PL da dosimetria é a nova tentativa da Câmara de reescrever o 8 de Janeiro e absolver golpistas
11 dezembro 2025 às 18h32

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O Projeto de Lei da Dosimetria, aprovado com entusiasmo quase militante na Câmara dos Deputados, não é sobre técnica penal. É sobre política pura, crua e mal disfarçada. A pauta, apresentada como um ajuste “civilizatório” na fixação de penas, na verdade funciona como um recado nítido: o Parlamento está disposto a reescrever os desdobramentos do 8 de Janeiro de 2023 para proteger aliados, simpatizantes e, sobretudo, a figura do ex-presidente Jair Bolsonaro, cujo envolvimento nos atos antidemocráticos é tão claro quanto a luz do dia.
É impossível analisar o projeto sem enxergar sua natureza. A Câmara não acordou, casualmente, tomada por zelo técnico à Justiça. Ela reagiu às condenações impostas pelo STF a participantes da tentativa golpista, condenações que, direta ou indiretamente, atingem o círculo político que orbitava Bolsonaro e segue tentando reconstruir sua narrativa de vítima perseguida.
Enquanto defensores do texto discursam sobre “excessos do Judiciário”, o que realmente incomoda é a contundência das decisões do STF contra aqueles que, estimulados por meses de retórica incendiária, invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Não se trata apenas de punir arruaceiros — se trata de conter um espectro político intoxicado pela crença de que, se Bolsonaro não venceu, bastava derrubar as instituições que sustentam a democracia.
A Câmara sabe disso. E, mesmo assim, se movimenta para flexibilizar justamente o ponto no qual o STF foi mais firme: a dosimetria das penas impostas aos golpistas. O recado, ainda que não declarado, é transparente: é preciso reduzir o impacto político e simbólico das condenações, especialmente porque respingam em Bolsonaro, que segue tentando se manter relevante para 2026, mesmo estando fora do pleito.
Confusão entre vandalismo e patriotismo
O ex-presidente não participou fisicamente da invasão, mas a construção do ambiente que permitiu o 8 de Janeiro tem seu DNA. Foram anos repetindo que o sistema era fraudulento, que as urnas não eram confiáveis, que o STF era inimigo, que havia uma conspiração em curso. Quando um líder cria dúvidas sobre as instituições diariamente, não surpreende que seus seguidores confundam vandalismo com patriotismo.
Agora, a Câmara tenta, com um projeto de lei, criar amortecedores legais para isso.
Há um esforço claro para transformar golpistas em injustiçados. Deputados falam em “defesa da liberdade de expressão”, em “manifestações desvirtuadas”, em “penas severas demais”. Mas a pergunta inevitável é: seriam tão complacentes se os invasores estivessem vestidos de vermelho e empunhando bandeiras de esquerda?
O PL da dosimetria se torna, então, um remédio receitado sob medida para aliviar a dor política de um grupo. Não resolve falhas sistêmicas do país, não melhora o sistema penal, não corrige desigualdades históricas na aplicação de penas. Serve, quase exclusivamente, para revisar a narrativa e reduzir a gravidade dos crimes cometidos por aqueles que tentaram impor um projeto autoritário, um projeto onde Bolsonaro é liderança central.
O Congresso, que teve sua própria sede violada, age agora como se a punição fosse o verdadeiro problema, não o atentado contra a democracia. A inversão moral é tão profunda que beira o absurdo. Legisladores que deveriam zelar pelo equilíbrio institucional trabalham, em plena luz do dia, para suavizar as consequências de um ataque que pretendia calar o país.
O Judiciário tem seus defeitos. Mas responsabilizar quem atacou a República não é excesso, é dever constitucional. E chamá-los de “perseguidos” não é defesa da justiça — é reescrita da história.
O PL da dosimetria, em sua essência, não protege o Estado de arbítrios. Protege Bolsonaro e seu legado tóxico, oferecendo um colchão jurídico e simbólico para quem acreditou, e ainda acredita, que a democracia é descartável quando atrapalha seus projetos de poder.
O Brasil precisa discutir dosimetria? Sim. Mas precisa, antes, parar de fingir que esse projeto é técnico. Ele é político-ideológico, e profundamente comprometido com a manutenção da impunidade dos que atacaram a própria democracia.
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