partir do Rio Tietê em busca de riqueza e glória. Eram os bandeirantes, nome associado à busca do Brasil profundo e rico. As entradas eram chamadas de Bandeiras.

Taunay manda pintar o hall de entrada do museu com imagens dos, agora, bandeirantes — que, por sinal, andaram por Goiás (o famoso Anhanguera) — e ainda instala estátuas gigantes desses homens, que foram transformados em heróis paulistas desbravadores e conquistadores de todo Brasil.

Então, após cem anos do Grito do Ipiranga, no centenário da Independência, o Museu Paulista, não mais Imperial, acredite se quiser, é finalmente inaugurado.

Mas até hoje, após ter sido incorporado à Universidade de São Paulo, em 1963, tombado em 1965, fechado novamente por quase dez anos para obras de restauração e reaberto no bicentenário da Independência do Brasil, poucos brasileiros sabem que um cocô é, por assim dizer, a base de nossa história, quando se trata de Independência e pós-Independência.