O escritor e jornalista lança “#MadalenaSemFiltro”, narrado em primeira pessoa por Maria Madalena, na Livraria Leitura do Goiânia Shopping

Rodrigo Alvarez. Foto: Reprodução/Facebook

Rodrigo Alvarez estará de volta a Goiânia nesta terça-feira (27). O escritor e jornalista da Rede Globo lança às 19h, na Livraria Leitura do Goiânia Shopping (Av. T-10, nº 1.300 – Setor Bueno), seu mais novo livro, “#MadalenaSemFiltro”, obra narrada em primeira pessoa por Maria Madalena, aliando pesquisa histórica a uma ficção com olhar contemporâneo.

Em “#MadalenaSemFiltro”, o correspondente da TV Globo na Europa e autor de best-sellers, como Jesus – O homem mais amado da História e Aparecida, apresenta um texto tocante em que a apóstola de Jesus, em primeira pessoa, revisita suas lutas, verbaliza suas ideias sobre os homens, detalha sua relação com Jesus, se mostra indignada com as injustiças que sofreu e reflete sobre seu passado e seu presente – o século XXI, quando foi finalmente reconhecida como amiga fiel daquele a quem todos chamam Cristo e uma das primeiras mulheres que disseram “não” aos papeis impostos e pré-concebidos pelo mundo dos homens.

Relevante pela personagem, pelos fatos que expõe e pelas injustiças que denuncia, “#MadalenaSemFiltro” combina ficção e não ficção: é tanto uma obra amplamente baseada em fatos e documentos históricos (entre eles os evangelhos apócrifos da biblioteca de NagHammadi e o místico Pistis Sophia) quanto uma narrativa de alta qualidade literária concebida de maneira original por um escritor e pesquisador em pleno domínio de seus talentos.

Serviço:
Lançamento do livro “#MadalenaSemFiltro”, do jornalista e escritor Rodrigo Alvarez
Data: Terça-feira (27)
Horário: 19h,
Local: Livraria Leitura do Goiânia Shopping (Av. T-10, nº 1.300 – Setor Bueno)
Entrada franca

 

Leia, abaixo, o primeiro capítulo da obra:

Resolvi contar minha história

Sinto algo se mexendo dentro de mim. Alegro-me como se este fosse o primeiro dia de um verão pelo qual esperei ansiosa. Meus olhos ficam cegos por alguns instantes. Sinto o cheiro da terra que se molhou com a chuva que acaba de ir. Sinto tudo com uma intensidade que me parecia perdida, e sou tomada por um sentimento de completude e alegria que deixei de sentir no dia em que me despedi do meu mestre para nunca mais voltar a vê-lo.

Depois de muito tempo adormecida, estou vendo o mundo outra vez. Há um monte de gente diante de mim. E tenho a impressão de que estão todos me olhando e falando de mim.

Ah, sim…

É uma procissão!

Quando os vejo saindo, recupero meu dom de sentir.

Meus instintos…

Sou Madalena outra vez.

Sinto-me assim ao ver minha cabeça dentro daquela escultura dourada, ou pelo menos a cabeça que dizem ter sido minha, uma relíquia guardada atrás do vidro, naquele busto dourado que a procissão vai levando a caminho da basílica que tem o meu nome.

Convenhamos…

Um crânio sem olhos, sem pele ou cabelos, por mais que seja sustentado por anjos dourados, não é a melhor imagem que poderiam ter de mim.

Mas será que isso importa, meu Deus?

No tempo em que caminhávamos pela Galileia, posso dizer com certeza que o mestre não se preocuparia com aparências. E para mim (afinal, sou eu a dona do crânio) é maravilhoso perceber que essa gente toda veio à região da Provença, no sul da França, por causa de mim.

E eles estão cantando canções para mim.

Pensando em mim.

Especialmente, pensando coisas boas sobre mim.

“Santa Maria Madalena, amiga fiel de Jesus Cristo!”

É o que estão dizendo.

A procissão saiu de uma pensão que tem meu nome.

E agora segue…

Os peregrinos levam, além do meu crânio, uma caixa dourada com um osso que dizem ter sido parte de minha perna.

Há ali também um pedaço de tecido humano que teria pertencido a meu rosto, e eles estão indo para a gruta onde dizem que rezei, que passei muito tempo rezando.

Não sei…

Não posso me lembrar de tudo.

Não exatamente tudo o que vivi.

Da maneira como vivi.

Mas ouça os devotos!

Eu estou ouvindo…

E me alegro.

Recitam o Cântico dos Cânticos, como se até aqueles que viveram antes de nós houvessem falado de mim, dizendo que me escondi “como uma pomba na fenda de uma rocha”. E em seguida pedem que eu mostre meu rosto.

Imagino que a fenda na rocha seja a gruta para onde estão levando minhas relíquias, num vilarejo de nome comprido: Saint-Maximin-la-Sainte-Baume. E lá estão, de novo, os anjos, levados pelo povo em cima de um andor e conduzindo minha cabeça.

“Deixe-me ouvir sua voz, pois sua voz é suave”, eles continuam recitando os Cânticos.

Como eu gostaria que ouvissem minha voz!

Tenho tanto a dizer!

Fui silenciada pela força dos homens.

Tratada como a última das últimas.

“E o seu rosto é lindo”, eles terminam o cântico, talvez imaginando que qualquer rosto que eu tivesse haveria sido bonito.

Na Idade Média, escreveram que eu era linda, que meu corpo era bonito e proporcional, que meu rosto era atraente.
Mesmo lisonjeada, preciso confessar que não sei de onde o arcebispo Rabanus Maurus tirou isso.

E convenhamos…

A beleza está na imaginação desses peregrinos.

Vem da fé e da devoção dessas pessoas…

Pois um crânio, por mais que seja agora uma relíquia de santa, jamais revelaria beleza.

Deve ter sido por isso que, antes que a procissão saísse, resolveram cobrir a face daquele busto dourado que sustenta o crânio. Cobriram-no com uma bela máscara, bonita mesmo… mas que não tem nada a ver com meu rosto.

Eles estão andando.

Eu os acompanho.

E percebo que faz muito calor.

Desde que mataram o mestre, o mundo mudou demais…

A vida sobre esta terra ficou tão diferente, e em tantos sentidos, que o que mais me importa (sim, finalmente estou me permitindo pensar mais em mim) é que depois de muitos séculos eu deixei de ser apenas “a prostituta que testemunhou a Ressurreição” e, finalmente, estou sendo tratada como apóstola daquele a quem todos chamam Cristo.

Não era para sentir-me honrada?

“Madalena, apóstola de Jesus”, ouso escutar.

Eles levam flores para mim.

Será que ainda é pecado sentir um pouco de orgulho?

Tocam músicas para mim.

Só posso entender a homenagem como um reconhecimento por minha dedicação ao mestre naqueles anos em que caminhamos juntos pela velha Israel.

E isso é também um alívio.

Penso que se foram capazes de mudar comigo mudarão também a maneira de ver as outras mulheres. Ver o povo andando por essa terra francesa em dia tão quente, aceitando o castigo do sol, tudo isso é magnífico.

Quanto esforço fazem por mim!

Sim… aguentávamos desertos ainda mais penosos em nome da fé que tínhamos no nosso Salvador. E quando estávamos a seu lado, é verdade, não pensávamos em calor ou cansaço. Mas há que se reconhecer o esforço desses peregrinos!

E espero que seja possível entender a felicidade que sinto.

Espero que ninguém veja excesso de vaidade em minhas palavras, pois no dia em que um papa oficializou-me como Madalena Arrependida eu vi o chão desabar debaixo das minhas sandálias.

Senti-me a pior das mulheres.

E por muitos e muitos anos ouvi barbaridades, como se eu e a Maria de Betânia fôssemos a mesma pessoa.

E eu nem concordo…

Ela não era mais pecadora que ninguém!

Do jeito que falaram, foi como se eu tivesse saído pela Galileia oferecendo meu corpo, usando óleos perfumados sobre minha pele para seduzir os homens…

Não o fiz!

Mas… e se tivesse feito?

Falam como se prostitutas fossem piores que assassinos.

Enfim, falaram tudo aquilo de mim como se não fosse possível uma mulher ser apenas companheira, e muito humildemente, conselheira de Jesus nos momentos em que ele precisou.

Enquanto sigo a procissão, e vejo meus mais antigos defensores, os frades dominicanos, levando minha cabeça erguida, reparo com alegria que a ex-prostituta agora merece o respeito não só deles, mas de toda a Igreja.

Quem ainda tem dúvida de que estou finalmente reconquistando um pouco do que Pedro me tomou ao construir uma igreja em que tudo é masculino?

E penso que minha conquista, ainda que gradativa, é também uma conquista das mulheres. Meu ressurgimento
é consequência de um novo tempo. Ou ainda não entenderam que meu nome só saiu das trevas porque as mulheres
passaram a lutar unidas contra os abusos?

Se é verdade que me tornei um espelho da mulher moderna, é verdade também que a mulher moderna se tornou
um espelho para mim.

E quando digo isso me tranquilizo.

Não estou cometendo o pecado da arrogância.

Desse cálice não bebi!

E se agora posso finalmente expressar minha indignação é porque (ainda que os feminicídios pareçam sem fim) escancaramos as portas do mundo para entrar no salão principal.

Agora vão ter que nos ouvir!

E não falo apenas da mulher que esteve ao lado de Jesus até mesmo em sua morte, e em sua Ressurreição.

Refiro-me a todas, pois, sem jamais ter feito nada com essa intenção, vejo que muitas mulheres se inspiram em
mim (ou no que começaram a dizer agora sobre mim), e não voltaremos atrás.

Quando volto à procissão, e percebo que estão quase chegando à gruta, e não vejo mulheres na frente, lembro-me de que Pedro não era capaz de conter-se em seu grande ciúme, indignação mesmo, por me ver conversando a sós, e sobre coisas muito importantes, com o mestre que amávamos tanto.

Só eu sei como Pedro tinha o pavio curto.

Perguntava aos outros por que Jesus me amava mais que a eles.

Queria expulsar-me do grupo.

Só eu sei também o quanto precisei esperar por este dia.

Ainda que estejam levando apenas meu suposto crânio, um pedaço de pele e um osso desidratado que dizem ser de minha perna, sei o quanto isso é sagrado. E quando vejo a procissão chegando ao fim, sinto-me recuperada em minha honra e memória.

Lembro-me dos momentos felizes, quando pude entender os pensamentos do mestre, quando estávamos todos juntos, mesmo que repletos de dúvidas e com algumas desavenças entre nós.

Lembro-me do quanto nos esforçávamos para entender sobre a luz que emanava daquela alma verdadeiramente santa.

Lembro-me do dia em que perguntei ao mestre o que seria de nós depois da morte.

Quando vejo a quantidade enorme de gente que vai chegando à entrada da gruta, suando, sem se importar se é
verão, sem reclamar do calor, subindo uma escadaria enorme, levando minha cabeça com tanto cuidado, sinto que
valeu a pena.

Não… de maneira nenhuma fiz alguma coisa pensando em ser lembrada.

Nem sequer foi escolha minha estar sozinha naquele jardim na hora em que Jesus me apareceu diante do túmulo.

Se ele tivesse aparecido minutos antes… ou depois… me veria ao lado de Joana, e de Salomé, e de Maria Santíssima, sua mãe, e talvez de Arimateia, Nicodemos, não me lembro exatamente a hora em que cada um deles chegou ou saiu… e do querido João.

Talvez até Pedro já estivesse por lá.

Foi escolha do mestre, apenas dele, fazer de mim sua mensageira. E só eu sei o quanto Pedro ficou furioso quando cheguei para contar-lhe a grande notícia.

Acusou-me de mentirosa.

Deu uma de Tomé e foi lá ver com os próprios olhos…

Sempre ele, pensando que uma mulher não poderia saber da Ressurreição antes dos homens. Certo de que não poderia ser eu, Madalena, a portadora de uma notícia tão especial quanto o começo do reino dos céus.

Mesmo sem ter pedido coisa alguma, mesmo que tudo o que me aconteceu tenha sido apenas acaso…

Existe mesmo acaso, meu Deus?

De qualquer maneira, ao ver que agora gostam tanto assim de mim, e que falam bem de mim, e que rezam por
mim, e ainda por cima vendo que construíram tantas igrejas e deram a elas meu nome… sinto-me feliz e reconfortada.

Além da basílica onde minha cabeça chegou agora, construída em cima da gruta, dentro da rocha, como nos Cânticos que me cantaram, há uma outra igreja na Borgonha, ainda na França, num lugarejo medieval chamado Vèzelay, para onde disseram que um padre levou meu corpo depois de roubá-lo do túmulo.

Credo…

Isso não é furtum sacrum?

Roubar um corpo, mesmo que não seja sagrado…

Não é pecado?

Não sei…

Realmente não sei mais o que é ou não é pecado.

O que estou querendo dizer com tudo isso é que aos poucos me foram dando valor.

Há igrejas para mim em Paris, Nova York, Cidade do Cabo, São Paulo… uma igreja ortodoxa russa em Jerusalém… são tantas, mas tantas, que até o Senhor poderia duvidar!

Ou o Senhor nunca duvida?

Penso que o Senhor sabe tudo.

Mas tudo mesmo…

Até nome de igreja?

Fui uma menina galileia como outra qualquer. E se brinquei nas ruas de Magdala e ali cresci solta como qualquer criança, não vejo problema nisso. Pedro mesmo… muitas vezes o vimos de faca na mão. Até cortou a orelha do soldado (daquela vez com toda a razão, admito).

E o que dizer de Paulo?

Resolveu que iria acabar com nosso grupo, invadiu nossas casas, arrancou homens e mulheres à força para levá-los à prisão. Veio mesmo para nos matar… e precisou ficar cego para enxergar!

Mas como demorou…

Como Paulo demorou a entender que o mestre era o verdadeiro messias enviado para salvar o povo de Israel!

Se os grandes patriarcas da Igreja puderam errar e tornaram-se santos entre os santos, por que é que a matriarca deveria aceitar as culpas que lhe impuseram?

O que fizeram comigo foi coisa de homens…

A misoginia nossa de cada dia.

Perdoe a franqueza, meu Deus!

Perdoe também se não peço licença.

Mas agora quem vai contar minha história sou eu.