Relatório traça rota do algodão e liga crimes ambientais no Cerrado a gigantes da moda

12 abril 2024 às 10h43

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As maiores marcas de moda do mundo, H&M e Zara, usam algodão ligado à grilagem de terras, desmatamento ilegal, violência, violações de direitos humanos, corrupção e trabalho escravo no Brasil. O algodão exportado sai principalmente do oeste da Bahia, onde o Cerrado brasileiro é desmatado ilegalmente para ampliação do cultivo. O corte desta vegetação dobrou nos últimos cinco anos, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A denúncia faz parte do relatório Fashion Crimes da organização Earthsight, publicado na última quinta-feira, 11, revelada pelo jornal DW. Ao longo de um ano, uma investigação detalhada focou nos negócios que conectam as lavouras do Brasil, quarto maior produtor mundial da commodity, às marcas europeias.
Um dos cinco maiores biomas do Brasil, o Cerrado cobre cerca de 25% do território nacional, perfazendo uma área entre 1,8 e 2 milhões de km2 nos Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, sul do Mato Grosso, oeste de Minas Gerais, Distrito Federal, oeste da Bahia, sul do Maranhão, oeste do Piauí e porções do Estado de São Paulo.
Desde 2019, o desmatamento no Cerrado vem crescendo vertiginosamente. Em 2023, o bioma perdeu 11 mil km², o maior número desde 2015 e o equivalente a sete vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Segundo projeções do Inpe, nesse ritmo a taxa anual de desmatamento pode chegar a 12 mil km² em 2024.
Nos estados que mais destroem o bioma – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecidos como Matopiba – o número de autorizações de desmatamento já emitidas, mas não executadas, é alto. O bioma abriga 5% das espécies do mundo. Muitos enfrentarão a extinção devido à perda de habitat se as atuais tendências de desflorestação não forem invertidas.
O algodão contaminado nas cadeias de abastecimento da H&M e da Zara é certificado como ético pelo maior sistema de certificação de algodão do mundo, o Better Cotton, que não conseguiu detectar as ilegalidades cometidas pelas empresas que cultivam o algodão ilegalmente: SLC e Horita (duas das maiores agroindústrias do Brasil).
As falhas profundas do Better Cotton não serão resolvidas por uma atualização recente dos seus padrões. Segundo o relatório apontou, o fracasso do setor da moda em monitorar e garantir a sustentabilidade e a legalidade nas suas cadeias de abastecimento de algodão significa que os governos dos mercados consumidores ricos devem regulá-las. Uma vez implementadas, as regras devem ser rigorosamente aplicadas.
A ONG analisou o caminho percorrido por 816 mil toneladas de algodão com a ajuda de imagens de satélite, registros de envios de mercadoria, arquivos públicos e visitas às regiões produtoras. Segundo o relatório, essa matéria-prima foi destinada especialmente a oito empresas asiáticas que, entre 2014 e 2023, fabricaram cerca de 250 milhões de itens para as lojas. Muitos deles, alega a investigação, abasteceram marcas como H&M e Zara, entre outras.
Empresas responsáveis pelo desmatamento
Dentre os casos analisados no relatório, está o grupo SLC Agrícola. Fundado em 1977 no Rio Grande do Sul, o grupo diz ser responsável por 11% do algodão brasileiro exportado (safra 2019/2020). Uma consulta feita pela Earthsight no banco de dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mostra mais de R$ 1,2 milhão de multas aplicadas por infrações ambientais desde 2008 nas fazendas do grupo somente no oeste da Bahia.
Questionado, o grupo afirmou por meio de nota à DW que “todas as conversões de área com vegetação nativa da SLC seguiram os limites estabelecidos por lei”. Especificamente sobre a área desmatada em 2022 apontada no relatório da Aidenvironment, a empresa diz que a destruição se deu por “um incêndio natural, não ocasionado para a abertura de novas áreas para produção”. “As multas que foram objeto de recurso estão em tramitação e não houve, até o momento, um julgamento definitivo”, finaliza a nota.
Outro grupo analisado em detalhes é o Horita, original do Paraná e atuante na Bahia desde a década de 1980. Entre as várias denúncias feitas pela Earthsight está a chamada grilagem verde: imposição de reservas legais, ou áreas de preservação de propriedade privada, em zonas onde vivem comunidades tradicionais. A manobra impede que famílias realizem atividades de subsistência e, nos piores casos, permaneçam nas terras.
O conflito fundiário entre as famílias geraizeiras, como se identificam essas comunidades tradicionais na região, e fazendeiros data de 1970. Na década seguinte, a companhia Delfin Rio compra terras e registra o empreendimento como Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do estado (AATR), o grupo Horita é um dos sócios do complexo de fazendas.
Em 2017, as famílias geraizeiras da zona rural de Formosa do Rio Preto, no oeste baiano, ajuizaram uma ação contra a Estrondo por grilagem de terra e ganharam, em caráter liminar, a posse coletiva de 43 mil hectares que o empreendimento dizia ter comprado. A maior parte está nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Em 2019, a Operação Faroeste da Polícia Federal revelou um conluio do alto escalão do magistrado baiano para favorecer fazendeiros na mesma região. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), um esquema de compra de sentenças teria movimentado cifras bilionárias em disputas de terras e tinha participação de magistrados, empresários, advogados e servidores públicos. Walter Horita, um dos fundadores do grupo, é um dos réus no processo, ainda em julgamento.
O Grupo Horita declarou que “aguardará a divulgação do relatório para qualquer nova manifestação, para além das que já foram proferidas pelo seu departamento jurídico, em resposta às acusações da ONG”.
Rota do algodão
Durante a investigação, a Earthsight seguiu a rota de 816 mil toneladas de exportações de algodão que saíram da SLC Agrícola e Grupo Horita entre 2014 e 2023 para os principais destinos: China, Vietnã, Indonésia, Turquia, Bangladesh e Paquistão. Com base em dados que permitem rastreio – o que não ocorre no caso chinês –, as pistas levaram a oito fabricantes de roupas na Ásia.
Todas as intermediárias identificadas (PT Kahatex, na Indonésia; Noam Group e Jamuna Group, em Bagladesh; Nisha, Interloop, YBG, Sapphire, Mtmt, no Paquistão) fornecem produtos acabados a marcas como Zara e H&M, segundo aponta a ONG.
Criada em 2009 pela indústria e outras organizações, incluindo a WWF, a iniciativa criou um selo para atestar a origem da matéria-prima no intuito de garantir qualidade e respeito ao meio ambiente. No Brasil, segundo dados da Better Cotton, há 370 fazendas certificadas em parceria com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa).

Desmatamento explode no Cerrado
O desmatamento no Cerrado cresceu 86% em outubro de 2023 em relação ao mesmo período de 2022, atingindo 109 mil hectares. Esse é o pior resultado para o mês de outubro nos últimos três anos e terceiro pior mês de 2023. Dados foram detectados pelo SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado). Veja abaixo.

O Cerrado é uma das regiões de maior biodiversidade do mundo, e estima-se que possua mais de 6 mil espécies de árvores e 800 espécies de aves (MMA, 2002). Acredita-se que mais de 40% das espécies de plantas lenhosas e 50% das abelhas sejam endêmicas. Ao lado da Mata Atlântica, é considerado um dos hotspots mundiais, ou seja, um dos biomas mais ricos e ameaçados do mundo.
O bioma Cerrado abriga um número de espécies vegetais e animais semelhante ao encontrado em formações florestais, tendo sido considerado como uma das 27 áreas críticas de biodiversidade do planeta e alto grau de endemismo, principalmente em relação à flora.
A grande complexidade de hábitats e paisagens no Cerrado propiciam a existência de uma fauna diversa e abundante, distribuída de acordo com os recursos ecológicos disponíveis, topografia, solo e microclima. Na região de cerrado, devido a sua grande heterogeneidade, podem ocorrer até 5% da fauna mundial, e cerca de um terço da fauna brasileira. Estimativas apontaram aproximadamente 320.000 espécies da fauna para o Cerrado, distribuídas por 35 filos e 89 classes, sendo 67.000 de invertebrados, correspondendo a 20% da biota desse bioma.
Se o ritmo de desmatamento verificado no segundo semestre de 2023 se mantiver nos primeiros meses deste ano, a taxa anual de desmatamento pode chegar a 12 mil km². A estimativa foi apresentada durante a primeira reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 2024, realizada em Brasília. Do desmatamento registrado em 2023 no bioma, 94% aconteceu dentro de áreas já cadastradas no Cadastros Ambientais Rurais (CAR). O problema é que grande parte dessa destruição – 85% – estava dentro de imóveis cujo CAR ainda não havia sido analisado.
Um estudo liderado por pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília) aponta que a conversão de áreas nativas do Cerrado para pastagens e agricultura já tornou o clima na região quase 1°C mais quente e 10% mais seco. Os resultados apontam um calor severo e períodos ainda mais secos até meados do século, se o desmatamento continuar no ritmo atual. O aumento de temperatura foi de 0,7°C no pior cenário e de 0,3°C no cenário intermediário.
Segundo pesquisadores, os esforços internacionais para conter o desmatamento em florestas, como na Amazônia, podem deixar outros tipos de vegetação nativa, como os campos do Cerrado, vulneráveis. Por isso, no início do mês, mais de 40 pesquisadores brasileiros assinaram uma carta publicada na revista Nature Ecology & Evolution em defesa “da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos prestados por biomas não florestais.”
Apesar de representar cerca de um quarto de todo o território nacional, apenas 8% do bioma Cerrado é protegido por UCs federais de proteção integral ou uso sustentável, segundo o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Em 2022, mais da metade da área do bioma já havia sido convertida para uso agropecuário, como apontado pelo MapBiomas.
Além da execução do Plano de Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado), o governo propõe algumas mudanças legais, como atualizações na Resolução Conama 379/2006, que trata da regulamentação de dados e informações do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama).
