Mulheres e Poder IV: Por que o protagonismo de mulheres na política incomoda tanto?

14 abril 2024 às 00h00

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Esta é a quarta reportagem de uma série especial intitulada “Mulheres e Poder” sobre o valor da participação feminina na economia, política, cultura e sociedade.
O ano era 2022. Um debate sobre a necessidade da cota de gênero na política, ocorrido durante uma sessão da Câmara Municipal de Aparecida de Goiânia, motivou Camila Rosa, a única mulher vereadora da Casa, a recorrer à sua rede social pessoal em uma postagem em defesa da presença das mulheres em espaços de poder da sociedade e o incentivo do Estado para que isso se torne realidade. “Não toleraremos mais preconceitos! Vou lutar até o fim pela igualdade e o respeito. O espaço político é de todos”, escreveu, na época.
O que não se esperava é que a publicação da vereadora criasse a convicção no então presidente da Câmara de que estava inclusa na prerrogativa parlamentar dele o direito de usar a tribuna para questionar posições pessoais de membros da casa compartilhados em suas próprias redes sociais. “Eu não sou machista, eu sou contra fake news, isso aqui pra mim é fake news”, argumentou o vereador André Fortaleza, se referindo à publicação da vereadora.
Camila ainda pediu a palavra para responder à fala do presidente e negou ter dito que ele era contra cota”. “Agora se o senhor entendeu isso, a carapuça pode ter servido”, completou. Os ânimos se exaltaram, mas apenas um portava o poder de tolhimento de fala. Fortaleza cortou o microfone de Camila sob o argumento de ter sido “desrespeitado” e continuou seus próprios argumentos. À vereadora, que teve uma postagem publicada em sua rede social trazida à tona pelo presidente da Câmara e, logo em seguida, teve o direito de fala tomado, restou a indignação, o choque.
O caso ocorreu em fevereiro de 2022. Meses depois, em março daquele mesmo ano, a Polícia Civil encerrou um inquérito e concluiu que existiam contra Fortaleza elementos caracterizadores do crime de violência política contra a mulher. “Não é mais aceitável que tais comportamentos tenham espaço no atual cenário político brasileiro, seja por decorrência do estágio de avanço educacional e cultural da nossa sociedade, seja pela aplicação do ordenamento jurídico repressor àqueles que não respeitam a posição política de suas parlamentares”, destacou a delegada Luiza Veneranda em entrevista a um veículo local.
Leia também: Raiz da violência de gênero está nas relações de poder entre homens e mulheres
Voltando ainda mais no tempo, dois anos antes, em 2020, a então deputada estadual Adriana Accorsi acionou a Polícia Civil, instituição da qual é delegada licenciada, para denunciar ameaças de morte recebidas em seu perfil do Instagram. “Não existe policial esquerdista, pq defende bandido tem que morrer” e “Comunista, já comprou caixão da Verônica e da Helena?”, referindo-se às filhas da deputada, foram algumas das mensagens enviadas a ela por um perfil na rede social.
O autor das ameaças foi identificado pouco tempo depois. Tratava-se de um pescador do interior do estado do Acre. Aos policiais, o homem ainda disse que cogitou pedir desculpas para Adriana, hoje deputada federal e pré-candidata à Prefeitura de Goiânia, mas decidiu que “melhor não”, pois temia ser identificado.
Os casos expostos são diferentes em diversos aspectos e não se equivalem quando levado em conta o teor do ato praticado em cada uma das situações – enquanto uma parlamentar teve seu direito de fala tolhido, outra foi ameaçada de morte -, mas têm sua origem em um só fenômeno: o machismo, construído sob o pensamento patriarcal de que as falas e os posicionamentos de uma mulher em espaços de poder são inválidos, e se vieram a ser manifestados, são inaceitáveis caso não sigam a corrente dominante masculina.
Em um resumo rápido, pode-se caracterizar o termo “patriarcado” como um sistema sociopolítico que coloca homens em situação de autoridade, favorecendo e privilegiando pessoas do sexo masculino em diferentes épocas, situações e lugares. E para a pesquisadora e doutoranda em Antropologia Social, Camilla Nascimento, foi justamente sob esse sistema que nasceu e foi construída a política tal qual a conhecemos.
De acordo com Nascimento, “é importante remontarmos às raízes da política brasileira e ao processo democrático, como ele se desenvolveu no Brasil”. “Quando a gente faz esse movimento de olhar para trás, percebemos que era uma política patriarcal, como costumamos dizer. Tínhamos apenas homens. E [depois] um processo muito lento de participação das mulheres, do direito ao voto até começarmos a ter as primeiras mulheres eleitas na política. O que vemos hoje é um resquício de resistência a essa participação mais diversa, não apenas das mulheres [em geral], mas de outros grupos como mulheres pretas, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+”, explica.

A pesquisadora expõe ainda que existe um “lobby de interesses com o uso da política” nas decisões que afetam diversos setores da sociedade. Nesse cenário, narra Nascimento, é notada uma objeção às mudanças sociais para inclusão de mulheres nos espaços de poder, por exemplo, pois essas mesmas decisões partem justamente de “um grupo de homens” presente na maioria massiva dos espaços.
Essa realidade pode ser refletida nas centenas de casos de fraudes na cota de gênero registrados nas eleições. Para se ter uma ideia, no ano passado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou 216 processos sobre cota de gênero. As ações, segundo o órgão, compreendem, principalmente, “o ato de fraude a partir do registro de candidatas femininas fictícias, com o objetivo de preencher enganosamente o percentual mínimo de 30% de candidaturas de um mesmo sexo, exigido pela legislação”. Ao todo, 760 processos já foram autuados no TSE sobre o assunto. Na prática, “cumpre-se a lei”, mas o objetivo delas – a participação feminina na política – fica só na imaginação.
Toma-se como outra amostra prática da cultura de desvalorização da presença da mulher na política quando um homem destaca, por exemplo, a vantagem de ter uma determinada mulher em sua chapa para as eleições citando não suas atribuições, como habilidade de articulação, boa formação política, retórica invejável e inteligência, mas pelas habilidades de gestor do marido dela, que poderia ser consultado quando necessário.
Para Camilla Nascimento a democracia é um processo em construção, e além do efetivo uso das ferramentas institucionais, é necessário o cumprimento das leis criadas para coibir a violência de gênero na política, “assim como precisamos muito da participação dos grupos que representam essas pautas”.
“Os movimentos que fazem essas discussões precisam estar atuantes, participando no dia a dia da política para que haja uma cobrança aos representantes, sejam eles do Legislativo, Executivo ou Judiciário, para o efetivo cumprimento dessas leis. Afinal, a gente vê tantas denúncias, por exemplo, no próprio Judiciário, em que as mulheres sofrem novas violências de gênero naqueles ambientes enquanto pleiteiam o cumprimento de uma lei que as proteja”, arremata.