Por que o protagonismo de uma primeira-dama incomoda até mulheres?
10 março 2024 às 14h14
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A primeira-dama do Brasil, Rosângela Lula da Silva, foi escolhida para representar o Brasil um evento da Organização das Nações Unidas (ONU). No decreto, assinado pelo presidente Lula no Dia Internacional da Mulher, ele designa Janja não como primeira-dama, mas como socióloga. Além dela, participam também Luana Morais Pires, representante da Sociedade Civil do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e Denise Dourado Dora, advogada especializada em direitos humanos.
Não é a primeira vez que Janja desempenha um papel importante nas articulações políticas do Governo Lula. Também não é a primeira vez que uma ala conservadora brasileira demonstra incômodo com o protagonismo de uma mulher. Antes mesmo do início do governo, durante a transição, um comentário machista e infeliz da jornalista Eliane Cantanhêde levantou o debate “qual o papel de uma primeira-dama?”
A 68ª sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher da ONU acontece de 11 a 22 de março, em Nova York, com o tema: “Acelerar a concretização da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas, combatendo a pobreza e fortalecendo as instituições e o financiamento com uma perspectiva de gênero”. Como esposa de Lula, mulher e socióloga, cabe à Janja participar do evento? É função de uma primeira-dama articular politicamente ou somente fazer cerimonial de eventos?
Para a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro, o ‘papel’ da esposa é ajudar o marido. “Nossa política é feminina e não feminista”, disse Michelle durante um evento do PL na Bahia, realizado na última sexta-feira, 8. Com o esposo inelegível, ela aparece como uma possível candidata do partido nas Eleições de 2026. Após o impeachment da primeira presidente mulher do Brasil, estaria o país evoluído e maduro o suficiente para eleger outra mulher? Com os pés no chão, talvez Michelle deva se contentar somente com uma vaguinha no Senado.
Isso porque independente de posicionamento ideológico, cor da pele ou classe social, o protagonismo feminino sempre incomodou e sempre irá incomodar a elite brasileira. Composta em sua maioria por homens, brancos, ricos e velhos, essa ala conservadora parece impedir o Brasil de crescer e evoluir como nação. Após ser criticada pelas críticas à Janja, Cantanhêde veio a público se justificar dizendo: “apenas disse que uma coisa é a relação pessoal, outra é a função pública. Já imaginou o contrário? Se fosse uma mulher presidente e o marido se metendo em tudo?”.
De tão estúpida, a pergunta parece ser redundante, visto que a resposta é sabida por todos. É claro que se fosse o contrário estaria tudo bem. Porque não há nenhum incômodo no protagonismo masculino, especialmente quando este agrada à ala conservadora. O que faltou para Bolsonaro ser destituído de sua função? Faltou, talvez, ter nascido mulher.
“O presidente é o Lula. Tudo tem limite, tudo que excede pode dar problema e há um incômodo com o excesso de espaço que a Janja vem ocupando. Ontem, quando o Lula fez aquele discurso em que ele chorou quando falou da fome, quando ele derrapou ao desqualificar a responsabilidade fiscal, ela estava ali sentada. Mas ela não é presidente do PT, ela não é líder política. Qual é o papel da primeira-dama?”, questionou Eliane Cantanhêde.
A comentarista continuou com os comentários sobre Janja, deixando em evidência seu descontentamento com o protagonismo da socióloga na campanha e próximo governo de Lula. “Já incomoda, sim, porque ela vai começar a participar de reunião, já vai dar palpite e daqui a pouco ela vai dizer ‘esse aqui pode ser ministro, esse não pode’ e isso dá confusão”. Os conservadores não parecem se incomodar, no entanto, com “palpites” do Legislativo, Executivo e Judiciário, desde de que sejam homens dando sugestões.
Durante o primeiro ano do Governo Lula, Janja esteve ao lado do Presidente influenciando, dando direcionamentos e se mostrando uma conselheira do esposo. Quando Lula foi eleito, ela já havia noticiado a intenção de ‘ressignificar o papel de primeira-dama’. Inclusive foi ela a responsável pela indicação de uma intervenção federal durante os atos golpistas de 8 de janeiro. Durante reunião, foi ela a primeira a se posicionar contra a Garantia da lei e da ordem (GLO).
De onde surgiu o termo “primeira-dama”?
O termo “primeira-dama” surgiu nos Estados Unidos no século 19, e ganhou força entre 1885 e 1889, quando a imprensa americana passou a utilizar a frase: “a primeira-dama da nação”, fazendo referência a Frances Folsom Cleveland (esposa do 22º presidente americano, Grover Cleveland). No Brasil, a prática de ação social das primeiras-damas iniciou em 1915, quando Maria Pereira Gomes, na época esposa do presidente Venceslau Brás, promoveu uma festa na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, com objetivo de arrecadar dinheiro para pessoas que foram afetadas com a seca no Nordeste.
Durante as críticas à Janja, Cantanhêde relembrou outras primeiras-damas do Brasil e a comparou com Ruth Cardoso, esposa de Fernando Henrique Cardoso. “Um bom exemplo de primeira-dama foi a Ruth Cardoso, que, como a Janja, tinha brilho próprio, era professora universitária, uma mulher super-respeitada na área dela e cuidou da Comunidade Solidária, mas ela não tinha protagonismo, não tinha voz nas decisões políticas, se tinha, era a quatro chaves, dentro do quarto do casal”, acrescentou.
Eliane Cantanhêde citou outras 3 primeiras-damas:
- Yolanda Costa e Silva (1907-1991), esposa de Costa e Silva (1899-1969), descrita como “super maquiada, super artificial”;
- Lucy Geisel (1917-2000), esposa de Ernesto Geisel (1907-1966), caracterizada como “muito discreta, dona de casa”;
- Rosane Collor, ex-mulher de Fernando Collor, lembrada por “jogar aliança fora, causar confusões e fazer coisas religiosas meio estranhas na casa da Dinda”.
Para a imprensa retrógrada, é necessário lembrar que o lugar de meninas jovens e mulheres é onde quiserem. Para a sociedade, é preciso relembrar a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), que havia bem dito “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.