A Festa no Tribunal da Compadecida

Faz frio aqui no sul da América Latina, um frio daqueles que cortam o rosto e a alma que observa os plátanos desnudos com suas folhas formando um tapete nas calçadas. Ando por Buenos Aires com a tristeza que deixou meu dia ainda mais frio com a recente notícia da morte do velho Ariano Suassuna, a onça brava do sertão, a mais nova alma do céu, acolhido de braços abertos pela Compadecida de seus autos onde tão generosamente olhou para os pobres de Deus Pai.

Hoje, 25 de julho, dia do escritor, fico a pensar em tanta gente que partiu recentemente e em outros que se foram há anos, mas suas palavras ainda são um forte sustento para essa nação. Ariano certamente fará muita falta na Rua do Chacon, na roda dos amigos e parentes e no mundo da cultura e da política do Brasil. Sem rabo preso, Ariano fez de sua literatura a voz dos pequenos. Bateu duro em governos “sem vergonha”, naqueles entreguistas que se abaixam para os estrangeiros para até ralar o nariz no chão, jogando a cultura do povo no ralo e supervalorizando somente o que vem de fora. Ariano era a antítese, em pessoa, da frase do embaixador Juraci Magalhães: O que é bom para os Estado Unidos, é bom para o Brasil.

Fui premiado pela vida, andando por algum tempo, no fim dos anos 80, com o amigo Ariano, entre favelas do Recife e a casa de seus amigos no bairro de Casa Forte. Ariano era o mesmo da sala de aula e da cozinha receptiva de sua casa. Suas palavras eram raios de esperança para quem as ouvia e seu olhar generoso nunca deixou que a vaidade dos prêmios culturais e literários o afastasse do povo das ruas, dos ambulantes, palhaços, verdureiros, feirantes, dos que fazem cuscuz, tapiocas, criam cabras, aboios e versos de cordel…

Ariano é o porto seguro de muita gente de valor que se vê agora nas mãos macabras dos tais “politicamente corretos”, esses que querem varrer das escolas a boa literatura nacional, como por exemplo, o que vem ocorrendo com o grande Monteiro Lobato nas garras de gente que nunca produziu nada que chegasse aos seus pés em termos de literatura e que não conhece rostos, mãos e pés sertanejos que estão longe de shoppings e ministérios de Brasília.

Há uma catrevagem de gente se assenhorando das chamadas minorias e em nome delas passam a impor valores para o povo. Gente de partidos e governos revoltosos com as tradições brasileiras ocupam gabinetes e conselhos de cultura, de educação, na capital Federal, nos Estado e municípios querem e empurrar goela abaixo a reforma nos modelos ditatoriais do que Mao Tsé-tung fez na China.

Essa gente que pensa que tem a estrela na testa se esquece da força do gaúcho descrito por Érico Veríssimo. Desprezam a gente dos sertões de Graciliano Ramos e do mundo místico de Antonio Conselheiro retrato por Euclides da Cunha. Jogam no lixo, como disse acima, o mundo mágico do sitio do pica-pau amarelo e se acham melhores que os personagens de José Cândido de Carvalho. Para eles, as verdades de Carmos Bernardes, Hugo de Carvalho Ramos, Eli Brasiliense, Bernardo Élis, são meros regionalismos para se guardar numa prateleira empoeirada numa biblioteca mal cuidada, por seus próprios governos.

Os “politicamente corretos” fomentam sob a tenda vermelha armada pela mídia bem paga, o funk, o punk, o rock, os filmes enlatados, a marcha da maconha, das vadias, do aborto e de tudo que venha servir aos propósitos de sua perpetuação no poder, para isso vale até a destruição da família e daquilo que nossos grandes escritores retrataram como parte integrante da alma e da identidade nacional.

Hoje, 25 de julho é dia do escritor, é dia do Ariano, do João Ubaldo, do Machado de Assis, do Jorge Amado e de todos aqueles que como João Cabral de Melo Neto viram na simplicidade do homem brasileiro o mote principal para sua prosa e seu verso. Será que os “politicamente corretos” permitiriam que nossos jovens leiam na escola que a terra árida onde não chega o dinheiro do mensalão, foi tema da poesia do João Cabral? Será que vão também proibir seus livros como querem fazer com a obra do Monteiro Lobato?

Os tais “politicamente corretos” que fomentam gerras ideológicas contra o Monteiro Lobato, amanhã proibirão textos que fazem referências ao homem e a mulher, pois querem também impor ao pais a tal politica de gênero, chamando de sexista qualquer ideia ou expressão comum que exponha os valores e as diferenças naturais entre um homem e uma mulher, diferenças salutares e complementares, mas que para os “politicamente corretos” são marcas de uma sociedade conservadora, patriarcal e decadente.

Não duvidem, pois os “politicamente corretos” que hoje fazem homenagens ao Ariano, amanhã estarão a retirar suas obras das escolas, sob o pretexto de que o Estado é laico, e falar de Deus, da Mãe de Jesus às crianças, falar da fé do povo, ainda que seja pela literatura, pelo teatro armorial do gênio paraibano, vai ser considerado crime, uma grave violação de direitos, portanto obras desse quilate também deverão ser censuradas.

Bom mesmo, para os “politicamente corretos” é ver a qualidade do ensino, transformado em cursinho preparatório para a prova do tal Enem. A formação do cidadão, do ser humano, do homem que conhece seu povo, que valoriza a cultura brasileira e nossas tradições é algo do passado. Aliás, o termo “tradição” já pode ser considerado palavrão, ou no mínimo uma expressão incorreta no meio dos que dirigem e gerenciam a cultura do Brasil.

Aqui ficamos com as dores e as lutas de um povo nas mãos dos “politicamente corretos”. No céu janelas são abertas e o tribunal da Compadecida se tornou uma grande festa para o Ariano e sua turma, uns que chegaram antes e os que estão indo atrás.

Hoje, 25 de julho, é também dia do trabalhador rural, daquele que historicamente foi esquecido por tantos governantes e agora, a sua fala, a sua historia, as suas tradições estão sendo também apagadas pelos “politicamente corretos”, quando ofuscam os escritores do cacau, da criação de gado, das cabras, dos canaviais, do chão seco do Severino, aquele mesmo do qual João Cabral, amigo do Ariano, assim falou:

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina

PEDRO SERGIO DOS SANTOS. Advogado. Diretor da Faculdade de Direito da UFG. Aprediz de escritor.